Cego é quem vê só até onde a vista alcança;
mudo é quem só se comunica com palavras.
Candeia
Vem do Iluminismo a idéia de que existe
uma dimensão material da cultura. Não apenas os livros e os objetos artísticos
ensinam ou documentam, as realidades materiais também podem ser documentos ou
testemunhas que “falam” acerca de si próprios e daqueles que os fizeram,
seja este “autor” o homem ou a própria natureza.
Essa percepção de que a cultura
também se inscreve na materialidade rompeu com a visão cartesiana,segundo a qual
apenas o imaterial seria portador dos valores espirituais e humanos.
Todavia, a valorização do material se fez ao preço da perda do que outrora era sua alma.Toda e qualquer indagação fora do útil passou a ser denunciada como metafísica romântica.O imaterial começou a ser identificado com a exoticidade de povos sem a "verdadeira cultura", exatamente a cultura material da civilização europeia e da América do Norte.O imaterial seria tão somente mitologia de povos atrasados que ainda não acederam à razão civilizada. Tanto a direita quanto certa esquerda se uniram nesse ponto: desconsiderar o
imaterial, o intangível. Este seria,quando muito, a intromissão da subjetividade na ordem objetiva das coisas.
Para os que teorizaram mudar tal sociedade, a Revolução não viria pela experiência com o intangível e com as ideias,descobrindo assim sua força libertária, mas pela mudança de mãos na posse do tangível : este seria tirado,mesmo que à força, das mãos da burguesia e passaria para as mãos do Estado.Ora, o intangível é o campo das ideias. A ideia não é propriedade do capital, tampouco do Estado. Por isso, as ideias foram relegadas a um segundo plano, como meras coadjuvantes no protagonismo das
coisas,estas sim positivamente dadas .A idéia, ao contrário, é sempre um
problema para aqueles que gostam de construir cercas, físicas ou simbólicas, em torno das coisas.
A contracultura de 68,como movimento de resistência, não foi exatamente um movimento para destruir a cultura reativamente. Diferentemente, a contracultura lutou posicionando-se a partir dos fluxos do intangível que a cultura do tangível asfixiava. Resistir também é introduzir o popular como dimensão da cultura, como pop'art e pop'filosofia.
Como o próprio termo indica,o tangível
é o que pode ser tocado, medido, cercado, pesado, guardado, fechado em
caixas,vitrines ou mesmo em cofres.A realidade tangível mais cobiçada são
exatamente os tesouros, embora poucos, pouquíssimos privilegiados, podem
tocá-los e tê-los, às vezes os surrupiando de seus verdadeiros donos ( a
história dos colonialismos o atesta,bem como o roubo feito pelos
nazistas dos acervos dos museus pertencentes aos povos que eles
dominaram).
Quando o tangível se torna
patrimônio,muitas vezes se suspende, paradoxalmente, o princípio que o
faz ser o que ele é, de tal forma que se passa a tratá-lo como se intangível ele
fosse, e assim não se deixa tocá-lo.É uma espécie de religião do tangível que
assim nasce, religião esta que muito interessa às especulações financeiras
dos mercados de arte .
O intangível, diferentemente, é aquilo
que não se pode tocar, pesar,medir. Somente o pensamento e a sensibilidade
podem apreender o intangível. O intangível não é o etéreo ou o abstrato.
O intangível é o sentido, o sentido enquanto valor.Um valor
que não pode ser reduzido aos valores econômicos, por mais que os
mantenedores das universidades e instituições culturais o tentem.O tangível
pode ser posse particular de um colecionador.O intangível, diferentemente, é de
natureza comum.E o comum não pode ser posse privada ,tampouco posse pública (
como bem do Estado). Do comum se participa.O comum se descobre,se inventa,se
institui.
A própria linguagem mostra o quanto colocamos o tangível à frente do intangível, e o fazemos de juiz deste, já que definimos o intangível de forma negativa: o "in" de intangível é termo negativo, de tal modo que o intangível seria literalmente o não-tangível,assim como o infinito é o não-finito.Não se trata apenas de mera questão de linguagem:trata-se também, e sobretudo, do modo como representamos a realidade.Imaginamos que o infinito é uma negação do finito,supomos que o intangível é uma negação do tangível.Mas não seria o contrário?Não seria o finito uma negação que tomamos como coisa positiva exatamente porque nos fechamos ao infinito?Não seria o tangível uma negação do intangível enquanto processo sempre aberto?Todavia,tomar o intangível como positivo não implica em tornar negativo o tangível, pois tal proceder se mostraria refém das dicotomias que apenas veem o preto e o branco,ignorantes que são das heterogêneas e múltiplas cores. Apreender o intangível como positivo reconcilia o tangível com a mudança,com os processos,com os devires, desde que vejamos o tangível como formando um com o intangível.
A quem pertence o intangível? Um objeto
tangível pode ser guardado.E o intangível, ele pode ser guardado? Clarice
Lispector dizia que aquilo que não podemos segurar com as mãos devemos
aprender apenas tocar,mas com a ponta do pensamento, com a extremidade de nós
mesmos, pois é aí que está a sensibilidade:é nessa região que nasce o afeto,o
contágio. O intangível só existe se nos contagiarmos com ele, se nos deixarmos
afetar.
Desvallées afirma que o mais
potente utensílio criado pelo homem foi o conceito, e este não cabe em uma
vitrine. Só o que possui tamanho menor que os limites de uma vitrine pode ser
guardado nela.Mas e o que não tem limites? E o que é deslimite? É
em nossa alma que o intangível entra,para assim abri-la ao mundo,à natureza,ao
social,à linguagem. O intangível entra para que nossa alma salte,voe,invente
uma linha de fuga (linha de fuga que a leve, no entanto, até
ela mesma, ao seu processo e devir,ao seu crescimento, à sua potência).
Assim, cremos ser uma falsa oposição
aquela que fala em patrimônio tangível/patrimônio intangível. Tal
dicotomia é herdeira de uma visão dualista do homem,uma visão cartesiana, que
separa espírito e corpo. Muitos são cartesianos sem o saberem, mesmo que seja
um cartesianismo pelo avesso ou de cabeça para baixo. Os que priorizam o
tangível acabam por reificar a técnica e fazê-la de ídolo ( no
sentido de Francis Bacon).Por outro lado,os que se aferram no patrimônio
intangível acabam reféns de um idealismo sem corpo.Um idealismo
improdutivo, enfim. Eis a dicotomia: um fazer acéfalo em litígio com um
idealismo improdutivo.Um intangível que despreza o tangível é mero platonismo;um tangível que ignora o intangível é ignorância mesmo ( o que nada tem a ver com falta de escolaridade: há ignorâncias tituladas...).
As dicotomias são como fronteiras
rígidas que separam Estados em guerra ou em mútua desconfiança. E é na
fronteira dicotômica que tais Estados colocam seus cães de guarda,para
assim impedir as misturas,as linhas de fuga,os agenciamentos,enfim,a produção
do comum.
Pensando com Espinosa essa
questão,parece-nos que é um falso problema essa dicotomização do
patrimônio ( dicotomia esta que está apoiada mais em questões jurídicas
ou administrativas do que culturais ou educativas). Só existe um patrimônio,
não existem dois. Existe um único patrimônio que pode ser
apreendido/conhecido mediante duas perspectivas diferentes. O tangível é o
intangível mesmo apreendido a partir de uma perspectiva diferente;o intangível
é o tangível mesmo apreendido segundo uma perspectiva diferente. Não só o tangível
e o intangível são patrimônios, também o são as perspectivas, os olhares,os
afetos que os apreendem.
Só existe um único patrimônio que se
expressa de dois modos diferentes,como tangível e como intangível. É preciso
descobrir e fazer viver esse terceiro que une o tangível e o intangível, sem
que eles percam suas respectivas diferenças. Então, existe o tangível, o
intangível e as perspectivas que temos deles. Estas perspectivas são o maior
patrimônio que podemos cultivar. E a essência da cultura é esse cultivo.
A perspectiva é o conhecimento que
também é autoconhecimento, o conhecimento como verbo,como potência:conjugação e
agenciamento entre o pensar, o sentir, o agir e o criar.E o que se cria é
sempre um sentido,sentido este nascido no encontro com o patrimônio.Ter
uma perspectiva nada tem a ver com emitir uma opinião.Não raro, a
mera opinião encobre uma ausência de perspectiva.A perspectiva é a prática
do encontro, pois é no encontro que é construído o comum.