Só podemos destruir
sendo criadores.
Nietzsche
Em
toda passagem de ano comemoramos um ano
novo. Um ano velho se vai, um ano novo vem. Mas o ano novo não é um começo radical
a partir do zero: ele é a continuidade
de um mesmo tempo. É por isso que o ano novo é contado, recebe um número. O
nosso, por exemplo, é 2016. É um ano novo
de um mesmo tempo que progride e é numerado, então, com um ano a mais. O ano
novo é um novo ano de um mesmo tempo, e não um tempo novo.
Entre
os gregos antigos, o tempo era vivido de outra forma, uma forma mais drástica,
mais radical. O tempo não era concebido de maneira linear. O tempo linear é o
da linha que progride do menos para o mais, numericamente. O tempo linear
começou com a condição de um dia ter
termo ou fim. No nosso calendário linear,
por exemplo, estamos no ano 2016. Este ano foi precedido pelo 2015 e será
sucedido pelo 2017.A lógica que preside essa contagem numérica do tempo é incompatível
com a ideia de que essa contagem seja infinita, dado que o infinito, exatamente
por sê-lo, não pode ser contado ou numerado. Assim, a razão de contarmos o
tempo deve-se ao fato de que o tempo, um dia, terá fim. A causa que explica o
seu fim está no seu próprio começo: o ano zero. O tempo começou e terminará em
razão de um motivo não temporal, metafísico, transcendente. Cabe a pergunta, pergunta
de criança: qual será o último ano novo antes do fim dos tempos? Que número ele
terá? O progresso no tempo linear é, paradoxalmente, a aproximação de um fim.
Os
gregos antigos concebiam o tempo como repetição cíclica. O tempo é uma
repetição, e não uma progressão numérica. Dois eventos determinam o ciclo do
tempo: o nascimento e a morte, a criação e a destruição. O tempo nasce, cresce
e morre, como tudo o que é vivo. Porém, o tempo renasce, vencendo sua própria
morte. Mas o tempo que nasce é um tempo novo, que nada tem a ver com o que
morreu. O tempo novo também não é o desenvolvimento de um tempo antigo. Por
isso não se pode dizer que é o ano novo de um mesmo tempo, pois é um tempo novo
que nenhuma data ou número pode determinar. O tempo novo não é precedido de um
passado, tampouco é ele o herdeiro de costumes antigos. O tempo novo não é
precedido de um tempo antigo; muito menos será ele o tempo antigo de outro tempo
novo. Ele é tempo novo, renascido outro. É no tempo novo, e não no tempo
morrido, que o tempo mostra sua verdadeira face: pois todo tempo é novo, assim
como é todo dia, todo instante, desde que os vinculemos ao tempo que nasce, e
não ao habitual relógio ou ao convencional calendário.
Para
os gregos antigos, não é o ano que é novo, não é o dia, não são as horas; é o
tempo que é novo, e esse tempo novo não o podem medir os anos,os dias, as horas ou qualquer outra medida determinada. Quantos tempos novos já existiram? Impossível numerar, pois tudo o que
é singular foge aos números e quantidades.Infinitas vezes já houve um tempo
novo. Apesar disso, sempre haverá tempo novo. O tempo novo é uma repetição da
novidade, pois é da essência da novidade repetir-se diferente. Não é o tempo antigo
que causa o tempo novo: este nasce tendo por causa ele mesmo. É para criar-se novo que ele se destrói como antigo.Repetindo-se, o tempo sempre retorna, diferente. O tempo não é eterno: eterna é a repetição através da qual o tempo retorna, novo.Do tempo novo não pode haver lembrança, embora ele traga consigo a semente de uma nova memória, na qual se poderá escrever uma nova história.
Foi
essa concepção de tempo que traduzia a experiência de Orfeu, o poeta que foi ao
inferno e voltou, que foi à morte e retornou . Também é essa concepção do tempo
que inspira o deus Dioniso, que é o deus dos renascimentos. E é este deus que,
outrora, era cultuado no carnaval. Esta festa nasceu como celebração desse
tempo novo. O carnaval era a festa onde a morte e a vida se encontravam, sem
brigar ou entrarem em guerra. Esse encontro era celebrado com festa, com
alegria. O tempo que morria era celebrado, não era chorado; e o que nascia
também era comemorado. Morria a terra, renascia a terra; morriam os homens,
renasciam os homens.E o que renascia não era o morto que ressurgia, mas a vida mesma mais viva.
Posteriormente,
essa festa foi apropriada pelo Estado grego e pelos mecenas das artes,
sobretudo o teatro. Também os comerciantes de bebidas se aproveitaram dessa
festa. O que era experiência e ruptura, tornou-se rito. Foi a partir de então
que a destruição se perdeu da criação, de tal modo que o antigo se perpetuava
fingindo-se novo. A festa não era mais a expressão do tempo novo, mas tão
somente a suspensão temporária de um mesmo tempo. A experiência radical com a
novidade se transformou em data no calendário das festas costumeiras e programadas. E Orfeu se tornou apenas uma
máscara que se põe durante quatro dias; e Dioniso, do vinho que era, passou a
deus da cerveja...
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