No meio da noite, sozinha em seu
quarto, a criança expulsa o medo cantando (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 382).O
canto é territorializante:ele cria um território no qual a criança, não obstante a noite,
tanto a exterior quanto a interior, apesar desta noite a criança acha/inventa
onde habitar. O canto cria uma consistência, ele produz um território existencial. Este não se
confunde com um espaço meramente físico, assim como não é meramente físico o
pantanal de que fala Manoel de Barros : “O que eu gostaria de dizer é que o
chão do Pantanal, o meu chão, fui encontrar também em Nova York , em Paris, na
Itália,etc” ( 1992, p. 328).Cantando, a criança pode até se mover, ela pode até
mesmo saltar, embora já seja um salto, um salto para fora do caos, o próprio
canto que ela entoa: “ela salta do caos a um início de ordem no caos” (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p 382). O poeta
enfrentou questão semelhante: “São 30, são 50 cadernos de caos. Preciso
administrar esse caos. Preciso de imprimir vontade estética sobre esse
material.(...).Tenho que domar a matéria”(1992, p. 334). Para a criança que
canta , não importa a letra completa, importa apenas o estribilho, a repetição
que o estribilho é. A criança inventa
um território, ela entra em um ritornelo (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p. 381). Dois
elementos constituem um ritornelo: a repetição e a diferença. Por isso, todo
ritornelo é prática de invenção de um estilo: “Repetir repetir - até ficar
diferente./Repetir é um dom do estilo”(1997b,p11). O ritornelo é afirmação de
um ritmo, tal como o que inventa o próprio poeta ( 1992, p313).
O território não é um espaço
físico, tampouco meramente psíquico; ele não é apenas externo ou interno. São
os ritmos que nos mostram isso: os ritmos não pertencem exclusivamente ao
externo ou ao interno, eles habitam um entre-dois (DELEUZE E GUATTARI,
1980, p. 385). Os ritmos são entidades de limiares, de travessias. O canto do
passarinho, por exemplo, não pode ser reportado apenas a elementos endógenos ao
organismo ou a elemento exógenos, como agressividade contra um rival, marcação
de território, etc. Decerto que estes fatores existem.Todavia, enquanto ritmo,
o canto é territorializante : ele inventa territórios. E é por isso que os
passarinhos produzem seus territórios no próprio canto, e este pode trazer um
componente de desterritorialização que faz cessar o canto para iniciar o voo, o
"bater de asas".O canto é territorializante porque ele é produção de
ritmo.O mundo interno e o externo podem ser codificados. Mas os ritmos obedecem
a fenômenos de transcodificação ou transducção.A mosca, por exemplo, possui seu
código; a aranha, por sua vez, também possui o seu. Contudo, quando a aranha
produz sua teia, esta permanece invisível à mosca. Isto porque a aranha , antes
de capturar a mosca, capturou seu código, o transduccionou, de tal modo que a
aranha inventa uma mosca que é um ritmo-mosca (DELEUZE E GUATTARI, 1980, p. 386). Não é a
“mosca indivíduo” ou a “mosca espécie” a mosca que a aranha inventa: é a
singularidade-mosca, a diferença-mosca - o que os medievais chamavam de hecceidade.Outro
exemplo: a orquídea fabrica em suas pétalas o órgão genital de uma vespa . Ela
o faz porque apreende o ritmo-vespa, a expressão-vespa, o acontecimento-vespa.
A orquídea inventa um devir-vespa, ela o faz, diria o poeta, por
“imitagem”. O ritmo passa entre os gêneros e as espécies, que são códigos ou
formas; é por isso que o ritmo não é uma mera forma ou o informal, ele é um deslimite.Ao
encontrar o seu ritmo, a sua expressão, o artista atinge um ponto onde se
produz um "delírio ôntico"
(2004), pois “poema é o lugar onde a gente pode afirmar que o delírio é
uma sensatez”, (1998 p. 81).Os “delírios
ônticos” são como “os impossíveis verossímeis de nosso mestre Aristóteles”(
2010d, p.7).Este ponto , esta metamorfose, não é sentimento ou objetividade,
pois passa entre os dois, e entre os dois inventa um sentido que renova a
ambos: “desabre outra pessoa” (2007,p. 39), inventa-se outro mundo. São os passarinhos, com seus cantos,
os autênticos produtores de ritmos.
(flautista Antônio Rocha)
( poema de Décio Pignatari)
Nenhum comentário:
Postar um comentário