quarta-feira, 12 de abril de 2017

horizontamentos...

Na Grécia antiga, "Daimon" era a divindade que não tinha casa no "Céu", como possuíam os deuses olímpicos. Tampouco morava o Daimon no chão, entre os homens. O Daimon habitava o espaço entre o Céu e a terra, um espaço de travessias. Mas não era uma travessia como aquela que fazemos quando cruzamos uma ponte, uma rua ou mesmo uma fronteira que separa dois países. O espaço de travessia no qual habita o Daimon é aquele que liga o tempo à eternidade, o que nasce e morre ao que se imortaliza. Contudo, entre o tempo e a eternidade não existe uma fronteira determinada, nem  se tratava de morrer  para alcançar o Céu. Era nesta vida que se alcançava ou vislumbrava aquela esfera divina, desde que nos guiasse um Daimon. O Daimon não habita o Céu ou a terra, ele vive nessa zona que somente se pode atravessar em metamorfose. "Metamorfose" não é a mesma coisa que "transformação". Em ambos os termos existe a palavra grega "morfé", que significa "forma".Trans-formar significa: "passar de uma forma à outra" ( esse é o princípio, por exemplo, da reencarnação pitagórica).Meta-morfé, por sua vez, tem o sentido de "ir além da forma, do limite". Sozinho, o homem não consegue ir além de sua forma, de sua medida. Daí a necessidade de ele encontrar um Daimon, se o seu desejo for o de ir além de si mesmo. Existiam vários Daimons. Nem todos sabiam o caminho....Alguns eram apenas promessa.Outros, fingiam levar ao Céu , quando na verdade faziam subir muito alto com a intenção de aumentarem o tamanho da queda, como aquela que vitimou Ícaro.De todos os Daimons, o mais buscado, porém o mais difícil de achar, era exatamente Eros. Em latim, o Amor. Em grego, "Eros" significa também "asas", mas asas de borboleta. Em latim, "Amor" significa : "não-morte", pois o "a" tem valor de negação, tal como em "afasia", "sem fala". Para os gregos, então, Eros era o agente de uma metamorfose propiciadora de uma experiência de não-morte.Fora dele, sem sua mão a conduzir, tudo é morte.
Em grego, a palavra "felicidade" se escreve "eudaimonia" : estar na companhia de um bom Daimon. Para os gregos, a felicidade não advém do ter ou do possuir, mas do estar com, agenciado, em um encontro com um ser que nada oferece, a não ser desterritorializações, linhas de fuga, horizontamentos.



terça-feira, 11 de abril de 2017

manoel de barros:uma passagem de Vida...





(trecho do livro)

Almas que mudam porque lhes nasce,no tempo,
um corpo novo: eis a metamorfose.
Corpos que mudam porque lhes nasce,no tempo,
uma alma nova: eis a metamorfose.

Ovídio


Encontramos esboçado em Gilles Deleuze um dos problemas que tencionamos desenvolver, pois nos parece que ele toca de perto aquilo que em Manoel de Barros constitui a experiência do deslimite. Afirma Deleuze que

Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a
uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe
ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre
inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer
matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma
passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido.

A Vida é renascer constantemente, a todo tempo e instante. Por conseguinte, a Vida é metamorfose, arte. A Vida nunca nasce, quem nasce são os indivíduos. A Vida sempre renasce nos indivíduos que nascem. A Vida, portanto, é puro renascer: por nunca nascer, a Vida também jamais morre (quem morre são os indivíduos). A Vida não é uma, mas muitas: são todas as que tivermos a potência de inventar e criar, conjugando nosso viver com a Vida que em si mesma é criação, Arte.

A Vida é um processo que atravessa nosso vivido e rompe os limites utilitários deste; do mesmo modo que o Sentido , quando trabalhado pelo poeta, emerge na linguagem extravasando as significações dominantes que prescrevem à palavra um limite. O deslimite é o processo que faz do inacabamento o estado sempre renovado que não deixa com que as coisas acabem, sendo então reinventadas pelo processo criativo ― tanto na poesia como na vida.








(contracapa)

segunda-feira, 10 de abril de 2017

formas em rascunho , harmonia selvagem



















Quero escrever movimento puro.
Clarice Lispector

É verdade que, no caminho que leva ao que cabe pensar,

tudo parte da sensibilidade.
Gilles Deleuze


Não é a coisa limitada que impõe um limite ao infinito;
é o limite que torna possível uma coisa limitada.
Todo limite é ilusório, e toda determinação é negação, 
se a determinação não está numa  relação imediata com o indeterminado.
Gilles Deleuze




"É preciso fazer a diferença” ( Deleuze). Só há diferença quando  feita, arriscada, ousada, instaurada. A diferença que não faz diferença não é diferença, é mera oposição, reação, impotência.A diferença, quando faz diferença, inventa a si própria como acontecimento novo, que para ser compreendido requer também um modo de conhecer e perceber diferentes.A diferença não é algo que se encontra pronto, muito menos se acha codificada em uma cartilha ou receita.Não se sabe o que é fazer diferença a não ser quando ela é feita. O conhecimento da diferença vem depois de ela mesmo ter sido feita, pois a diferença é exatamente aquilo que não se conhece antes dela, não se pode conhecê-la de forma a priori.Ao ser feita, a diferença também faz o conhecimento que se tem dela, conhecimento este também diferente, novo.Como fazer a diferença? Repetindo-a.  Por isso, a diferença é inseparável da experiência com ela própria. Em tudo aquilo que fez diferença há um aprendizado: repetir não o que se fez, mas repetir a diferença , que somente no novo se pode fazer.E qual é essa diferença? A inventada, criada, produzida. Nenhuma diferença cai do céu, embora toda autêntica diferença seja um celestar as coisas do chão. É do fazer a diferença que nasce um estilo. O estilo é uma harmonia na diferença, uma harmonia nada domesticada , uma harmonia selvagem, como os solos de uma alma livre,  sabedora de  que todo solo somente é possível quando agenciado a solos diferentes.




sábado, 8 de abril de 2017

alma nova








Esse antigo armário,
hoje num canto jogado,
outrora guardava a roupa da moda.
Hoje, é o tempo que o guarda,
como uma de suas peças novas.

O tempo,
esse invisível armário sem portas,
ama em corpo antigo pôr alma nova.






sexta-feira, 7 de abril de 2017

as cinco raças de homens, segundo hesíodo

A eternidade está longe:
brinca de tempo-será.
Manoel Bandeira

Os mortos e os vivos são pó.
A diferença entre eles?
Os vivos são pó que o vento levanta.
Vaidade é o nome desse vento.
Padre Antônio Vieira

                              
Segundo Hesíodo, há cinco tipos ou raças de homem. Cada tipo recebe como símbolo um determinado elemento. O que vale é o aspecto simbólico, não a referência material literal, empírica. Há homens de ouro, de prata, de bronze, de ferro e  de barro. Quando Hesíodo escreveu, há mais de 2. 700 anos, os homens de ouro e prata eram apenas lembrança -  lembrança poética, ética e mítica. No tempo em que viveu o poeta o homem de bronze já anunciava o seu ocaso, pois no horizonte próximo já vinha o homem de ferro, com seu pesado fardo a carregar. O homem de barro era anunciado pelo poeta para um futuro incerto.
O homem de ouro era aquele que vivia na companhia do divino. Não havia entre o plano humano e o divino um abismo: o homem aprendia a sabedoria sem precisar de livros. Sábio, mas não erudito, o homem crescia no corpo e no espírito: a passagem do tempo não era envelhecimento, mas ampliação de sua capacidade de estar à altura da companhia do divino. Não havia escultura, pintura  ou outra arte, pois o artístico era a própria vida, que era feita mais de cores do que de formas. Os deuses ainda não tinham templo, pois a casa deles era a mesma dos homens de ouro: ambos habitavam a terra como chão e o céu como teto, sem paredes.
Porém, alguns desses homens não souberam honrar a companhia do divino: passaram a se achar seus representantes e falar por eles, com a intenção de obterem poder sobre os outros homens. Então os deuses se afastaram, e tais homens, sozinhos, desapareceram.
Os deuses criaram então os homens de prata. Estes viviam 100 anos como crianças apenas. Viviam brincando nos jardins onde nada faltava. E, cansados de tanto brincar, adormeciam e entravam em um sono sem sonhos, pois sonhos apenas existem para aqueles cuja realidade é frustrante, cabendo então ao sonho realizar o que o desejo desperto não obtém. Mas como os homens de prata de nada careciam, pois de nada sentiam falta, do sonhar dormindo não precisavam. Eles vivam na inocência de uma vida sem culpa. Após completarem 100 anos, os deuses deixavam então que os homens crescessem, para rapidamente envelhecer e morrer, sem dor, dormindo. Porém, nem todos se contentavam apenas com o lúdico, não poucos se tornavam tolos, caprichosos, egoístas, enfim, “infantis”: choravam pela presença dos deuses, exigindo que estes lhes fizessem favores e concedessem privilégios. Assim, o ciúme crescia entre os homens-infantis. Os deuses então novamente se afastaram, e tais homens pereceram.
Uma nova raça de homens  foi criada pelos deuses: os homens de bronze. Estes eram corajosos e destemidos, porém belicosos e querelantes. Ambicionam o domínio, a posse , o poder. Mas como eram independentes e honravam os deuses, estes deixaram que crescessem em número e habilidades. Entre estas, uma se destacou: o engenho para criar armas. O homem de bronze se tornou o homem da guerra, da busca pela glória. Porém, tornou-se também o campeão da violência contra o  outro homem, fazendo os vencidos de escravos. Logo a pretensão também se tornou marca desses homens, de tal modo que quiseram guerrear com o próprio invisível onde morava o divino, revelando  assim que o poder os enlouquecera. Os deuses, sem piedade, exterminaram tais homens de bronze.
Foram criados então os homens de ferro. Estes nasceram sob a carga da necessidade: nus, precisavam cobrir o corpo; famintos, necessitavam achar alimentos; fracos , sentiram que precisavam se unir . Para tal, inventaram as leis, as obrigações e o trabalho. Viviam mais ocupados com a terra do que com o céu. E todos os seus engenhos e conhecimentos estavam voltados para inventarem meios que amenizassem a penosa existência. Entre alguns deles , porém, não lhes satisfazia essa vida rasteira, rasa. Entre esses insubmissos ao poder do mero  útil,  nasceu uma fuga, uma "linha de fuga", que tomou a forma de uma metamórfica iluminação:  eles adquiriram então olhos e ouvidos para verem e ouvirem a dança e o canto das Musas Divinas. Conferindo um novo uso às mãos , não apenas para o trabalho  mas para a criação, esculpiram o que viram nas pedras,criando esculturas que davam a ver o invisível ; dando às palavras nova função, diziam por elas o que lhes cantavam as Musas, inventando assim a poesia. No meio da indigência nasceu o artista, o poeta, para com a arte "celestar as coisas do chão". Hesíodo foi um desses celestadores.
Havia ainda uma quinta raça por vir , dizia o poeta. Nela não haverá mais a menor lembrança do divino, apenas imaginações parcas. Essa raça nascerá sob a marca do precário, do fugidio, do inconstante, do vazio, do "líquido" ( não enquanto fluxo poético heraclítico, mas semelhante à fluidez inconstante do Capital...) . O homem nascido nessa época será o homem de barro. Não o barro que pode ser modelado e se tornar receptáculo para o belo ou para o útil, como os vasos , ânforas e jarras. Tampouco se trata do barro como meio de expressão do popular estilo, como nas pequenas estátuas modeladas pelas mãos do artista nordestino. Na mitologia, Prometeu fez o homem a partir do barro; porém a habilidade manual, a inteligência e sobretudo o coração, como sede do afeto da justiça, vieram dar vida ao peso morto. O barro desse homem de barro é apenas o barro mesmo, este que apenas o vento, e não as virtudes e as ideias, põe de pé. 
Das épocas de ouro e prata ele desejará apenas o metal, a parte material, ignorando o simbolismo. Tal homem de barro nutrirá  a mesma sanha belicosa dos homens de bronze, porém desconhecendo as virtudes guerreiras destes, sobretudo a honra. Dos homens de ferro eles herdarão as carências e necessidades, mas não a profundidade visionária de seus artistas. A principal marca do homem de barro, diz Hesíodo, será sua total insensibilidade a tudo aquilo que não seja seu próprio ego. Eles talvez sejam os últimos dos homens, pensava Hesíodo. Porém não serão os deuses a destruí-los, pois a estes tais homens  mesmos os terão destruídos antes,  de tal sorte que os templos que construirão  serão, na verdade, túmulos.E construirão muitos... Não serão os deuses que destruirão tais homens, serão eles mesmos a arma  disso, do barro ficando apenas o pó .















o desejo como metamorfose





http://www.alegrar.com.br/revista10/

Título do artigo : Espinosa, Deleuze & Guattari: o desejo como metamorfose.

(trecho )


Em latim, o termo correspondente a desejo é cupiditas.Este termo se refere ao deus Cupido .Em grego, Eros. Cupido era um daimon, isto é, um ser das fronteiras, dos limiares. O daimon guia a quem quer fazer a travessia entre o que nasce e morre e o que é eterno. O daimon é o habitante desse espaço que é travessia, meio, devir.Trata-se de um meio de passagem: não passagem de um lugar para o outro, mas passagem de uma existência a um grau dela mais potente. É por isso que Cupido possuía asas. Todavia, a maioria das representações que temos de Cupido estão impregnadas com a visão cristã do mundo. Tal visão chama de “anjo” o que os romanos designavam como daimon. A principal diferença entre o daimon e o anjo reside no seguinte: os anjos possuem asas feitas de penas, como as que possuem os pássaros, ao passo que o daimon, incluindo o Cupido, possuía asas também, mas estas eram asas de borboleta [no entanto, na iconografia cristã por vezes as asas de borboletas aparecem: não nos anjos eternos, mas nos ressuscitados , isto é , nos que nasceram, morreram e nasceram novamente].Há uma razão para Cupido ter asas de borboleta, e não de pássaro. Os pássaros já nascem com asas. Contudo, as asas da borboleta nasceram quando houve um segundo nascimento : elas são a expressão de uma metamorfose ,tal como ocorre com o garoto do filme espanhol A língua das mariposas (cuja tradução mais correta seria A língua das borboletas ): contagiado pela Natureza, ele vive a alegria de um conhecer que é metamorfose .
 Foi de um ser que rasteja pelo chão, a lagarta, que as asas da borboleta nasceram. Para estas nascerem, foi preciso que a lagarta se dobrasse sobre si: é assim, dobrada sobre si, inventando para si um casulo, que a lagarta pôde desabrochar. O desabrochar é um desdobrar aquilo que nos é imanente. Isso nos mostra que a re-flexão, o dobrar sobre si, é um acontecimento da própria natureza. Esse acontecimento é uma metamorfose da qual nascem asas, asas estas com as quais não nascemos em um primeiro nascimento. A metamorfose também é uma prática de paciência. A paciência não é uma passividade, ela é uma ação. Ela não significa exatamente suportar o que nos acontece, mas nos preparar para sermos o que de fato somos independentemente das flutuações dos fatos ao redor. A paciência é uma virtu, uma força da alma.A paciência não é uma espera por algo, ela é a conduta que devemos ter para produzirmos aquilo pelo qual não devemos esperar que um outro faça por nós. O casulo expressa a arte da paciência da qual nasce a autêntica autoconfiança. Padecer é tornar-se paciente de uma ação externa. Todavia, quando agimos sobre nós mesmos é com paciência que se obra. A paciência não é o tempo de espera por algo que virá, ela é o processo de afirmação e produção do que já se é.




segunda-feira, 3 de abril de 2017

alma acesa



A vida deve queimar como uma chama forte.
Ela não nos cegará ou queimará,
quando formos a própria chama.
Oscar Wilde



A melhor maneira de ver no escuro
é mantendo a alma acesa.





a visão fontana do poeta


Sei falar a linguagem dos pássaros:
é só cantar.

***

Seu canto é o próprio sol tocado na flauta!

Manoel de Barros



Segundo Manoel de Barros, o poeta é aquele que possui visão fontana, uma visão que é fonte do que vê. Não é uma visão que constata o referente ou objeto; diferentemente, ela é uma visão que vê , antes, o sentido - que é a alma das coisas. Toda fonte se comunica com um fluxo invisível , que é de onde vêm as águas que nela nascem e fluem. Embora possam estar, hoje, sob o chão, tais águas já estiveram, outrora, no céu  - do qual caíram como chuva; elas já circularam também no interior dos animais, como sangue e suor ; já desceram as montanhas quando a neve derreteu; já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; já foram o meio que alimentou o feto no interior da placenta. Um dia tais águas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; sobre elas o Espírito, um dia, andou ;hoje sobre elas se surfa, se desliza, se mergulha. E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos a bebem. É esse elemento que está em tudo , e que é a Vida de tudo em processo, é este elemento o que o poeta vê e sente , primeiro nele, como metamorfose e encantamento.


(esse livro que escrevi se encontra esgotado na editora. Minha eterna gratidão ao poeta Manoel de Barros e aos que leram e divulgaram o livro)

sábado, 1 de abril de 2017

livro Uff

                                      



( Neste livro há um capítulo escrito por mim  dedicado ao poeta)



Trecho:




                                             Manoel de Barros: um sabiá com trevas                                                                                                                                                                                 


O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,
 e significa que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.
Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.
Gilles Deleuze



1. Introdução: não se pode passar régua em Manoel
No dia 6 de setembro de 2016 o Centro de Artes Uff prestou uma bela e mais do que merecida homenagem ao centenário de Manoel de Barros. O evento fez parte do Festival Nacional de Cultura Popular – Interculturalidades, organizado pela Uff. Fiquei honrado e feliz por ter sido convidado a participar da homenagem, juntamente com Douglas Queiroz Marçal (assessor de Cultura e de Comunicação da Fundação Manoel de Barros), Luiz Henrique Barbosa (pesquisador da obra do poeta), Mário  Chagas (poeta), Gabraz Sanna (diretor do filme “Língua de Brincar”) e ainda o neto do poeta, Thiago Barros.
A mesa que nos reuniu teve por título um verso do Manoel: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”[2]. Quanta beleza e generosidade nessa frase! Não por acaso, “generoso”, “gerar” e “gente” procedem de uma mesma raiz: “gen”, que significa exatamente “nascer”. O poeta-generoso faz nascer ideias, afetos, percepções, comportamentos, empoemamentos...lá mesmo onde tudo parecia entregue, “acostumado”[3]. Esse “fazer nascimento” é uma forma de resistência que irradia de seus poemas e vem se alojar naquilo que em nós “pede um pouco de possível, para não sufocar”, como dizia Foucault. Há uma inocência nesse resistir, pois se resiste brincativamente[4]. Creio ser esse fazer nascimento a essência do que em Manoel é uma original “empoética” , como prática lúdica, ética, política e clínica de empoemar-se (sobre a qual falaremos mais adiante[5]). 
Como definir Manoel de Barros? Essa pergunta suscita outra: por que querer defini-lo? Manoel de Barros é definível? Creio que a dificuldade de se classificar Manoel, pôr nele uma etiqueta, deve-se ao fato de que sua poesia, como poucas, pouquíssimas, é uma aproximação com as fontes[6]. O próprio Manoel é grato às suas fontes. A fonte é a origem que renova[7]. Ser grato às fontes é devir fonte. A fonte também é uma visão, uma visão fontana[8]. A visão fontana faz nascimento no ato de ver, pois “é pelo olho que o homem floresce”.[9] O mundo que os olhos da lagarta veem não é o mesmo que verão os olhos da borboleta: os mundos mudarão porque mudarão, antes, os olhos, diferentes olhos terão florescido.
Há estudos feitos no âmbito da teoria literária que tentam esquadrinhar a obra do poeta, buscando afinidades e filiações, simpatias e pertencimentos. Há razão nesses estudos, não há o que questionar. Porém, basta ler o poeta para perceber que nele há um estilo ainda não catalogado, ainda não visto, como passarinho cuja espécie carece ainda de nome. Há em Manoel uma verdez[10], uma não velhez : a “velhez não tem embrião”[11]. Para saber e experimentar essa não velhez basta lê-lo...Porém, há ainda aqueles que dizem ser Manoel uma fórmula, que há uma fórmula-Manoel , como se o poeta se repetisse. Reduzem sua poética a algumas ideias-imagens que se repetem. Com isso, parecem querer não achar motivo ou razão para perdurar, e renovar, tanto encantamento que muitos encontram em Manoel, sejam eruditos ou não, letrados ou gente simples, jovens, crianças ou idosos.
Contudo, já li não sei quantas vezes um mesmo poema do Manoel. Cada vez que o leio se produz em mim um empoemamento completamente diferente do empoemamento que tivera ao lê-lo anteriormente. É sobre este verbo que é preciso ter a atenção: o empoemar. A obra de Manoel é uma empoética. Não se lê Manoel sem empoemar-se. Mas o que significa empoemar-se? É possível definir esse afeto-metamorfose? O mesmo acontece quando se pergunta acerca do que significa o tempo, o infinito, o desejo, o inconsciente, o absoluto, o sentido...  Pode-se dar uma resposta que encerre o problema? Ou ainda: o que significa pensar? Quem se satisfaz com uma resposta que de-fina, dá fim, a essas questões?
Manoel traz uma questão ainda mais nova, que talvez sempre permaneça como a prova de que em seus versos há um “embrião”, desde que em nós também se ache uma verdez. A novidade manoelina não diz respeito à diferença sempre debatida entre a poesia e o poético, mas entre o poético e o empoético.






[2] Encontros: Manoel de Barros (org. Adalberto Müller), Rio de Janeiro: Azougue, 2010p. 135.
[3] “Não use o traço acostumado”, verso do poema “As lições de R.Q.”, Livro sobre nada.
[4] Nossa linguagem não tinha função explicativa, mas só brincativa”, versos do livro/poema Escritos em verbal de ave.
[5] Para saber mais sobre essa “empoética”, remetemos ao estudo que fizemos: Manoel de Barros : a poética do deslimite .
[6] Poema “Fontes”, Memórias inventadas - as infâncias de Manoel de Barros, p. 147.
[7] “Aprendimentos”, Memórias inventadas. - as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.
[8] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11.
[9] “A volta (voz interior)”,Livro de pré-coisas, p. 68.
[10] “Resta sempre uma verdez primal em cada palavra”, verso do poema “Pedras aprendem silêncio nele”, Gramática expositiva do chão – poesia quase toda, p. 342.
[11] Encontros: Manoel de Barros, p.98.




Salut II

Cantei.
E a nuvem que me cegava,
passou.

Cantei.
E o raio que vinha,
voltou.

Cantei.
E o nó que me apertava,
folgou.

Cantei.
E o ontem que continuava,
findou.

Cantei.
E o sentido de que me perdi,
me achou.

Cantei.
E a alegria de mim surda,
me escutou.