quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

o carnaval

Só podemos destruir
sendo criadores.
Nietzsche

Em toda  passagem de ano comemoramos um ano novo. Um ano velho se vai, um ano novo vem. Mas o ano novo não é um começo radical a partir do  zero: ele é a continuidade de um mesmo tempo. É por isso que o ano novo é contado, recebe um número. O nosso, por exemplo, é 2016.  É um ano novo de um mesmo tempo que progride e é numerado, então, com um ano a mais. O ano novo é um novo ano de um mesmo tempo, e não um tempo novo.
Entre os gregos antigos, o tempo era vivido de outra forma, uma forma mais drástica, mais radical. O tempo não era concebido de maneira linear. O tempo linear é o da linha que progride do menos para o mais, numericamente. O tempo linear começou  com a condição de um dia ter termo  ou fim. No nosso calendário linear, por exemplo, estamos no ano 2016. Este ano foi precedido pelo 2015 e será sucedido pelo 2017.A lógica que preside essa contagem numérica do tempo é incompatível com a ideia de que essa contagem seja infinita, dado que o infinito, exatamente por sê-lo, não pode ser contado ou numerado. Assim, a razão de contarmos o tempo deve-se ao fato de que o tempo, um dia, terá fim. A causa que explica o seu fim está no seu próprio começo: o ano zero. O tempo começou e terminará em razão de um motivo não temporal, metafísico, transcendente. Cabe a pergunta, pergunta de criança: qual será o último ano novo antes do fim dos tempos? Que número ele terá? O progresso no tempo linear é, paradoxalmente, a aproximação de um fim.
Os gregos antigos concebiam o tempo como repetição cíclica. O tempo é uma repetição, e não uma progressão numérica. Dois eventos determinam o ciclo do tempo: o nascimento e a morte, a criação e a destruição. O tempo nasce, cresce e morre, como tudo o que é vivo. Porém, o tempo renasce, vencendo sua própria morte. Mas o tempo que nasce é um tempo novo, que nada tem a ver com o que morreu. O tempo novo também não é o desenvolvimento de um tempo antigo. Por isso não se pode dizer que é o ano novo de um mesmo tempo, pois é um tempo novo que nenhuma data ou número pode determinar. O tempo novo não é precedido de um passado, tampouco é ele o herdeiro de costumes antigos. O tempo novo não é precedido de um tempo antigo; muito menos será ele o tempo antigo de outro tempo novo. Ele é tempo novo, renascido outro. É no tempo novo, e não no tempo morrido, que o tempo mostra sua verdadeira face: pois todo tempo é novo, assim como é todo dia, todo instante, desde que os vinculemos ao tempo que nasce, e não ao habitual relógio ou ao convencional calendário.
Para os gregos antigos, não é o ano que é novo, não é o dia, não são as horas; é o tempo que é novo, e esse tempo novo não o podem medir os anos,os dias, as horas ou qualquer outra medida determinada. Quantos tempos novos já existiram? Impossível numerar, pois tudo o que é singular foge aos números e quantidades.Infinitas vezes já houve um tempo novo. Apesar disso, sempre haverá tempo novo. O tempo novo é uma repetição da novidade, pois é da essência da novidade repetir-se diferente. Não é o tempo antigo que causa o tempo novo: este nasce tendo por causa ele mesmo. É para  criar-se novo que ele se destrói como antigo.Repetindo-se, o tempo  sempre retorna, diferente. O tempo não é eterno: eterna é a repetição através da qual o tempo retorna, novo.Do tempo novo não pode haver lembrança, embora ele traga consigo a semente de uma nova memória, na qual se poderá escrever uma nova história.
Foi essa concepção de tempo que traduzia a experiência de Orfeu, o poeta que foi ao inferno e voltou, que foi à morte e retornou . Também é essa concepção do tempo que inspira o deus Dioniso, que é o deus dos renascimentos. E é este deus que, outrora, era cultuado no carnaval. Esta festa nasceu como celebração desse tempo novo. O carnaval era a festa onde a morte e a vida se encontravam, sem brigar ou entrarem em guerra. Esse encontro era celebrado com festa, com alegria. O tempo que morria era celebrado, não era chorado; e o que nascia também era comemorado. Morria a terra, renascia a terra; morriam os homens, renasciam os homens.E o que renascia não era o morto que ressurgia, mas  a vida mesma mais viva.
Posteriormente, essa festa foi apropriada pelo Estado grego e pelos mecenas das artes, sobretudo o teatro. Também os comerciantes de bebidas se aproveitaram dessa festa. O que era experiência e ruptura, tornou-se rito. Foi a partir de então que a destruição se perdeu da criação, de tal modo que o antigo se perpetuava fingindo-se novo. A festa não era mais a expressão do tempo novo, mas tão somente a suspensão temporária de um mesmo tempo. A experiência radical com a novidade se transformou em data no calendário das festas costumeiras e  programadas. E Orfeu se tornou apenas uma máscara que se põe durante quatro dias; e Dioniso, do vinho que era, passou a deus da cerveja...








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