quinta-feira, 31 de julho de 2025

Espinosa educador: Conceitos, Afetos & Práticas

 

Espinosa vem sendo estudado por pesquisadores das mais diversas áreas. Além disso, o interesse por sua obra não para de crescer, mesmo entre o público não formado em filosofia. Contudo, o contato direto com a obra de Espinosa dificulta a plena apreensão de seus conteúdos . Isso se deve à maneira geométrica mediante a qual o filósofo expõe suas ideias.

Nesse sentido, à primeira vista, parece que Espinosa não teve uma preocupação didática. Mas essa visão se desfaz quando obtemos uma compreensão mais pormenorizada da obra, tendo como pano de fundo seu pensamento  como um todo. Mesmo o uso da geometria tem razões didáticas. Embora sejam poucas, pouquíssimas, as referências de Espinosa à Educação, essas referências valem não pelo seu aspecto quantitativo, mas pela sua natureza constituinte de oferecer  um fundamento e objetivo geral à sua Ética.

É o objetivo principal desta Pesquisa mostrar que há em Espinosa, virtualmente ou em esboço,  a configuração de uma proposta de Educação que, tendo como base sua Ética,  traz elementos que , a despeito de terem sido formulados há trezentos anos, ainda trazem uma novidade que merece ser descoberta. 


Uma das contribuições mais singulares de Espinosa à filosofia , sobretudo no âmbito da Teoria do Conhecimento, é afirmar que o conhecimento não se faz apenas com ideias, o conhecimento também envolve afetos. Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou  maneiras da mente, os afetos igualmente  o são ( Ética, Parte 3, Definição geral dos afetos). Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos ou maneiras de pensar, um pensar que  sente , uma vez que envolve o corpo ( Ética , Parte 3 , esc. da proposição 11).

Por essa razão, há uma diferença entre as ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto ânimo ( Ética, Parte 2, axioma 3). O ânimo é a mente enquanto unida indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida. Às vezes, Espinosa se refere ao ânimo  (animus ) como o “coração”. Não no sentido romântico ou meramente subjetivo, e sim enquanto sede viva dos afetos. O coração também pensa, porém sentindo.

A coragem, segundo Espinosa, é a presença do ânimo levando-nos a agir. A covardia e o  medo ,ao contrário, são  uma forma de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de nossa mente e de nosso corpo. A potencialização do ânimo não se faz apenas com as ideias, mas também com os afetos.  O ânimo fortalecido não teoriza apenas , ele também sente e age : dá pernas e braços às ideias . Um ânimo fortalecido é aquele que age pelo fortalecimento de outros ânimos, de outras mentes e corpos. Esse agir é o fundamento da ética de Espinosa, de tal modo que o conhecer nada é se não suscitar um agir. 

Em Espinosa, “fortaleza” ( fortitudo) não é apenas uma palavra, é uma virtude, uma das principais de sua filosofia ( Ética, Parte 3, prop. 59, escólio). A fortaleza é a expressão imediata da ação mais característica da mente que se torna ativa: a compreensão. A fortaleza é a virtude-potência da mente que compreende. Essa virtude-potência possui dois aspectos interligados: a firmeza e a generosidade. A firmeza é a fortaleza para consigo mesmo enquanto agente, ao passo que a generosidade é a fortaleza  para com o outro. Reconhece-se uma mente que compreende, uma mente que filosofa, pelo fato de que ela é fortaleza de ânimo. Na língua banto, fortitudo é “quilombo”.

O ânimo não se fortalece sozinho, não há um “cogito” que o possibilita, uma vez que o fortalecimento do ânimo  requer o que Espinosa chama de “encontros”, “bons encontros”. O termo “encontro” é a tradução da palavra latina occursus. De rica acepção, occursus também pode ser “circuito”. Esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e tiraniza, corpo e mente.

Occursus também pode significar “boas-vindas”. Na Roma Antiga, occursus era um processo que preparava o introitus, a introdução à cidade, à civitas: do lado de fora das  portas abertas da cidade, o visitante recebia o occursus, o boas-vindas, para em seguida  ser introduzido no convívio da civitas. Um bom encontro constrói um circuito de boas-vindas  . Todo bom encontro  recebe quem nele entra como um espaço de boas-vindas, sobretudo daquilo que cada um tem de singular e diferente , de tal modo que um occursus é sempre um boas-vindas à autonomia[1]. O partejar socrático é um boas-vindas que o encontro filosófico possibilita àquele que , (auto)conhecendo-se, chega enfim a si mesmo como se fosse um ser novo.

O mau encontro, ao contrário, é quando a nossa maneira de ser é mal-vinda : portas fechadas à nossa entrada, seja a entrada ao conhecimento,  seja a entrada à cidadania, seja a entrada à nossa “cidadela interior”, como dizia Marco Aurélio, e sem a qual não há o despertar para a filosofia enquanto autoconhecimento.

Até aqui não empregamos o termo educação. Mas esta é nossa principal hipótese:  todos esses processos que cartografamos sucintamente  em Espinosa descrevem um processo do qual poderíamos extrair uma concepção de educação. Afinal,  um processo  educativo  é um  bom encontro  quando ele é prática de cuidado/boas-vindas ao que no educando  é potência ainda. Um bom encontro é sempre um espaço de agenciamentos, nunca um monólogo. Um espaço educativo se torna um  topos de boas-vindas quando, por intermédio dele, o educando também é introduzido ( introitus)   à sociedade, ao mundo, à vida, enfim, a ele mesmo por meio  da educação que o faz descobrir a si próprio. Também para aquele que educa o processo de ensino e aprendizagem deve ser vivido como um  “boas-vindas”, por mais que se tenha vivido inúmeras vezes aquele encontro na vida. Vista sob essa perspectiva, a educação deve fazer-se como um circuito que emancipa, como uma pólis sempre renovada.  Nesse sentido, a educação é mais do que  transmissão de conhecimento: é construção de  um circuito gerador de um modo de vida. Nesse circuito, não apenas as têm lugar ideias , também estão implicados afetos.



[1] Embora não cite Espinosa , Derrida fundamenta uma “ética da hospitalidade” na prática de “boas-vindas” em um sentido muito próximo ao que aludimos aqui. Apoiando-se nessa “ética da hospitalidade”, Fábio Araújo (2006)  propõe uma clínica da afetividade calcada na ideia de “acolhimento” e “amizade”. E segundo Walter Kohan e Maximiliano Durán (2020), a hospitalidade é um dos princípios de uma “escola filosófica popular”.


Este texto é parte de uma pesquisa sobre Espinosa que desenvolvo na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO. A partir de setembro, haverá atividades abertas  ao público externo. Para informações: eltonluizleitedesouza@unirio.br




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