domingo, 25 de janeiro de 2015

uma consulta (gratuita) com o drº espinosa ( clínico geral)


Ninguém pode dizer: “Nunca mais vou ficar gripado em minha vida!”.Pois dizer isso seria como imaginar poder fazer desaparecer, com simples palavras, os vírus e seus transmissores. Além disso,  nosso corpo é uma parte do mundo : ele possui incontáveis portas e janelas por onde  infinitas coisas entram e, por isso, ele está sujeito a   ações de seres exteriores que existem independentemente da nossa vontade.
Porém, o que está ao meu alcance é agir de tal forma que a gripe, ou o vírus que a propaga, não conte com minha ajuda para que aquilo que me enfraquece se instale em mim.A única maneira de evitar a gripe é agindo, e não meramente falando ou imaginando. Quanto mais eu agir, e pensar, mais a gripe não me pegará. Agir por amor à saúde, e não por ódio ou medo da doença.Agir em favor da saúde do meu corpo também é agir em favor da saúde do corpo social, bem como de minha mente e da mente coletiva, social.
Além disso, o que chamamos de gripe é tão somente a busca do vírus pela sua própria saúde, isto é, por fortalecer sua existência. Se olharmos as coisas de uma perspectiva não pessoal, não existe doença, existe apenas saúde, vida.E se o vírus nos provoca a doença, não é por ódio ou raiva de nós, mas por amor ao modo de ser dele, modo de ser este que ele sempre afirmará com o máximo de potência que ele tiver .
Como afirmar então nosso amor à nossa maneira de ser? Compreendendo que nosso corpo faz encontros com outros corpos, e que alguns desses corpos podem destruir o nosso, não por ódio, mas por querer afirmar a si próprio. Então, devemos compreender como o vírus age, como é seu modo de ser, e disto apenas nos tornamos capazes  quando adquirimos amor pelo conhecer, pois é ele que nos faz compreender como vive o vírus. O conhecer é a saúde da alma. Ao contrário, se imaginarmos que o vírus age por ódio ou como um enviado do “demônio”, jamais compreenderemos como vencê-lo, já que nós mesmos não teremos amor ao conhecimento: teremos na alma apenas ódio ao vírus e ao próprio conhecimento que poderia nos libertar ( nos libertar não apenas da doença que o vírus traz, como também da própria doença da ignorância).
O que vale para a gripe também se aplica aos sentimentos. Ninguém pode dizer: “Jamais sentirei ciúmes, ódio ou inveja!”. Imaginar isso seria como crer que não temos corpo, e ignorar também que este sofre a ação de outros corpos .Pior: imaginar isso seria crer que tais sentimentos existem em nós porque somos fracos, irrecuperáveis...(o que faz a alegria da indústria farmacológica ,bem como enriquece pastores espertalhões...).
Esses sentimentos podem existir em nós pelas mesmas causas que fazem existir a doença na natureza. E uma dessas causas é nossa imaginação, já que a compreensão nos mostra que, de um ponto de vista maior, não existe doença, apenas saúde.Para vencermos a tirania daqueles sentimentos, somente compreendendo como eles nascem.
Então, assim como é impossível não ficarmos gripados, é igualmente impossível não termos aqueles sentimentos. Mas assim como podemos, pela ação, evitar ficarmos gripados, também podemos evitar termos ciúmes, inveja, etc ( não, claro, isolando-se, mas pensando os encontros que fazemos, a começar pelo encontro consigo mesmo). Antes de tudo, compreendendo que o ser que nos provoca tais tristezas não o faz sozinho: nós também somos, reativamente, causa, causa parcial, daqueles sentimentos que nos enfraquecem.

Assim como só existe a saúde, apenas existe o amor. O ódio é uma gripe que apenas conseguiremos vencer se agirmos de acordo com o amor. Mas a coisa certamente não é tão fácil, pois uma simples gripe pode crescer e matar, assim como o cotidiano ódio que supomos inofensivo.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

a didática do manoel

MANOEL DE BARROS:UMA DIDÁTICA DA INVENÇÃO
(artigo publicado na Revista Brasileiros, em parceria com Paulo Vasco)

A primeira vez que ouvi falar de Manoel de Barros foi em uma aula de filosofia ministrada por um professor pelo qual eu tinha uma imensa admiração, o filósofo Cláudio Ulpiano. Este citou um verso do poeta para ilustrar uma ideia da filosofia. Eu tinha pouco mais de 20 anos. Uma outra pessoa “desabriu em mim”. Nunca mais parei de comungar com seus versos, seus pensamentos, suas visões comungantes. Ele me terapeutou. Parte dessa “terapia” foi me curar de uma propensão acadêmica de pouco olhar para o Brasil. Ficamos com os olhos teóricos na França, na Alemanha...e não vemos o nosso quintal. O poeta me ensinou a “desaprender os saberes que vêm em tomos”.
 Dessa terapia verbal ousei escrever um livro sobre o poeta.  O próprio poeta foi meu primeiro leitor, pois enviei os rascunhos, as “formas em rascunhos”, para ele. Eu pedia sua autorização para publicação. Obtive o endereço do poeta com sua filha, a Martha Barros, em 2008.Ela me orientou a não telefonar para ele e muito menos escrever-lhe e-mails. Eu deveria escrever para o poeta à mão, pois assim ele veria, além da letra, o espírito. Fiz o recomendado. Enquanto não vinha a resposta do poeta, fiquei com o coração na mão. Um dia, recebi uma carta com letrinha miudinha, parecendo caminho de formiga. Com generosidade e atenção, ele autorizou a publicação do livro. “Voei fora da asa” de tanta alegria. No livro, foram com essas simples palavras que terminei a apresentação que fiz do querido e inestimável poeta:
 “Mais do que um poeta, Manoel de Barros é um pensador, um pensador brasileiro. Empregamos aqui ‘brasileiro’ no sentido mais genuíno e rico que esta palavra pode ter, pois ser brasileiro é ser, em essência, ‘mestiço’. Não nos referimos, claro, a uma mestiçagem baseada em cores de pele, mas na mistura singular de almas heterogêneas    que fazem nascer em uma única alma a capacidade de falar e sentir por muitas. Só a mestiçagem de almas pode dar nascimento   a um estilo ao mesmo tempo singular e plural, poético e filosófico, autóctone e estrangeiro.” (Manoel de Barros: a poética do deslimite, Rio de Janeiro, Editora 7letras/FAPERJ, 2010). 

link para texto completo:
http://brasileiros.com.br/2015/01/manoel-de-barros-uma-didatica-da-invencao/

versão impressa:






segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

manoel de barros e deleuze: rizomas




Usa-se a inteligência   para entender a não-inteligência [ o afeto, a  arte, a vida].
Só que depois o instrumento  -  o intelecto - por vício de jogo continua  a ser usado,
 e não  se pode colher as coisas de mãos limpas,
diretamente na fonte.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.



Na natureza  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas. As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico  andarilho, um Andaleço de espaços lisos de itinerâncias.Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema : raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas  sustentadas dogmaticamente  pelo tronco.  Descartes,o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofiaMil Platôs). O rizoma é  constituído por  raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma  não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele  guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha  para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir:  expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” , como diz Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos . Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção. 

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

alvorada


Dizem que ele é o último dia.
Ontem o imaginei um velho,
um quase morto.
Mas em sua aurora hoje ele me acordou:
Que manhã...
Dia 31 também é dia novo!


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

paisagens de verão (summertime)



Quando a alma anda perdida na memória,
é o olho do corpo que a salva:
mostrando-lhe um novo presente
que nasce agora.













segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

manoel de barros:o poeta do deslimite

deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.

(trecho do livro)


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

manoel de barros:"o que é verdadeiramente novo nunca vira sucata"

No poema “Achadouros” , Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros, os homens escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro.O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha o mundo ainda por descobrir. Ele acha, em meio ao barro, ao húmus, ele acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.

Nietzsche dizia que o novo  sempre é novo, o estabelecido sempre o foi.É uma ilusão nascida da idéia de progresso ( e que faz par com a idéia de decadência) supor que o que hoje é estabelecido um dia foi novo, ou o que hoje é novo um dia será o estabelecido. O novo sempre foi, é e será novo. Ele antecede, sucede e é coetâneo a si mesmo, como metamorfose. A infância não é  apenas uma  época passada reportada a uma fase da vida,  a infância é "semente da palavra".  Aquilo que é realmente novo, sempre o foi e será; por outro lado, aquilo que é o estabelecido, o "acostumado" ( diria o poeta), sempre o foi e o será também. O novo nunca será o estabelecido, e o estabelecido nunca foi , outrora, o novo.É uma ilusão nascida  do tempo concebido linearmente supor que o novo hoje será, amanhã, o estabelecido; ou que o estabelecido hoje foi, ontem, o novo. Essa ilusão escamoteia um pré-julgamento: o que faz do estabelecido o critério para conhecer o novo. O estabelecido é a gramática, o "saber em tomos", a "expressão reta"; o novo é a agramática, a ignorãça, a infância da palavra, o feto dos nomes. O novo nunca é território: ele é sempre agente de desterritorializações.Os objetos viram sucatas: "Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel (...).Até nave espacial vira sucata" (2010b, p. 71). Todavia, os desobjetos poéticos são sempre fontes de invenção, e esta nunca vira sucata. 


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

aurora 2

Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite”.
Homero, Ilíada.


Assim como a membrana
rodeia  e protege o núcleo da vida,
e o núcleo da vida é o nascer
que antecede a criança,
a aurora rodeia e protege
o novo dia,
e sua luz sem tremer aos vivos chama:
"levanta!"









quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Manoel de Barros:desbiografia



A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um sujeito coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento
 O verbo tem que pegar delírio.

Este “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.

Trecho do livro: