quarta-feira, 24 de outubro de 2012

o amor em espinosa



Nossa suprema felicidade ou infelicidade depende da qualidade do ser 
com  o qual nos unimos através do amor.

Espinosa (Tratado sobre a emenda do intelecto)




I-Segundo Espinosa, quanto mais causas estão envolvidas na produção de uma coisa, mais esta coisa existe e menos ela pode ser destruída. O muito torna forte o um que dele nasce, a multiplicidade fortalece a vida da singularidade que lhe permanece ligada: a singularidade lhe permanece ligada não de fora, mas por dentro, intimamente. Um exemplo bem simples: o amor.Se o amor que sentimos por alguém tem por causa apenas um aspecto desse alguém , mais fácil esse amor poderá ser destruído: basta que desapareça esse aspecto que causou o amor .Os amores vencidos pelo ciúme, os amores infelizes, os amores inconstantes, os amores que fazem sofrer, todos esses amores têm por causa poucas causas, isto é, são poucos os aspectos do ser amado que realmente amamos. Então, passamos a querer modificar os outros aspectos que não amamos, o que só conduz à incompreensão , decepções e mútuas acusações de desamor. Se amamos alguém por causa da aparência de uma parte do seu corpo, poderá morrer o amor se esta parte mudar de aparência, o que sempre acaba ocorrendo com o tempo ou por um acidente.Mais grave: se amamos alguém por algo que lhe seja externo, como bens , propriedades ou poder, basta haver a diminuição ou perda dessas coisas para que o amor assim nascido também desapareça ou se perca.A autêntica beleza, além disso, nunca nasce apenas de um aspecto físico , mas da composição de elementos físicos e não físicos .Na mitologia grega, por exemplo, a graça , que é a alma de toda beleza,era representada por três irmãs: as Graças, cada uma diferente da outra ( o que significa dizer que a graciosidade de alguém sempre se deve, no mínimo, a três aspectos que nela estão de acordo).
Assim, diz Espinosa, o amor por alguém, seja esse alguém um par ou um amigo, será mais potente se esse amor tiver por causa vários aspectos desse alguém, e não apenas os aspectos físicos que o tempo pode mudar; o amor existe   mais   quando amamos  também os aspectos invisíveis de um ser, aspectos estes que se sente mas não se  pode tocar ou ver. Reduzir alguém a um aspecto apenas torna mais fácil a pretensão de querer dominá-lo e controlá-lo. Querer dominar é ódio, não amor.Se nosso amor, diferentemente, tem por causa vários aspectos, desse amor não nascerá o querer dominar, pois tal amor nos produzirá novos aspectos, que serão nosso ser ampliado.As pessoas não são apenas rosto ou corpo, muito menos carros ou profissões, elas também são atmosferas, acontecimentos, sensações, mistérios.Sobretudo, que seja causa do seu amor a pessoa inteira e mais o universo que está dentro e fora dela. Quanto mais causas, menos poderá ser destruído o amor assim nascido e vivido, seja ele o amor no sentido estrito ou o amor universal, como aquele que sentimos por um amigo. E mesmo quando da pessoa amada morrer tudo o que for visível, permanecerá ainda o amor causado pelo que nela é eterno.E o eterno em alguém nunca é uma coisa só, mas uma multiplicidade de aspectos . Antes de tudo, seja você mesmo um ser que uma multiplicidade faz ser. Não ser vários,voluvelmente, mas ser uma singularidade que existe porque muitas causas o fazem .Um estilo, por exemplo, nunca se expressa por linha reta, mas pelas linhas curvas, espiraladas, serpenteantes, labirínticas, abstratas...pois tais linhas expressam as várias forças que as dobram e as fazem ter curvas, como tudo o que é vivo.Sobretudo, ame-se  a partir dessas muitas causas, e não apenas a partir do seu ego.O amor que tem muitas causas , embora seja um só, nos produz uma infinidade de coisas: ele também se torna causa para que em nós nasçam muitas coisas, sobretudo mais amor em seus múltiplos aspectos.
 Por outro lado, torno-me capaz de vencer o ódio quando também o refiro a várias causas, e não apenas à pessoa ou coisa que odeio.Não apenas devo referir o ódio a várias causas, como devo compreender essas várias causas como o produzindo: incluindo eu mesmo, pois sou causa parcial do ódio que sinto.Isso não significa relativizar o ódio que sinto, e sim tornar absoluta a idéia adequada que me permite compreendê-lo.Ab-soluto: o que não se dissolve.Somente a compreensão impede que o ódio nos dissolva.Para Espinosa, o amor existe mais do que o ódio:reportar o amor a muitas causas o torna ainda mais forte, ao passo que o reportar o ódio a muitas causas o faz diminuir. Quando associamos o ódio a apenas uma causa, mais odiaremos a pessoa ou coisa que imaginaremos ser a causa exclusiva do ódio que sentimos. Esse é o princípio da demonização. As causas são as diferentes e múltiplas realidades que constituem tudo o que existe: quanto mais realidades são conectadas ao amor, mais o amor existe; quanto mais realidades são conectadas ao ódio, menos ele existe. Isso porque o ódio, como paixão triste, é mais imaginação do que realidade.Não obstante, isso não impede que o homem se deixe dominar pelos frutos de sua imaginação, dada a ignorância sob a qual muitas vezes vive, e , cego, roube,mate, minta, zombe, enfim, empreste seu coração , mãos e cérebro para que por eles viva um fantasma.A escuridão não é um outro princípio ativo distinto da luz , mas tão somente a ausência  da luz como princípio ativo:"o dia que nasce é a noite ao despertar", canta Alvaiade. Em Espinosa, a luz é idêntica ao amor: somente o amor é verdadeiramente causa. Quando assim o vivemos, o amor se torna inseparável do desejo.
O amor em Espinosa não se confunde com o Eros grego, tampouco com a visão romântica, que acabou impregnando toda a compreensão posterior desse afeto, reduzindo-o ao mero sentimento psicológico, subjetivo. Espinosa é o herdeiro de certa visão romana desse afeto, como se encontra por exemplo no filósofo Lucrécio. Não a Roma centrada em si mesma, belicosa e imperialista,e sim a Roma como microcosmos da natureza, como cosmópolis :cidade do cosmos, do mundo. É sob essa inspiração que nasce a concepção do amor como a-mor, isto é, a junção da letra "a" com função de negação ( como em a-fasia, "sem fala") e a abreviação da palavra "morte". Desse modo, para os romanos de então, como para Espinosa, o amor é "não morte": fora do amor, tudo é morte . Não apenas morte física, mas morte no sentido mais amplo dessa palavra.
O amor que o sábio sente e vive é o mais indestrutível,pois tal amor tem por causa o que nunca morre, e que está presente em cada coisa, mesmo naquelas diminutas coisas que ninguém vê ou dá importância. O sábio sente que sua essência tem por causa o universo inteiro. Por isso, ele sente de alguma maneira que sua essência é indestrutível, pois para destruí-la seria preciso destruir o universo inteiro. Ele sente isso sem alarde, sem se gabar, sem se achar um santo ou alguém acima dos outros. Como dizia Manoel de Barros, o sábio-poeta é aquele que diz “eu-te-amo para todas as coisas”.
Remeter a existência de algo a muitas causas somente faz sentido quando as referidas causas são outros modos finitos existentes. Se conseguirmos perceber uma relação necessária entre algo e muitas causas ,vencemos a contingência e sua inconstância, uma vez que a contingência se caracteriza pela relação restrita entre algo e pouquíssimas causas, ou pela imaginação de que algo acontece devido a “causas” incompreensíveis. Todavia, podemos ainda relacionar a existência de algo à sua essência, o que significa dizer que não é pela mera relação entre existências que a compreenderemos, mesmo levando ao infinito a cadeia explicativa.A compreensão da essência de algo implica na relação deste algo com sua causa imanente, e esta nunca lhe é exterior.Tudo o que realmente existe traz em sua imanência a causa que a produz e a torna inteligível.Descobrimos, assim, um infinito de potência, que é um infinito de capacidade. O que pode o amor? Pode um infinito. Esse infinito que o amor pode não lhe é exterior, como o são as infinitas coisas que existem fora de nós. O infinito que é imanente ao amor é imanente a todas as coisas finitas que nos são exteriores: é experimentando em nossa imanência esse infinito que compreendemos o infinito que é imanente a cada coisa, e não experimentando cada coisa uma a uma, como para ter certeza de que a Natureza lhe está imanente, isto por que o infinito não nasce da mera soma de coisas finitas. As coisas finitas não se tornam infinitas pela soma delas, mas pelo infinito que já lhes é imanente na singularidade de cada uma. O infinito não nasce da soma de finitos exteriores uns aos outros: o infinito é imanente a cada coisa em sua diferença, em cada coisa singular o infinito está inteiro.O infinito é o que multiplica cada coisa singular,dotando-a da potência de produzir o que sua mera existência não nos deixa conhecer totalmente.O infinito não multiplica algo por mil, um milhão ou um bilhão: ele multiplica cada coisa tornando múltipla sua potência, pois múltipla é toda potência que singulariza.
Desse modo, compreendemos o verdadeiro sentido de “reportar o amor a muitas causas”: para assim compreendermos que ele não se torna mais forte quanto mais depender de muitas coisas externas, do mesmo modo que um escravo não se torna livre pelo acréscimo infinito de seus senhores. Um escravo se torna livre pela causa da liberdade, e esta nunca nasce do aumento da escravidão, mas pela sua destruição.Todavia, a liberdade não é destruição da escravidão, mas afirmação de liberdade, e liberdade nada tem a ver com escravidão. De maneira análoga, as muitas causas que tornam o amor mais forte são todas já amorosas, são todas já amor. Logo, já são imanentes ao amor, e não lhe estão fora.

II-Toda produção de um indivíduo pressupõe um processo de individuação. Um automóvel, por exemplo, antes de ser um indivíduo com seus contornos e características,ele foi chapa de ferro, borracha, aço, etc. Ou melhor, nem mesmo isso ele era, pois uma coisa é o ferro, a borracha, etc., outra coisa é um automóvel. Ademais , o processo de produção de um automóvel significou a criação de um indivíduo, não de uma ideia geral ( "O" automóvel).Todo indivíduo possui semelhanças e diferenças em relação a outros indivíduos. Tudo o que existe foi produzido de forma análoga. Um indivíduo humano, por exemplo, é o produto de um processo de individuação químico, físico, biológico e psíquico. Quando tal indivíduo assume papéis e funções na sociedade, um novo fator entra no processo de sua individuação: o fator social. Todo processo de individuação nunca termina, dado que constantemente o indivíduo lida com elementos externos que ameaçam a sua individualidade.Para conservar a si mesmo, não raro os indivíduos disputam por elementos necessários à sua manutenção como indivíduo.É comum ao indivíduo ver-se  em oposição   a um meio externo físico ou social que lhe pode ser hostil ou favorável, conforme o tempo e a situação.Mas e o amor, onde entra?
O amor é um processo também, assim como a individuação. Como tal, ele também produz. O amor é um processo de singularização.A singularidade não é a mesma coisa que o indivíduo, disso sabe quem ama, mesmo que não tenha a consciência dessa diferença.Antes de se amarem , Romeu e Julieta eram dois indivíduos de duas famílias que se odiavam.Antes de se amarem , era assim que eles se conheciam. Contudo, quando se amaram perceberam que o antigo conhecimento, o que fomentava o ódio, era na verdade uma forma social de ignorância.O amor faz conhecer coisas que o conhecimento do indivíduo ignora. A ciência ora pende para o universal,como no Racionalismo, ora para o individual, como no Empirismo.Entretanto, nenhuma dessas formas de conhecimento consegue atingir o singular.Conhecer o singular torna singular a nós também.
Quando amamos algo ou alguém, singularizamos este alguém: criamos uma realidade que existe graças ao nosso desejo. Embora não seja meramente química, física, biológica, psicológica ou social, a realidade criada pelo amor vivifica tais outras realidades, as potencializa, integrando mundo físico e espiritual como  partes de uma mesma realidade que se conhece sentindo. É o amor que singulariza. Quando amamos algo, este algo passa a existir mais, uma vez que sua existência aumenta também a nossa. Nesse sentido, amor e desejo são a mesma coisa, embora  desejo e prazer não sejam o mesmo. O prazer quase sempre se relaciona à posse ou destruição do indivíduo que provoca o prazer ( o prazer da comida, da bebida e outros prazeres corpóreos gastam elementos que novamente precisam ser reparados ou substituídos quantitativamente, daí a possível vinculação do prazer com o vício, que é a tara pela quantidade), ao passo que o desejo expressa sempre um aumento de existência, e este aumento nunca é um fenômeno meramente quantitativo ou numérico. Amar a si mesmo, por exemplo , é singularizar-se, mais do que meramente se individualizar se opondo a outros indivíduos, ou acumulando coisas. Singularizar-se é produzir um estilo.
Os processos de individuação nos apresentam os indivíduos como realidades já prontas. A gíria e o jargão profissional têm algo em comum: são indivíduos linguísticos que, para pertencermos a um grupo, os tomamos e os reproduzimos, apesar da aparência de que estamos sendo originais, sobretudo no caso da gíria.O poeta, ao contrário, singulariza a palavra, fazendo-a, como diz Manoel de Barros, "abrir o roupão para ele". Singularizar é tornar-se ativo, produtor.
Deus é amor, afirma Espinosa. Deus ama a si mesmo como realidade singular, não como indivíduo. Deus é singular, uma vez que ele é ativo perante ele mesmo: ele se autoproduz produzindo a tudo. E cada coisa que ele produz é uma modificação dele: enquanto tal,cada coisa é singular. É por isso que o amor nos faz expressão do divino: pois onde todos somente  vêem indivíduos, aprendemos a ver a singularidade, a espontaneidade, a arte. Como singularidade, aprendemos a não nos opor a um meio externo que supomos nos limitar, dado que apreendemos o infinito que nos é imanente.
Quando amamos alguém, singularizamos esse alguém, singularizando a nós mesmos.Percebemos que somos frutos de um processo que não nos é anterior, tal como o processo de individuação é anterior ao indivíduo; diferentemente, experimentamos o amor como um processo que é inseparável de nós: quanto mais ele se potencializa, mais nos potencializamos, quanto mais o produzimos, mais ele nos produz.O amor nos torna "forma em rascunho".
Amar a Deus é expandir o amor ao universo inteiro, deixando o universo inteiro se expandir  em nosso íntimo como processo que nos singulariza e nos faz existir mais, posto que nos torna parte singular de sua Potência que a tudo produz, conserva e regenera.
Quando compreendemos/experimentamos a Natureza/Deus como causa de tudo, percebemos que o reportar algo a muitas causas é apenas o caminho para apreender a única Causa que produz a tudo. Assim, descobrimos o verdadeiro valor do "muito": muito não numericamente, como mera quantidade, mas muito como Potência que age mesmo no mais singular e raro acontecimento. O muito da Potência é o muito que multiplica cada coisa singular, tornando-a mais integrada ao Todo que a torna inteligível e compreensível.




















6 comentários:

Helanio Souza disse...

Continue escrevendo. Parabéns.

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Obrigado!
Abs,

Unknown disse...

Boa noite!

Ontem tive uma aula que me deixou intrigada quanto ao conceito de amor em Platão e Espinosa. Hoje resolvi pesquisar um pouco mais, e encontrei seu blog. Muito esclarecedor, obrigado!

Simone Rêgo, professora (SP)

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Olá, Simone!
Muito obrigado pela visita.Que bom que pôde ser de alguma ajuda.
Um abraço e volte sempre!

Unknown disse...

bom dia. poderia me passar a Referencia Bibliografia que você usou?

Elton Luiz Leite de Souza disse...

Bom dia. Como professor e profissional que exerce uma atividade pública, claro que me sinto feliz quando alguém demonstra interesse e quer saber mais acerca do que escrevi e expus. Porém, não me sinto à vontade respondendo, para fins de orientação e recomendação de leitura, a perfis anônimos ou "fakes", mesmo que sejam elogiosos a mim. Pois o trabalho de orientação requer que o professor saiba a quem se dirige. Caso se sinta mais à vontade, pode escrever por e-mail, já que o meu está disponível publicamente, desde que se identifique. Grato.