quinta-feira, 25 de junho de 2015

geometria do deslimite

A relação de nosso intelecto com a verdade
é como a do polígono com o círculo:
a semelhança com o círculo
aumenta com a multiplicação
dos ângulos do polígono.
Mas a não ser que se transforme em círculo,
nenhuma multiplicação de seus ângulos,
mesmo que infinita,
fará com que o polígono
iguale o círculo.

Nicolau de Cusa

  
 Quanto mais lados um polígono possui, mais próximo ele está do círculo. Um triângulo possui três lados, o quadrado possui quatro. O quadrado está mais próximo do círculo do que o triângulo. O hexágono está mais próximo do círculo do que o quadrado. O hectágono, polígono que tem cem lados, está mais próximo do círculo do que o hexágono. O megágono, polígono de um milhão de lados, encontra-se mais próximo do círculo do que o hectágono.Um bilhão de lados possui o gigágono,  e isto o faz estar mais próximo do círculo ainda.  Mas acima do gigágono existem ainda outros incontáveis polígonos com mais lados ainda, todos se superando em estar mais próximo do círculo.

Um círculo, porém, não possui um trilhão ou um quatrilhão de lados, pois ele simplesmente não possui lados.Por isso, a única maneira de um polígono alcançar o círculo  é se tornando um, é coincidindo com ele.Um polígono somente pode alcançar o círculo se libertando do afã de ampliar seus limites, pois é isto o que acontece quando ele aumenta seus lados.Coincidir com o círculo é um deslimite, diria Manoel de Barros.
Comparado com um polígono que tem menos lados, o polígono de mais lados parece que está mais perto do circulo.Mas comparados com o próprio círculo, todos os polígonos lhe estão a igual distância, dado que o círculo é incomparável.

 Como o círculo  não possui lados, ele está além ou aquém da lógica dos lados e das quantidades. O círculo não tem lados em excesso, tampouco lhe faltam lados.
A inteligência é como o polígono: ela tenta alcançar a Vida aumentando as teorias, tal como o polígono que aumenta seus lados achando que assim alcançará o círculo.Física, química, biologia, matemática, sociologia, psicologia, etc., são os lados do polígono-inteligência. Contudo,  mesmo que se aumente indefinidamente a quantidade cumulativa de tais ciências, nunca elas alcançam o todo da Vida, pois este todo é um processo, um devir. Diferentemente da inteligência, o pensamento é como o círculo:sua riqueza e multiplicidade não advém do aumento de teorias.
O pensamento coincide com a Vida.Ele já está nela, e ela já está nele, em sua imanência.No círculo  absoluto da Vida , o pensamento , a poesia e a vida são a mesma coisa: produção, poiésis.
O círculo da Vida, porém, não tem centro ou perímetro determinados. Ele é um círculo cujo centro está em toda parte e cujo perímetro não está em parte alguma.
Todos os polígonos estão no círculo, ele que não é teoria, mas ideia  ̶ ideia que também é Afeto.
Olhado apenas nele mesmo ( como Natura Naturante, diria Espinosa), o círculo é a coisa mais simples que existe. Mas quando intuímos todos os  polígonos que estão compreendidos nele, o círculo nos aparece então como a coisa mais complexa que existe, pois é a mais variada, múltipla, rica, mas sem deixar de ser simples.Todos os polígonos estão no círculo, sem que isto o aumente ou exceda.
Não é aumentando ou diminuindo os lados que um polígono pode coincidir com o círculo.Não é aumentando a inteligência que se alcança a sabedoria, não é contando todas as estrelas que existem no universo que se compreende intuitivamente o que é o céu.Não é meramente aumentando o número de ações que fazemos que nos tornamos ativos, não é proliferando o número de palavras que dizemos que aprendemos a ter o que dizer. Mesmo que tivéssemos um trilhão de dias para viver isto não significaria que , somando esses dias, chegaríamos a viver a eternidade, pois esta somente a podemos viver se coincidirmos com ela.
Um polígono apenas  pode coincidir com um círculo na medida em que se liberte do aumentar e do diminuir, isto é, quando não está mais refém da comparação quantitativa. Não é aumentando os lados que o polígono aumenta sua potência. O círculo é a figura de maior potência, exatamente porque esta não aumenta ou diminui, mas é plenamente, afirmativamente.





            





terça-feira, 16 de junho de 2015

livro:conexões, agenciamentos





(trecho do livro)

                    O AGENCIAMENTO DELEUZE-CLÁUDIO

Elton Luiz Leite de Souza[1]


Qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir  o que eles disseram , ou fazer o que ele fizeram,isto é, criar conceitos para problemas que mudam  necessariamente?
                                 Deleuze e Guattari, O que é a filosofia?

        A utopia é uma maneira questionante, não passiva, de se relacionar com o lugar. Como se sabe, "topos" significa, em grego, "lugar". Assim compreendido, o lugar não é apenas uma parte do mundo físico, pois  há lugares mentais, desejantes, incorporais, nos quais nunca se pode estar, apenas acontecerdevir. As palavras "estátua", "estático", "estar" e "Estado" se originam de um mesmo termo latino, stare , que significa "parada". Como dizem Deleuze e  Guattari ( QF), a etimologia é o atletismo do filósofo. Ela é um exercício do pensamento que nada tem a ver com as semânticas do dicionário, pois se trata de encontrar o acontecimento que dá origem às palavras, agramaticamente. Desse modo, há lugares que são de parada, como o é também um túmulo; são lugares de poder e de morte, enfim. Mas há lugares que são de processos, de devires, de metamorfoses, de agenciamentos. Os lugares de parada podem ser circunscritos por contornos ou limites, ao passo que há lugares, lugares quaisquer, cujas fronteiras são limiares em vizinhança  com outros lugares deles diferentes.
É sempre com a utopia que a filosofia se torna política (..): ela [a utopia] designa etimologicamente a desterritorialização absoluta (..). A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler, “Erewhon”, não remete somente a “No-where”, ou a parte Nenhuma, mas a “Now-here”, aqui-agora. (QF, p. 130).

              A geometria euclidiana pensa o lugar  como algo que mora dentro de uma cerca, de um limite determinável; já o lugar da utopia cresce à medida em que ousamos habitá-lo: são lugares que crescem conforme crescemos, tendo a liberdade como tamanho.





quinta-feira, 11 de junho de 2015

manoel de barros: transver o mundo




O olho vê
a memória revê
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.

Manoel de Barros

Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu  - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.







quarta-feira, 10 de junho de 2015

manoel de barros: o desnome




(trecho do livro)

A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um sujeito coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento
 O verbo tem que pegar delírio.



Este “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

não só com palavras se diz e ensina

achará o que procura no  conhecimento quem  tem fome e sede,
nada achará quem  só quer perfumaria


Quando pensava e falava, havia um ponto , um ponto enigmático, em que Heráclito parava de exercer o logos, e chorava. Nada mais dizia, apenas chorava.Então, os adultos se afastavam,  apenas as crianças ficavam perto dele.

Demócrito, por sua vez, interrompia seu filosofar com  estouros de riso.Não havia deboche ou ironia no seu rir, apenas alegria.

Sócrates punha um ponto final em seu filosofar sempre com longos silêncios meditativos, olhando para o nada.

Platão cessava seu discurso e se dirigia ao quadro para desenhar retas e formas geométricas,  dizendo  confiar mais nelas do que nas palavras.

Aristóteles , após ordenar as palavras, levava seus discípulos para verem a ordem  que preside o mundo: recolhia sementes, peixes, estrelas-do-mar, arraias, incontáveis animais e os punha em ordem, como se fosse um silogismo.

Os estoicos diziam que as palavras são apenas a metade do sentido: a outra metade é o agir, e assim eles ensinavam fazendo, agindo, não temendo a confusão do mundo.

Espinosa afirmava que há um  momento em que a palavra não conduz mais: é preciso então estender a mão e conduzir quem está perdido.

Nietzsche escrevia muitas vezes caminhando. Era comum  ele terminar de escrever um pensamento, fechar o caderno e continuar a caminhar por uma subida íngreme, cujo fim era o pico de elevadas montanhas, onde o ar é raro: lá, portanto, não se pode ficar muito, tampouco estar acompanhado de quem teme alturas.

Wittgenstein escrevia e parava. E o restante do que  queria dizer ele o fazia cuidando de jardins:  adubava, podava, colhia e oferecia , de graça, aquilo que cuidou e fez nascer. 

( para o amigo Evandro Affonso Ferreira, o último dos pré-socráticos)





quinta-feira, 4 de junho de 2015

o germen e o soma



poeta é ser que vê semente germinar.
manoel de barros

(trecho de artigo)
Uma ciência barroca da vida, a microbiologia, afirma existirem  duas dimensões nos processos vitais: o germen e o soma. O germen é mais do que a mera semente , e tampouco deve ser identificado com o código genético. O germen não é a semente, mas o que faz a semente germinar. Mas ele também não é a árvore, ele é o que faz uma árvore brotar de uma semente. O germen está entre a semente e a árvore: é o germen  que faz, na árvore pronta, ela produzir flores, frutos e sementes.O germen é uma singularidade, uma potência, um ritmo. O germen nunca é um ponto,ele é um dinamismo: ato de germinar. Não é apenas na semente que há coisas germinando: na árvore também sempre há coisas a germinar.Não é apenas o feto que germina, no homem adulto também germinan ideias, desejos, imaginações, ações: através destes e destas, o próprio homem germina, indo além de si mesmo, de sua forma, de seu tamanho.
Em grego, "soma" é o termo correspondente a "corpo".O soma, o corpo, é sempre o resultado da atividade de um germen. Os corpos podem ser medidos, mensurados, ao passo que os germens se medem por aquilo que eles produzem.As doenças são psicossomáticas, mas a salut é sempre produção de um germen.
A diferença entre germen e soma também habita a arte.As artes germinativas pressupõem a duração, ao passo que as artes somáticas dependem da extensão e suas dimensões.A dança, o canto e a música são artes germinais por excelência; a pintura, a escultura e arquitetura são artes somáticas.O realismo é sempre somático, mas intensas, expressionistas, são as artes germinativas.As artes somáticas impõem um limite; as artes germinativas, como a própria vida, afirmam e expressam sempre um deslimite.O cinema atesta que em todo soma há um germen que o tornou possível, dado que os fotogramas são o corpo, o soma, do germen da luz.A poesia tem uma origem germinal, a despeito de toda redução somática concretista ao corpo da letra ou ao do som.A lei é soma, mas a justiça é sempre germinativa: nasce dela mesma, e não das circunstâncias.Soma é a família, porém germen é o amor.Em descargas somáticas se consuma o prazer, mas  o germen do desejo sempre brota de si mesmo.O tempo cronológico é a soma, ou o soma, dos dias que se vão; todavia a duração é o germen da eternidade multiplicando cada acontecimento, fazendo-o permanecer.A filosofia possui seu corpo de doutrinas, seu soma de Súmulas e Tratados, contudo germinal é o filosofar.O significante é somático; germinal é o sentido.A posse das coisas  pode dar corpo às nossas alegrias, mas o germen da felicidade muitas vezes germina no despossuir-se em generosidade.








quarta-feira, 27 de maio de 2015

a fortaleza em espinosa



A palavra “fortaleza” nos faz imaginar algo cercado por muros espessos e elevados :no alto dos muros sentinelas montam guarda contra invasores e inimigos. Em tais fortalezas os homens guardam tesouros ou bens que querem proteger de usurpadores.
Ao falar das virtudes, Espinosa enfatiza uma delas em especial: a fortaleza.Mas a fortaleza em Espinosa não se constitui de muros ou cercas.Ao contrário, ela possibilita caminhos, agenciamentos.
As virtudes se distinguem das paixões. Estas nascem quando a alma padece.Este padecer pode gerar ódio ou amor, tristeza ou alegria.O padecer gera ódio e tristeza quando imaginamos que algo de exterior nos nega, ou mesmo algo de interior, quando o que nos nega somos nós mesmos.Quando imaginamos que algo nos nega, nasce uma tristeza em nossa alma.Há vários modos de imaginar que algo nos nega:podemos imaginar que ele não reconhece nossas qualidades, ou que as inveja, ou que as quer roubar,ou que as tenta diminuir, zombar, ridicularizar, difamar...Imaginamos que a única maneira que temos de nos proteger de tal destruição que nos ameaça é odiando aquilo que imaginamos nos odiar, é destruindo aquilo que imaginamos querer nos destruir.Ao ódio recebido ou imaginado, devolvemos com ódio efetivo. Pois quando devolvemos o ódio não o fazemos apenas imaginando:o   devolvemos falando mal do outro, pensando mal do outro ou mesmo lhe fazendo mal, direta ou indiretamente.Assim, mesmo que aquele que imaginamos  nos odiar não nos odeie de verdade, reagiremos como se assim o fosse. E o objeto de nosso ódio também poderá nos odiar, e agora de verdade, e não apenas em nossa imaginação.Ou seja, um ódio nascido da imaginação se torna um ódio de verdade, sem que se possa discernir um do outro. Pois quando o ódio nasce da imaginação ele já é uma verdade para aquele que assim imagina e sofre.
A imaginação se caracteriza por tornar presente o que é ausente.Toda imagem que ocupa presentemente a alma depende da imaginação.Quando nos lembramos de algo que aconteceu o fazemos tornando presente à nossa mente uma imagem, e esta imagem presente é mais imaginação do que memória. Mas também quando imaginamos que alguém nos ama ou odeia, assim o fazemos tornando presente uma imagem em nossa mente: a imagem do amor ou do ódio vinculado a determinada pessoa ou coisa.Quando um boxeador golpeia seu adversário ele não o faz movido por ódio, pois ele não vincula à imagem presente em sua mente o sentimento do ódio.
Mas o padecer também pode ser de alegria. Padecemos da alegria quando imaginamos que algo de externo nos ama.Imaginamos que ele nos quer bem, que fala bem de nós, que nos valoriza, que quer nossa amizade, que reconhece nossas qualidades, enfim.Ao imaginarmos que alguém ou algo nos ama, sentimos alegria.E dessa alegria sentida reagimos devolvendo amor.Mas se imaginarmos que aquele a quem damos amor rejeita esse amor que damos, podemos nos sentir diminuídos, negados, e assim novamente nasce o ódio, ódio este nascido do amor.Este ódio será tão grande quanto era o amor ofertado.
Assim , diz Espinosa, embora seja melhor amar do que odiar, o esperar ser amado em troca do amor que damos pode gerar o sentimento contrário do ódio.Tais são as armadilhas do padecer, do reagir.
As virtudes não são um padecer, elas são um agir. Elas não são paixões, elas são ações.Toda virtude é um agir.Padecemos quando aquilo que fazemos se explica mais por outra coisa do que por nós mesmos. Um exemplo: quando está bêbado um homem diz e faz coisas que se explicam mais pela bebida do que por ele mesmo. Passado o efeito de tal padecer, o homem poderá se arrepender do que disse ou fez naquele estado.O que vale para o estado de embriaguez vale para todos os padeceres de que sofremos.Muitos imaginam que somente conseguem fazer coisas sob o efeito da bebida, ou seja, imaginam que ser livre é fazer coisas que depois poderão se arrepender.O agir acontece quando aquilo que fazemos se explica mais por nós mesmos do que por outra coisa.Não que a ação nasça apenas de nós mesmos, de nossa vontade ou ego. Algo que fazemos se explica por nós quando nos tornamos capazes de fazer uma ideia adequada de nós mesmos, daquilo que desejamos.A fortaleza é uma virtude.As paixões têm contrários: o ódio é o contrário do amor, a tristeza é o contrário da alegria, e na vida podemos passar de um afeto contrário a outro, e isto em relação a um mesmo ser :aquele que antes amávamos, hoje odiamos; e aquele que antes odiávamos, hoje amamos. Esse vai e vem da alma de um afeto ao seu contrário chama-se exatamente flutuação ou volubilidade. Mas das virtudes ou ações não há contrário: a não ação não existe.Por exemplo, o mero não beber não cura o viciado do amor à bebida.O que é a alegria? A experiência de que nosso poder de agir aumenta. O que é a tristeza? A experiência de que nosso poder de agir diminui.Desse modo, por detrás de tudo está o nosso poder de agir. Nas paixões, ele flutua ao sabor dos encontros que fazemos, e assim nos torna inconstante.Conquistamos a virtude quando nos assenhoramos não das coisas, mas do nosso poder de agir.E o primeiro poder de agir que devemos nos apoderar para sermos livres é o poder de pensar: o pensar tem como potência ou virtude o compreender.Quanto mais a mente compreende, menos ela padece. E dessa compreensão nasce uma alegria que não é um padecer , mas um agir, alegria esta da qual somos causa: somos causa para nós e para os outros, na medida em que agiremos para auxiliar os outros para conquistarem sua alegria própria, e não invejar a nossa.
A fortaleza é uma virtude ético-clínica.Ela fortalece a alma . É ligando-se à saúde que a alma se fortalece, e não lutando contra a doença.A maior doença é o ódio, não tanto o que se imagina receber quanto aquele que de fato se dá.
A fortaleza possui duas metades: firmeza e generosidade.A firmeza é a fortaleza para conosco. Ser firme consigo não é odiar-se como se fôssemos uma criança irresponsável. Ser firme consigo não é ser para si um sargento ou general, como se fôssemos também um soldado.Ser firme consigo não é odiar-se.Quando busca o sol, a planta é firme consigo.O passarinho somente voa e vence o medo de largar o ninho quando é firme consigo.O viciado somente se liberta do vício quando é firme consigo. Somos nós mesmos que temos que ser firmes conosco, não um carrasco, não um pastor, não um general, e jamais seremos firmes conosco sendo para nós mesmos um pastor, um carrasco ou um general.Ser firme consigo nasce da liberdade para consigo.Ser firme não é ser rígido.Ser firme não é impor-se mandamentos ou cartilhas.Ser firme é vencer em si a flutuação que vai do amor ao ódio, e do ódio ao amor.
A generosidade é a fortaleza compreendida a partir da nossa relação com os outros.A firmeza é a fortaleza relacionada a nós mesmos, a generosidade é a fortaleza referida aos outros.Ser generoso não significa diminuir-se diante dos outros, tampouco aumentar os outros.
As palavras “generoso”, “gerar” e gênese têm uma origem comum. Todas têm relação com a palavra “nascer”.O generoso é aquele que faz nascer algo, o faz nascer por uma partilha, por fazer participar o outro de algo, e não apenas ele.O generoso faz nascer algo comum entre ele e o outro, mesmo que esse algo comum seja a capacidade de errar ou acertar.Ele também se esforça para fazer nascer no outro a capacidade da compreensão, para que assim ambos a partilhem.Assim, o generoso não é exatamente quem dá dinheiro, ou que dá algo na esperança de receber algo em troca. Partilhar não é exatamente emprestar ou dar. Pois ele não dá o que é exclusivamente dele, e é por isso que aquele que partilha também recebe, e é grato àquele que lhe permite ser generoso.Quando o juiz julga a partir da lei, e não segundo o ódio, ele partilha a justiça com o réu, e é generoso com este.Ele destrói no réu apenas aquilo que o diminui.A justiça não é posse exclusiva do juiz . A justiça não é posse, mas partilha.E toda partilha pressupõe um encontro, uma relação.A amizade não é posse de Pedro ou Paulo, mas aquilo que faz nascer Pedro e Paulo como amigos.A generosidade não é um perder ou um ganhar, mas um ser, um agir, um causar.

Segundo Espinosa, a fortaleza se torna mais forte quanto mais compreendemos , quanto mais a mente se torna virtuosa. Todavia, mesmo que não possamos tornar isso efetivo pela força exclusiva da mente, devemos usar ao menos a memória, para assim não nos esquecermos do que preconiza a fortaleza: firmeza para consigo, generosidade para com os outros, e não rigidez para com os outros e benevolência para consigo.


Obs.:
Espinosa é tão singular que tanto os racionalistas quanto os românticos reclamam sua herança.Sozinhos, entregues a eles mesmos, racionalistas e românticos são inimigos mortais: os racionalistas zombam dos românticos dizendo que eles sonham de olhos abertos,ao passo que os românticos acusam os racionalistas de engendrarem teorias insones.
 Os racionalistas usam Espinosa como arma para acuarem os românticos; os românticos se valem de Espinosa como escudo para se protegerem do ceticismo pragmático dos racionalistas. 
Os racionalistas  tomam Espinosa como uma espécie de “homem de gelo”, enquanto  que os românticos o exaltam como o precursor deles , sendo Espinosa, para eles,  a alma mais sensível que já existiu, cuja intuição do absoluto é sol que derrete toda frieza .
Sabe-se que Goethe ficou meses sem sair de casa, tomado que estava pela leitura da Ética : quando enfim saiu, o mundo já não era mais, para ele, o mesmo, pois já não era o mesmo o próprio Goethe:ele entrou em casa como homem da razão que até então era, a folhear com curiosidade acadêmico-erudita a obra do filósofo, e de lá, da casa e de si mesmo,  saiu ele poeta , com outra alma nova a morar em seus olhos.
 Muitos detectam uma inspiração espinosista ( ou  daquilo que Goethe pensa ser Espinosa...) nos célebres versos do poeta alemão: “Por mais longe que a razão nos leve, leva-nos mais longe o coração”.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

as rebeldias do poeta



(trecho do livro)

- Rebeldias
Quando adolescente,  Manoel de Barros conhece Oswald de Andrade e faz suas primeiras leituras de Rimbaud. Mais do que simples leituras, foram  verdadeiras experimentações com o verbo o que se estabeleceu nesse contato.  Deriva daí a percepção , que se enraíza em Manoel de Barros,  das estreitas relações entre a arte e uma certa rebeldia da qual só o artista é capaz: a rebeldia contra o clichê. Eis como o  poeta procede: 

Pegar certas palavras já muito usadas, como as velhas  prostitutas, decaídas,sujas de sangue e esterco  pegar essas palavras e arrumá-las  num poema , de forma que adquiram nova virgindade. Salvá-las, assim, da morte por clichê.”( Sobreviver pela palavra, Gramática expositiva do chão, p. 308).
    
     “Salvar as palavras ordinárias” de sua prostituição utilitária, pois a submissão ao clichê faz da palavra uma prostituta. Por isso, crê o poeta,     
                  
  “temos de molecar o idioma para que não morra de clichê”.

E mais: “a grande poesia há de passar virgem por todos os seus estupradores.”    Essa rebeldia também consiste em “perder a inteligência das coisas para vê-las”, prática esta que Manoel de Barros confessa ter colhido em Rimbaud.
“Perder a inteligência”: despir os seres e acontecimentos  das vestes das palavras utilitárias e conceitos universais, para assim ver o que José Gil designa de “imagem-nua”.Esta consiste no que resta dos seres quando retiramos o aparato  conceitual  que a inteligência projeta sobre eles, assim apagando suas respectivas diferenças e singularidades. A “imagem-nua” : experimentação estética do real. 

Libertar a percepção do predomínio da inteligência significa imbuí-la  de uma potência exploratória e inventiva , e assim fazê-la um instrumento do pensamento questionador.  







sábado, 23 de maio de 2015

evento: Festival da Leitura de Florianóplis


CIC receberá programação do Festival da Leitura de Florianópolis

Programação no espaço administrado pela Fundação Catarinense de Cultura ocorrerá de 25 a 29 de maio


Deolhonailha: 12/05/2015 - Postado por: Redação


Foto: Reprodução

De 25 a 29 de maio, o Centro Integrado de Cultura (CIC), espaço De 25 a 29 de maio, (FCC), receberá parte da programação do Festival da Leitura de Florianópolis. O evento reúne diferentes iniciativas, como estações Bom de Ler, oficinas de leitura, saraus de histórias, e a série Bom de Ler Filosofia, Prosa e Poesia. Confira aqui a programação completa. As informações são da Assessoria de Imprensa da FCC. 
 Participam como convidados escritores, artistas e professores que contribuem com suas obras e pensamentos para a formação de uma nova geração de leitores no Brasil e tornaram-se, ao longo do tempo, amigos do Projeto Bom de Ler.
 Entre os convidados estão José Miguel Wisnik, Affonso Romano Sant'anna, José Castilho Marques Neto, Juana Nunes Pereira, Manuel da Costa Pinto, Claudia Pellegrini Drucker, Juliano Garcia Pessanha, Rennã Fedrigo, Zuenir Ventura (autor homenageado), Evandro Affonso Ferreira, Eliane Debus, Selvino Assmann, Rodolfo Joaquim da Luz, Salomão Ribas Júnior, Alice Sant'anna e Elton Luiz Leite de Souza.


curso: filosofia e literatura

Divulgação de curso ( ofereço uma disciplina nesse curso:Manoel de Barros, Deleuze e Espinosa)