segunda-feira, 13 de novembro de 2017

os desutensílios poéticos


       






                             
 O olho vê,
a lembrança revê
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
                                                                                       Livro Sobre Nada, p. 75.



- o transver e o transfazer
O prefixo “des” comumente exprime “negação”, “ação contrária”, “privação”, “afastamento”. Por exemplo, “desfigurado”: aquilo que é desprovido de figura. Contudo, somente de forma aproximada essa explicação linguística consegue traduzir o uso que Manoel de Barros faz do termo “des”.
No poeta, portanto, “des” é uma ideia : a ideia de uma ação. Não se trata de uma ação de simplesmente negar, contrariar, privar ou afastar, mas de “transfazer”.  “Des”  é uma ação de transfazer as coisas , retirando delas as suas  utilidades. Transfazer: fazer poesia, desinventar sobretudo as palavras e dar a elas funções de não significar ou não representar, para que assim elas possam reinventar-se como sentido.
Nem todo fazer poético é transfazer. Nem todo fazer verso e rima atinge essa condição. Transfazer é mais do que fazer poético, é mais do que rima e verso. Transfazer é estender o poético para além da poesia. E é isto que faz Manoel de Barros ao fazer poesia: põe-nos no estado desta, à disposição de “inventar comportamentos” e vislumbrarmos novas possibilidades para a vida que vivemos. Mais do que nos fazer ler poesia, Manoel quer nos empoemar.
Em suas poesias e entrevistas podemos encontrar os principais frutos desse “transfazer”: desformar , desnome,  desútil, des-ser, desinventar, descomer, desabrir, desuntensílio, desobjeto, desler, despalavra, enfim, deslimite.
Note-se que não são exatamente neologismos tais expressões. Não são palavras novas, mas o reinventar, o “transfazer”, das mesmas palavras ordinárias, comuns.
Mais do que negar ou significar uma  privação, “des” expressa potencialização: um “transfazer” da coisa em outra. Comumente usamos o termo “trans” como algo que atravessa fronteiras, cercas, formas. Por exemplo: prática trans-disciplinar. O “trans” aqui indica um processo de ir além das fronteiras e amarras de uma única disciplina. O ‘trans”, portanto, é prática de fazer os conjuntos se comunicarem, descobrirem algo em comum. Por isso, nada mais “trans” do que a prática de comunicar, pois isso envolve que encontremos um espaço comum ao eu e o outro, um espaço do nós.”Trans-formar”: mudar a forma, fazê-la conectar-se com um conteúdo que nela não cabe, a não ser se  ampliando, modificando e alargando seus limites, ou os apagando.
Uma coisa é o alicate, outra é a ideia de “cremoso”. O transfazer de uma coisa noutra faz nascer o “alicate cremoso”como desuntensílio da “Oficina de Transfazer Natureza”. Essa “oficina” é a própria poesia. E “poesia  pode ser que seja  fazer outro mundo”, afirma o poeta..Mais do que um prefixo, o “des” exprime uma ideia de ação que é transformadora.O “des” é a força que subverte o sentido habitual das coisas. Ele não é forma, mas processo. Por isso, ele é a própria essência da poética de Manoel de Barros.

(trecho do livro)




- desobjetos/desutensílios:
















o estoico paulinho

Aprendo com o povo sintaxes tortas.
Manoel de Barros

Ou a manequim do tímido Paulinho.
Lenine

Li recentemente entrevista com o  grande Paulinho da Viola, que ontem fez 75 anos! Na entrevista, Paulinho da Viola responde  a um  jornalista acerca do seu modo de ser. Paulinho é reconhecidamente alguém modesto e simples, reservado mesmo, por vezes tímido no trato. Porém,  ele nada tem de tímido quando se trata de expressar, extroverter, a poesia através da música. Por outro lado, muitos cantores e cantoras extrovertidos, que falam pelo cotovelo e atropelam seus entrevistadores, e que vivem a dar opinião medíocre sobre tudo, tais cantores extrovertidos são impressionantemente introvertidos, tímidos, quando se trata de chegar perto, e conquistar, a poesia e a música!
Se levarmos em conta essa  autêntica extroversão, Paulinho é extrovertido: “vertido para” a alma plural e mestiça que lhe vai dentro, dele e de nós.
Havia uma insinuação  nas perguntas que lhe foram feitas: o jornalista dava a entender   que tais características  o teriam “atrapalhado” na carreira, digamos assim. O jornalista insinua  que se Paulinho fosse mais extrovertido talvez ele fosse, por exemplo, uma Ivete Sangalo ou um Carlinhos Braw (em termos de "sucesso" midiático, propagandístico).Mas se tais “artistas” citados fossem mais introvertidos eles seriam um Paulinho? 
Paulinho, com humor e paciência, como se espera de um nobre, responde que seu jeito e maneira de ser eram assim, em parte , pela mesma razão  que faz  cada um ser o que é : ele assim era devido à maneira como foi educado. Ele foi educado para ser simples e modesto. Sua indisfarçável e conhecida timidez não era exatamente devido à presença do outro. Ao contrário, tal timidez era o esforço  que ele fazia para vencer a si mesmo, o seu ego.
Em um mundo como o atual, no qual tudo tem que aparecer, ser expansivo como um “boneco de posto” agitando os braços, mas sem nada a dizer a não ser slogans, personalidades como a de Paulinho ( assim também eram Cartola e Manoel de Barros), são vistas como fracas, inseguras, tímidas. Porém, quando ouço e vejo os cantores que fazem sucesso na mídia comercial alardeando a si mesmos, penso que talvez fosse melhor, inclusive aos próprios, se mais contidos eles fossem, exercitando  mais a modesta hesitação diante da música, esforçando-se mais para conquistá-la e sê-la. Pois o que tais pessoas  propalam ter e ser não se conquista ou compra como uma roupa , uma tintura de cabelo, uma tatuagem ,  um terno. Muita propaganda deixa a gente desconfiado acerca da veracidade do  produto, já dizia minha querida avó.
Lendo tal entrevista com o Paulinho me lembrei de minha infância e juventude suburbanas, lá perto de Madureira. Também fui criado de forma semelhante: para não ser vanglorioso, rivalizador belicoso  e outras coisas que hoje são buscadas pelos RHs nos candidatos a vagas  de “liderança”. Fui educado assim, para não ser um babaca com ares arrogantes.
 Mas não foi exatamente apenas da minha família que veio tal educação. Essa educação era cultivada no meio em que vivia minha família. Era um ethos social suburbano. Aristóteles dizia que aquilo que existe mais , que é mais real e verdadeiro, existe sempre sob a forma do “sub”. O que é mais real, o que existe mais do que tudo,  o filósofo chamava de substância. A substância é o que existe dando suporte às instâncias, aos territórios nos quais existem as coisas  e pessoas. “Sub” não é exatamente o que é inferior, “sub” é o que está por baixo dando sustentação, como o alicerce da casa, como o solo sobre o qual corre o rio, como o caráter que sustenta as ações visíveis de um homem. O “erro” de Aristóteles foi ter projetado no sub o modo de ser das coisas que existem “sobre”, foi ter olhado para o que sustenta com os mesmos olhos com os quais se vê o sustentado, atribuindo-lhe então aspectos que apenas existem na casa, e não em seu alicerce. Mais longe a esse respeito foi Espinosa, que também emprega o termo “substância”, porém com outro sentido: nele o sub é onde se encontra a  Potência. Em Espinosa, a natureza é sub ( como Natureza Naturante) e sobre ela própria, como natureza naturada  (esse "sub" da potência transfiguradora expressa o mesmo que o "pré" das Pré-coisas manoelinas).
Então, sub-urbano não era , ao menos àquela época, algo inferior à urbanidade da zona sul. Sub-urbano é o que dava sustentação existencial às nossas existências urbanas. A base desse sub não eram exatamente valores familiares ou religiosos; a essência desse “sub” eram valores ético-políticos, valores estes que se tornavam reais pelas nossas práticas. A tomada de partido por tais valores antecedia as escolhas partidárias, e nos protegia dos sectarismos que envolvem as escolhas partidárias quando estas não são precedidas por um afeto por tudo aquilo que é sub, pois tal sub, exatamente por ser sub, nunca pode ser objeto de culto e poder.
Mais do que no espaço privado das casas, onde reina o “meu”, era no espaço de vizinhança que se aprendia  o afeto pelo comum, como prática das comunhões. Lembro-me das  trocas feitas entre minha mãe e suas vizinhas, no caso de alguma estar carecendo de algum produto em sua casa. Eram na verdade ofertas, “dons”. Por vezes era o feijão que se doava, e por ele se recebia amizade. Noutras ocasiões  éramos nós que recebíamos o açúcar que em nossa casa faltava, e em troca contradoávamos amizade. Tudo era oportunidade para reforçar a amizade como virtude sub-civilizatória, que sustenta a civilização , a família e as relações. Lá não se precisava de creche: as famílias recebiam os filhos umas das outras, quando havia necessidade.  
Essa “Madureira” em que cresci era mais do que um espaço físico, assim como é mais do que um pedaço de terra alagado o pantanal de que fala Manoel de Barros. Ele mesmo diz que o chão do pantanal ele também encontrou em Paris, Nova Iorque, São Paulo. Essa “Madureira” também a encontro onde haja esse sub-urbano nos espaços urbanos. Além disso, nem todos que nasceram em Madureira trazem essa “Madureira”, nem todos que nasceram no Pantanal são habitados pelo Pantanal poético. Por outro lado, mesmo quem não nasceu fisicamente no Pantanal ou em Madureira pode, no entanto, os eleger como Terra Natal . Os que têm a mesma terra natal se dizem con-terrâneos: vizinhos na mesma terra. Entre conterrâneos não há hierarquias, há tão somente a afirmação da mesma horizontalidade enquanto espaço do afeto. O Pantanal e Madureira são vizinhos, assim nos ensinou, brincativamente,  a Império Serrano.
Por intermédio de sua educação formal e escolar, centradas em “cartilhas e gramáticas”, os espaços urbanos são o território do qual nascem e são cultivados engenheiros, soldados, policiais, professores, funcionários públicos, pais, filhos , mães...Mas o sub é a terra onde nascem pensadores e poetas, seres que são , antes de tudo, da natureza, da substância. É em contágio com essa substância que eles vivem, produzem, sonham, doam contradoam o feijão que alimenta o espírito.
Essa Madureira não está totalmente fora e nem totalmente dentro, ela é uma irradiação, um refrão, um ritornelo, enfim,   um mundo próprio  sem o qual  ficam, poetas e pensadores,  sem ar. E é a partir dessa terra que eles cantam e fazem cantar, como na avenida do samba o povo.
Quando me desterritorializo para alcançar essa Madureira politicamente poetizada, este é meu desejo-sonho: ao abrir a porta da minha casa, ver o Paulinho como meu vizinho; ao abrir minha  janela, ver  na janela vizinha Manoel nos horizontando.








domingo, 12 de novembro de 2017

narciso

No mito, Narciso era conhecido por desprezar todos os outros seres, tanto os humanos quanto os divinos. Ninguém, pensava ele, era digno de sua atenção, de seu tempo, de seu interesse, enfim, de seu afeto. Dizem que ele guardava seu afeto para quando  encontrasse alguém que o merecesse. Certa vez, ele despertou o amor de Afrodite,  porém também a rejeitou. Afrodite lhe mandou então uma maldição, uma maldição da qual o próprio Narciso seria, ao mesmo tempo, o carrasco e a vítima.
Houve uma ocasião em que Narciso teve que atravessar um lago. Pela primeira vez, então, Narciso viu alguém que despertou seu interesse. Enfim, alguém chamou sua atenção. Ele ficou inseguro e nervoso, temendo não ser notado por esse ser que despertou seu desejo. Embora com receios, ele decide acenar para o tal ser, e este também acena para Narciso. O coração de Narciso dispara, suas mãos transpiram. Ele resolve sorrir. Para sua imensa felicidade, o outro ser também sorri para ele. Narciso mal cabia dentro dele mesmo de tanta felicidade,  enfim ele achou alguém que o merecia, que estava à altura de  seu afeto, de sua alegria, de seus dias, de sua vida.
Ele resolve então esticar o braço para tocar com a mão este ser amado...Feliz, Narciso vê que   o tal ser também resolve esticar o braço para tocar aquele que queria tocá-lo. Quando as mãos de ambos iam  tocar-se, no momento exato em que a mão de Narciso tocaria enfim o ser amado, a ponta de seus dedos toca a superfície do lago, e logo após afunda no lago a mão inteira...
Narciso contemplara apenas sua imagem, sua aparência refletida na superfície do lago. No entanto, ele não conseguia parar de amar esse reflexo, esse nada. Era ele, ao mesmo tempo, o amado e o amante, porém o objeto amado não podia amá-lo. Era ele que tanto amava, e era ele também que o fazia sofrer. Ele se amava e ele mesmo se rejeitava. A maldição de Narciso era amar algo que ele nunca poderia ter , pois ele amava apenas uma aparência, um reflexo, que a corrente do lago fazia passar.
Amar exclusivamente a si mesmo é amar a ninguém, dado que é um amor que não pode ser retribuído: aquele que  ama apenas a si mesmo quer ser amado por si mesmo, porém ele fica à espera que este “si mesmo” o ame.... Narciso , na verdade, quer ser amado mas sem saber amar. Se ele não sabe amar, não saberá amar , em primeiro lugar, a si mesmo.... O amor de Narciso é, na verdade, uma recusa de viver de fato o afeto. Pois todo afeto pressupõe o encontro com o outro, envolve outro ser, com um desejo que não é o nosso, com uma vida que não é a nossa. O mito de Narciso relata, simbolicamente, a recusa da vida social, da vida em sociedade, da qual sempre fazem parte a divergência, as diferenças de perspectivas e a aceitação, inclusive, de que o outro não ame o que a gente ama.

O mito de Narciso é a narrativa simbólica que envolve o nascimento do eu, do ego. O eu na criança nasce quando esta estabelece uma relação especular com os pais, que são o seu  "outro". É a partir do outro que o eu se constitui, "negando" paradoxalmente este outro  para ser si mesmo. Quando cresce , o eu  desconhece que é um efeito, colocando-se então imaginariamente como causa, como origem de si mesmo. Então, ele passa a procurar no outro o si mesmo, para fazer do outro o seu reflexo, no espelho de sua mente.    


(Narciso, Caravaggio, 1597/99)


(Narciso, Vik Muniz, 2005)



quinta-feira, 9 de novembro de 2017

a singularidade 2






As intensidades do girassol são forças do tempo?
Cláudio Ulpiano

Um girassol se apropriou de Deus:
foi em Van Gogh.
Manoel de Barros



O vídeo acima é a abertura do filme Os girassóis da Rússia , de Vittorio de Sica. O plano geral mostra uma realidade ampla, aberta ao  horizonte. Vemos incontáveis girassóis, um campo de girassóis. Difícil determinar os limites onde termina essa multitudo que parece não ter contornos, apenas limiares (que se estendem  ao azul do céu). Englobando a multitudo, mas sem encerrá-la em limites ou cercas, vemos um todo que a tudo horizonta. O todo é um plano de imanência, uma abertura, sem a qual não pode haver um chão, um território.
Então , da perspectiva desse todo a câmera parece que  vai se fechando, diminuindo sua amplitude. Porém, se olharmos o que acontece de outra perspectiva , veremos que a câmera vai ampliando uma outra realidade que permanecia imperceptível enquanto apenas olhávamos para o todo.À medida em que a câmera vai diminuindo de amplitude extensiva, outra amplitude vai se mostrando aos nossos olhos: uma amplitude expressiva. Agora, começamos a ver o que até então não víamos: percebemos a existência de um  vento , ora suave ora mais forte, que toca e agita a vida de alguns girassóis . Enquanto olhávamos para o todo, não percebíamos esses acontecimentos que atingem apenas parte da multitudo. Um mesmo acontecimento, o vento, provoca reações diferentes em cada girassol distinto, conforme a maneira de ser de cada um: determinado girassol suporta o vento de forma firme; outro se curva e parece que vai se quebrar, triste.
Começamos a ver então que a multiplicidade é heterogênea, posto que composta de partes diferentes, singulares. Cada vez mais essas partes vão perdendo a relação exterior e extensiva com o todo , e começam a realçar seu estilo, sua assinatura, o seu ser um, sua existência única. Já não vemos mais o todo, o horizonte. Percebemos agora três girassóis, em seguida dois ,até que a câmera nos mostra um girassol.O girassol preenche toda a tela, que outrora era preenchida pelo todo. Vemos que uma singularidade pode também preencher e preencher-nos, mas de maneira intensiva, expressiva. Pois a realidade que agora vemos se explica por cores, texturas, molecularidades. Saímos de uma realidade extensiva e entramos em uma realidade expressiva.Entramos, enfim, em nós.
O girassol em sua singularidade continua a comunicar-se com o todo, porém através de sua diferença, de sua singularidade. O todo está inserido nele ( como essência íntima, diria Espinosa, como minadouro, complementaria Manoel) e ele está inserido no todo, no horizonte.Enquanto víamos apenas as amplidões do espaço, não víamos a realidade intensa do afeto que o singular expressa.
Na linguagem do cinema, quando colocamos algo em primeiro plano , não importa o que coloquemos, esse ser assim ampliado torna-se um rosto. Ele não ganha um rosto: ele se torna , por inteiro, um rosto. Ele devém uma superfície que  se explica apenas por valores expressivos, intensos. Em toda expressão há algo implicado. Toda expressão é uma explicação. A expressão explica, traz para fora, o que está implicado nela, o que lhe é imanente.A expressão é esse duplo movimento onde o dentro e o fora enfim se conjugam, potencializados em uma singularidade viva. Pois é isto que é um rosto : a vida colocada em um primeiro plano expressivo.
Então, o girassol parece viver/expressar alegrias, dramas, afetos, desejos: embora não possua cérebro e nervos, um girassol também pensa e sente.






terça-feira, 7 de novembro de 2017

das diferentes cores

O preto vivia em guerra com o branco em razão de uma verdade puramente preta; o branco vivia em guerra com o preto em razão de uma verdade puramente branca; enquanto outras diferentes   cores se ocupavam em   pintar de múltipla a existência. Mas o preto queria que as cores se subordinassem à verdade preta, para assim vencer o perigo branco; e o branco queria o mesmo das cores, alegando a ameaça da verdade preta. Mas as cores não se subordinaram à disputa do preto-branco. Elas estavam ocupadas em criar, e não desejavam outra coisa.
Então, o preto e o branco se uniram em uma coligação cinza, fizeram do homogêneo a norma de vida, e crime queriam que fosse toda forma de diferente cor.


(Frida Kahlo, Núcleo da Criação)


domingo, 5 de novembro de 2017

as ignorãças...

“A palavra abriu o roupão para mim:
ela quer que eu a seja.”
(Manoel de Barros)


O maior  sábio da Grécia não foi Sócrates, foi Tirésias, o cego. Ele assim ficou por ter visto  Atena nua. Ele viu a deusa da Sabedoria despida das vestes dos textos teóricos.
 Ele a viu enquanto ela se banhava em uma fonte que nunca seca, a qual somente acha quem  tem sede não apenas de água. É dessa fonte  que   brota o rio de Heráclito , pois mesmo a Sabedoria necessita do fluxo para renovar-se das ideias mortas.Atena  se adornava antes de ir à Academia, para ali ser vista   pelos doutos, que adoravam apenas a aparência dos panos que a cobriam . Somente fora da academia ela se mostrava espontânea.   Na fala e discursos dos doutos havia apenas formais palavras,  mas nos olhos de Tirésias a Sabedoria viu paixão . Ela o cegou não por ódio ou punição, tampouco para manter-se em segredo. Ela o cegou  para protegê-lo. Para protegê-lo de si mesmo e dos homens, incluindo os doutos.  Quando a Sabedoria se despe das teorias, é como poesia que ela se mostra.



eros & psiquê...

Existiu na Grécia uma jovem chamada Psiquê. Sua beleza era tanta, que a própria deusa da beleza se sentia inferiorizada diante  de Psiquê. A deusa da beleza era Afrodite. Mas  Afrodite era portadora da beleza física, esta que vemos com nossos olhos. Antes de Psiquê , conhecia-se apenas aquele tipo de beleza da qual Afrodite era a deusa. Psiquê, diferentemente, portava uma beleza distinta, pois “Psiquê” é o nome grego da Alma[1].
A Alma é bela, esta é a crença que nos deixaram os antigos poetas gregos. Sua beleza rivaliza com a beleza do corpo, a única que Afrodite conhecia. Todavia,  enquanto Afrodite era uma deusa, Psiquê era uma simples mortal.Por não conter sua inveja, e querendo atingir a sua rival,  Afrodite resolveu  vingar-se ...
Afrodite ( A Deusa da Beleza): "- Como!? Existe entre esses seres efêmeros , que mais parecem um pó rasteiro que o vento leva, existe entre os homens alguém mais  bela do que eu? Como pode!?E que nome estranho esse ser tem : Alma ...Como a alma pode ser mais bela do que eu, que sou o Corpo!Só em mim pode haver beleza, já que beleza só existe para os olhos! E são os homens mesmos que me adoram com os olhos!Não apenas os homens me adoram.A prova disso é que meu servo maior é o Amor, que não tira os olhos de mim e me cobiça para ser posse exclusiva sua. Mas eu não cedo e jogo com ele, uso ele para reinar sobre todos.Essa Alma não pode ser mais bela do que eu! Mas não quero ir conferir ou ficar em dúvida..."
(Afrodite manda chamar então Eros, o Deus do Amor, que era seu servo)
(Dirigindo-se a Eros, Afrodite ordena) :"Quero que você vá onde vivem os homens, encontre uma jovem chamada Alma e atravesse o coração dela com sua flecha . Faça ela se apaixonar pelo homem mais pobre, burro e feio que houver em toda Grécia..."
O Amor só tem olhos para a beleza, ele detesta a fealdade. É preciso entender  a fealdade em um sentido bem amplo, pois existem também palavras e ações feias. Nunca o Amor se enamora de tais palavras e ações: quando as vê, o Amor desvia os olhos. Por  isso tais palavras e ações têm dificuldades em germinar, pois para que algo se reproduza é preciso a influência do Amor.
De tudo o que o Amor havia visto no céu e na terra,  Afrodite era, sem dúvida, a coisa mais bela. Por isso, ele a acompanhava e fazia o que fosse do desejo dela. Em troca, a única coisa que o Amor exigia de Afrodite era vê-la e estar-lhe perto . Valendo-se dessa situação, Afrodite resolveu fazer de Eros  a arma de sua vingança contra aquela que possuía uma beleza que não pertencia ao seu império.
          E lá veio o Amor  descendo do céu em busca da Alma na terra. O Amor nunca havia visto antes a Alma. Afrodite esquecera-se desse detalhe, pois o que poderia acontecer nesse encontro entre o Amor e a Alma? Ele nunca a tinha visto antes. Ele não sabia o que ia encontrar. Guiava-o a memória da Beleza do Corpo, pois tal Beleza era Afrodite. Nada do que seus olhos vissem fora dele poderia ser mais belo do que a recordação que vivia em sua memória, assim pensava o Amor antes de encontrar-se com a Alma.Afrodite era a coisa mais bonita que ele vira, e essa verdade o completava , desde que ele estivesse perto dela.
Porém, nem o Amor e nem o Corpo sabiam o que podia a Alma, sobretudo quando a vemos, quando nos encontramos com ela.Ouvir apenas falar dela não é conhecê-la. A Alma somente pode ser conhecida diretamente, sem intermediários.


Então, o Amor achou  a Alma, Eros conheceu Psiquê.O Amor sentiu nascer dentro dele um outro, esse outro era um amor novo,  que era o Amor mesmo,  porém renovado, potencializado, mais amor do que nunca. Esse amor pela Alma não era uma negação do antigo amor ao Corpo, mas o conhecer algo novo que afirma mais o que já somos. Enquanto o amor pelo Corpo submetia Eros a caprichos e prazeres exigidos pelo ser amado, como se fosse um preço a ser pago, esse amor nascido do encontro com a Alma o fazia voltar-se para si mesmo e descobrir uma graça nascida de um desejo que não se esgota na posse e no imediato .O Amor percebeu então que ele podia ser reinventado, experimentar uma nova maneira de ele ser . E que ele próprio, o amor, desconhecia tudo o que o amor pode. Ele viu que se desconhecia e que havia nele potencialidades de amar que somente poderiam se tornar reais se ele se unisse à Alma.A união dele com o Corpo era exterior ; contudo, o Amor sentia que para ele se unir à Alma ele deveria morar dentro dela: cada um seria no outro, sem carência ou falta. Mas o que é a Alma? Ela é invisível, intangível, mas como tem realidade e potência para quem a conhece! E quem a vê nunca mais a esquece.E ela não está nos céus, nem no Olimpo, ela vive dentro do homem.O Amor é eterno, mas não o é a Alma. Ela nasceu ninguém sabe como, pois onde menos se esperava , ali  nasceu ela. Ela não nasceu divina, nasceu humana. Sua divindade seria conquistada por Justiça, e não por nascimento ou aparência. Só uma divindade pode gerar uma divindade. Mas a Alma, embora não fosse divina,   fez nascer no Amor um ser novo, que era o Amor mesmo com  olhos outros, diferentes,capazes de verem  o que se esconde de belo nos homens, apesar de toda feiura que eles frequentemente são, dizem  e fazem.
O Amor, no entanto, não se revelou imediatamente. Ele guardou-se para o momento oportuno. E lá foi ele embora, com sua própria flecha atravessada no peito.A Alma, por sua vez, nada viu, porém sentiu atravessar-lhe um vento estranho.

O tempo passou , as irmãs de Psiquê se casaram e Psiquê permanecia só. Embora todos a considerassem bela, ninguém a pedia em casamento, tampouco ela se apaixonava por alguém. Contudo,  o que ninguém sabia, nem mesmo Psiquê, é que era o próprio Amor que evitava que a Alma  se apaixonasse.
Achando a situação por demais estranha, o pai de Psiquê resolveu levá-la  até ao Oráculo de Delfos, para que o deus Apolo revelasse qual seria o futuro da jovem. Chegando lá, ambos ouviram da Sacerdotisa  de Apolo uma revelação trágica: Psiquê deveria ir até um determinado castelo próximo dali. Chegando lá , Psiquê aguardaria pela chegada da noite. Sob a escuridão da noite, chegaria também o dono do castelo, que seria também seu noivo. O dono do castelo era um monstro. Então, à noite, Psiquê deveria deitar-se  na cama do monstro, para assim ser sua esposa; pela manhã, ela deveria deitar-se na mesa, pois ela seria o café da manhã desse terrível esposo.
Apesar da natureza trágica desses acontecimentos por vir, Psiquê  não pensou em escapar , pois isso era impossível. Àquela época, os gregos acreditavam que a vida de cada um era governada pelo Destino, do primeiro ao último instante da vida. Por isso, a Alma aceitou seu Destino. No dia seguinte, ela rumou sozinha para o encontro com a morte.
Ao entrar no castelo, cuja porta estava aberta, Psiquê não encontrou ninguém em seu interior. Então, ela subiu até ao quarto para arrumar-se para aquela que seria , ao mesmo tempo, a sua primeira noite como esposa e a sua última noite de vida.
Quando veio a noite, a Alma deitou-se no leito, e passou a aguardar, conformada,  o noivo-monstro. A janela estava aberta, como se fosse uma pálpebra. Através dela,podia-se ver  a lua imensa a observar o quarto . Uma súbita brisa entrou pela janela e rodeou a Alma suavemente. Mas aquela não era uma brisa comum. Como se tivesse braços, a brisa envolveu a Alma, e  a apertou vagarosamente. Então, como se adquirisse boca, a brisa soprou no ouvido da Alma as seguintes palavras: “Psiquê, só lhe peço uma coisa: confie em mim. Se você confiar, no fim será  feliz”. Após ouvir essas palavras, a Alma sentiu aquele abraço invisível apertar cada vez mais. O abraço provocava na Alma sensações  nunca antes por ela sentidas, sensações de prazer e satisfação. Por fim, a Alma  perdeu os sentidos, mergulhada que estava em um transe nunca antes por ela vivido.
Ao acordar  pela manhã, Psiquê se viu sozinha na cama. Contudo, o lençol ao seu lado estava amarrotado,como se alguém tivesse dormido ao seu lado. E o mais importante: o monstro não havia aparecido.
Na noite seguinte, a Alma repetiu o mesmo comportamento da noite anterior, e se pôs a esperar  a morte. Todavia, novamente a brisa entrou pela janela e a envolveu. A última coisa que a Alma viu antes de desfalecer de novo foi, através da janela, a lua a lhe sorrir.
Na manhã seguinte, o mesmo fato da manhã anterior: o lençol amarrotado  indicava  que alguém dormira com Psiquê, mas partira bem cedo. Quando veio a noite, novamente o mistério se apoderou da Alma, e com ela dormiu. Pela manhã, ninguém...Isso se repetiu por noites e manhãs seguidas....e nada de a  morte vir para  devorar a Alma. 
Certa vez, no meio da tarde, bateram à porta do castelo. Eram as irmãs de Psiquê: a Desconfiança e a Dúvida. Estas ficaram surpresas ao verem a Alma ainda viva. E mais surpresa lhes causou a alegria estampada no rosto da Alma. De imediato, as irmãs de Psiquê pediram para que esta lhes contasse o que afinal aconteceu e, principalmente, qual o motivo de toda aquela felicidade que a Alma  não conseguia esconder, embora tentasse.
Enquanto ouviam a história, as irmãs de Psiquê começaram a se sentir incomodadas com aquela felicidade da irmã. Pois parecia que a Alma havia experimentado algo que elas, mesmo sendo casadas, nunca experimentaram.
Então, a  Desconfiança  se aproximou da Alma e lhe dirigiu palavras que visavam pôr aquela felicidade da Alma em suspenso. A Dúvida, por sua vez, aproveitando-se de seu poder sobre a Alma , disse-lhe para descumprir o prometido, e ver quem era de fato aquele ser que lhe visitava todas as noites.   Descontrolada  pela influência da  Desconfiança e da Dúvida, a Alma ficou insegura de si e do que sentia . Por fim ,ela perdeu  sua capacidade de acreditar. Com isso,   foi-se embora  a felicidade que nascera dentro dela. 
Antes de partirem, as irmãs de Psiquê lhe deixaram  uma vela que tinha poderes especiais, pois tal vela  podia iluminar o invisível. Naquela noite, novamente se repetiu  a visita do mistério . Mas, dessa vez, Psiquê tinha um plano. Ela esforçou-se para não desfalecer como das outras vezes, ficando a fingir que dormia. Antes de o dia amanhecer, ela acendeu a vela e a aproximou lentamente do ser que dormia ao seu lado ainda. Pouco a pouco, a luz foi tirando da penumbra o ser misterioso que nela se ocultava. Quando viu por completo o ser que o mistério escondia, a Alma ficou maravilhada, pois nunca antes ela havia visto ser tão encantador. Pois ao seu lado estava nada mais nada menos do que o próprio Amor[2]. O Amor havia amado a Alma durante todas aquelas noites. Foi o Amor então que a fizera feliz, como  nunca antes ela havia sido. Naquele dia no Oráculo, foi o próprio Amor que, ocultando-se ainda,  falou à Alma, querendo ser desta o destino.
Contudo, tão absorta a Alma se encontrava, que ela não reparara que a cera da vela estava prestes a pingar. Um pingo quente escapou da vela, e caiu sobre o corpo do Amor,  acordando-o de súbito. Sentindo-se traído, o Amor  levantou-se rapidamente do leito. Ao puxar as flechas que pendiam sobre a cama, uma delas feriu a Alma. Tais flechas eram usadas pelo Amor como instrumento para que  alguém, por intermédio delas, se apaixonasse por outrem. Todavia, como a Alma estava olhando para o Amor no momento em que foi ferida, era pelo Amor então que a Alma passou a ter amor. O amor do Amor abrigou-se no coração da Alma, e isso a tornava ainda mais bela. Contudo, antes de partir , Eros lhe disse: “ Psiquê, somente um pedido eu lhe fiz, mas você não foi capaz de cumpri-lo. Sem confiança não há amor.”
Feliz por ter encontrado o Amor,  mas ao mesmo tempo infeliz por tê-lo perdido por não confiar, a Alma viu-se sozinha no castelo. Porém, subitamente ela reparou que  não estava de fato sozinha, pois o Amor se instalara em seu coração, e dele expulsou  a descrença. Mas este Amor no coração era apenas a semente que, para germinar, precisava encontrar o Amor no mundo. Então, a Alma saiu para o mundo, atrás do Amor que um dia teve, e que perdeu por dar ouvidos à  Desconfiança e à Dúvida.
A cada um que encontrava pelo caminho, Psiquê perguntava se em algum lugar esta pessoa viu o Amor ou se sabia onde ele estava. Para sua surpresa, poucos confessavam que o haviam visto, e muitos  outros diziam que ele não existia . Dentre  aqueles poucos que o haviam visto, um dizia que o Amor se chamava Carmem; outro confessava que, no passado, teve um Amor   chamado Ana; uma outra dizia que o Amor, para ela, atendia por Pedro. Ou seja, cada um havia visto o Amor numa pessoa. Mas a Alma procurava pelo Amor cujo nome é, apenas, Amor: o Amor  puro ― que é, ao mesmo tempo, o mais singular e  o mais universal.
Por fim, Psiquê resolveu pedir o auxílio dos deuses. Para seu infortúnio, a primeira divindade que ela encontrou foi exatamente Afrodite. Escondendo de Psiquê a inimizade que por ela sentia, Afrodite fingiu sofrer com o padecimento da Alma, e disse saber como acabar com aquele tormento. Mas o que Psiquê não sabia, e nem desconfiava, é que aquilo tudo era fingimento de Afrodite. Na verdade, esta queria aproveitar o sofrimento de sua rival para melhor derrotá-la.
Valendo-se da situação, Afrodite resolveu vingar-se com uma mentira, e disse a Psiquê que esta somente teria o Amor de volta se fizesse inúmeras  tarefas arriscadas e cansativas.  Psiquê, no entanto, disse-lhe que não mediria esforços para ter o Amor de volta. Assim, Psiquê caía na armadilha de Afrodite. Esta acreditava que o cumprimento de tarefas tão desgastantes findaria com a beleza da Alma. Como conseqüência, a Alma ficaria feia e acabada, e o Amor nunca mais olharia para ela.
Contudo, embora se dedicasse com afinco às penosas tarefas, a Alma nunca  se enfeava. Ao contrário, o sacrifício pelo Amor a tornava ainda mais bela.
Enfim, vendo o Amor que a Alma o buscava mais do que a tudo, ele resolveu não se esconder mais , e mandou seu irmão ir até à Alma para dizer-lhe onde ele se encontrava. O irmão do Amor é o Perdão. O Perdão disse à Alma que o Amor se encontrava escondido dentro dela.
O Amor quis então que ele e a Alma nunca mais se separassem. Para isso, seria preciso que a Alma nunca morresse. Era preciso que a Alma também se tornasse divina. Com esse intuito, o Amor procurou a Zeus, o deus da Justiça, e pediu-lhe para que ele imortalizasse a Alma,tornando-a divina. Zeus disse então a Alma: "Aparentemente, parece fácil, em palavras, conquistar a imortalidade, porém é a coisa mais difícil na prática!...Se os homens fizessem na prática o que fazem com as palavras, o Olimpo estaria repleto de homens... ". Então Zeus diz o que é preciso a Alma fazer para se imortalizar: "Basta apenas estar sempre na companhia do Amor, nunca dele se afastar, não importa onde e quando."







[1] “Psiquê” está na raiz de “psicologia”, que é o “estudo da alma”.
[2] Sem que Psiquê  desconfiasse, foi o Amor que, tomando o lugar do deus Apolo, falou com Psiquê através do Oráculo. O intuito do Amor era, no tempo oportuno, revelar-se à Alma. Por isso, ele inventou a história do monstro.



Trecho do livro:



sábado, 4 de novembro de 2017

o ímã

É equivocado atribuir a Espinosa um mero intelectualismo ou racionalismo férreo. Igualmente não é correto afirmar que existe apenas duas formas de amor nele: o da imaginação, sempre passivo, e o  do intelecto, como se este último fosse o único e confiável amor ativo. Muitos comentadores não se atentam à sutileza de um pensamento como o de Espinosa.
Na Quinta Parte da Ética, Espinosa nos fala do amor intelectual a Deus. Somente quando aprende a amar é que o intelecto alcança o que Espinosa chama de Deus,  o Absolutamente Infinito.
Esse amor não é sensível. Porém, é difícil ao intelecto aprender esse amor do qual apenas ele é capaz, pois é necessário que ele apreenda em si uma potência que vai além do mero raciocinar; é preciso que ele se faça, inteiro e não apenas em parte, intuição. Intuir é um contato imediato, sem mediação ou distância, com uma realidade. O amor intelectual a Deus leva o intelecto a apreender uma realidade que não é carcomida pelo tempo.
No entanto, esse amor intelectual não é o máximo que o amor pode , ele ainda é um grau do amor, não todo o amor. Segundo Espinosa, o valor desse amor intelectual está em nos fazer conhecer outro amor: o  amor para Deus ou o amor voltado para Deus.  O amor intelectual  atinge o conhecimento das essências enquanto objeto eterno do intelecto. Mas o amor para Deus é um amor voltado para aquilo que os olhos do corpo também veem.
Não é um amor apenas pelas essências, é um amor pelas existências também. De quais existências? Não desta ou daquela existência em particular, mas de todas as existências. Esse amor parte da imagem que o corpo apreende e sente, ele é duração. Contudo, o antecede o amor intelectual que apreende as essências eternas. Então, como se fosse o instante de um clarão que ilumina tudo, porém muito rápido ( e logo a escuridão retorna) , percebemos que não existem dois amores, existe um só, infinitamente múltiplo, porém.Enfim, sentimos de alguma forma que também dura a eternidade: "poeta é quem diz eu-te-amo a todas as coisas"(Manoel de Barros).
Imaginemos uma criança que nasce. A mãe a ama não apenas com a alma, ela a ama também com o corpo, seu corpo alimentou aquele corpo que agora nasceu dela. O amor também é a placenta, o leite e o colo. Contudo, a criança não se sabe amada de forma tão clara como a mãe o sente.   O amor da criança pela mãe demora a brotar, pois a própria criança ainda não tem a noção de si. Mesmo se a criança nascer com algum problema congênito que a fará crescer sem consciência, mesmo assim a mãe ainda a amará, se mãe de fato o for.
A criança foi gerada nesse amor, no amor. No entanto , o amor  dela pelo genitor demora a aparecer, ele precisa de certo desenvolvimento da criança, desenvolvimento de seu corpo e de sua alma.  O amor que nascerá dela será um amor segundo que descobrirá um amor primeiro, o que o gerou.
Acontece algo semelhante no amor intelectual de Deus. Ele não é o amor que gerou o intelecto e tudo o que existe, ele é o intelecto se compreendendo como fruto daquele amor que o gerou primeiro, que é o Deus mesmo. Esse amor primeiro não o gerou e se separou, continua nele, pois o intelecto é um modo ou maneira de existir desse amor. Quando o gerado descobre o amor do gerador, é como uma novidade que ele o descobre, como se esse amor tivesse nascido no tempo. No entanto,  o amor do gerador e sua descoberta são um só amor: embora infinito, é sempre em uma singularidade que ele é experimentado como se fosse uma novidade.
O amor voltado para Deus compreende a inseparabilidade entre Deus e amor. O amor voltado para Deus é o amor do gerado voltando-se para o genitor, como um ímã finito que, após saber-se ímã, o ímã que sempre fora,  é atraído para o Ímã Infinito que é sempre potência de atrair, nunca de afastar.
Tal amor não é como o Eros grego, tampouco é um sentimento romântico. Talvez os poetas latinos tenham sido os que melhor lhe inventaram um nome: "a-mor", que significa “não-morte”.







quinta-feira, 2 de novembro de 2017

as rosas que nunca murcham



Segundo Heidegger, o mundo atual confunde o “diminuir a distância” com o “criar proximidade”. A técnica diminui as distâncias, sem dúvida. Contudo,  uma coisa é diminuir as distâncias entre seres no espaço, outra bem diferente é criar proximidade com o sentido. O telescópio diminuiu a distância entre a lua e meus olhos. Mas quando leio um poema sobre a lua, de que lua se trata? O poema não põe a lua mais perto espacialmente  de mim, porém  ele pode pô-la a tal ponto próxima de mim que a descubro dentro de mim, como o devir-lunar que sou.
Os cientistas olham as células com potentes microscópios e imaginam que isso os faz estarem próximos do que é a vida, o sentido da vida, porém eles olham a vida de fora. Quando Cartola nos diz que “as rosas não falam”, que rosas são essas? O que essas rosas têm que não têm as rosas que pomos em jarros? Um dia estas últimas murcham, porém nunca murcham as rosas das quais a canção de Cartola é uma aproximação, um chegar perto, sobretudo de nós mesmos: basta a gente cantar que elas desabrocham voz, sempre novas.





sem propaganda



A fonte demonstra que tem  água
quando jorra generosa.

A flor demonstra que tem néctar
quando se abre e o oferta.

O pássaro demonstra que sabe voar
quando sobre o nada abre as asas.

O sol demonstra que é vida
quando de luz enche a terra.

A palavra demonstra sua verdade
quando nascem ações dela .

Primeiro se é,
depois se demonstra.
O demonstrar não cria o que é,
apenas o dá a conhecer,
sem fazer propaganda.