Espinosa vem sendo estudado por pesquisadores das mais diversas áreas. Além disso, o interesse por sua obra não para de crescer, mesmo entre o público não formado em filosofia. Contudo, o contato direto com a obra de Espinosa dificulta a plena apreensão de seus conteúdos . Isso se deve à maneira geométrica mediante a qual o filósofo expõe suas ideias.
Nesse sentido, à primeira vista, parece que
Espinosa não teve uma preocupação didática. Mas essa visão se desfaz quando
obtemos uma compreensão mais pormenorizada da obra, tendo como pano de fundo seu
pensamento como um todo. Mesmo o uso da
geometria tem razões didáticas. Embora sejam poucas, pouquíssimas, as
referências de Espinosa à Educação, essas referências valem não pelo seu
aspecto quantitativo, mas pela sua natureza constituinte de oferecer um fundamento e objetivo geral à sua Ética.
É o objetivo principal desta Pesquisa mostrar
que há em Espinosa, virtualmente ou em esboço, a configuração de uma proposta de Educação
que, tendo como base sua Ética, traz
elementos que , a despeito de terem sido formulados há trezentos anos, ainda
trazem uma novidade que merece ser descoberta.
Uma das contribuições mais singulares de
Espinosa à filosofia , sobretudo no âmbito da Teoria do Conhecimento, é afirmar
que o conhecimento não se faz apenas com ideias, o conhecimento também envolve
afetos. Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou maneiras da mente, os afetos igualmente o são ( Ética, Parte 3, Definição
geral dos afetos). Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos
ou maneiras de pensar, um pensar que
sente , uma vez que envolve o corpo ( Ética , Parte 3 , esc. da
proposição 11).
Por essa razão, há uma diferença entre as
ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto
intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto ânimo ( Ética, Parte 2, axioma 3). O ânimo é a mente enquanto unida
indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida. Às vezes, Espinosa se refere ao ânimo
(animus ) como o “coração”. Não
no sentido romântico ou meramente subjetivo, e sim enquanto sede viva dos
afetos. O coração também pensa, porém sentindo.
A coragem, segundo Espinosa, é a presença do
ânimo levando-nos a agir. A covardia e o
medo ,ao contrário, são uma forma
de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de
nossa mente e de nosso corpo. A potencialização do ânimo não se faz apenas com
as ideias, mas também com os afetos. O
ânimo fortalecido não teoriza apenas , ele também sente e age : dá pernas e
braços às ideias . Um ânimo fortalecido é aquele que age pelo fortalecimento de
outros ânimos, de outras mentes e corpos. Esse agir é o fundamento da ética de
Espinosa, de tal modo que o conhecer nada é se não suscitar um agir.
Em Espinosa, “fortaleza” ( fortitudo) não
é apenas uma palavra, é uma virtude, uma das principais de sua filosofia ( Ética,
Parte 3, prop. 59, escólio). A fortaleza é a expressão imediata da ação mais característica
da mente que se torna ativa: a compreensão. A fortaleza é a virtude-potência da
mente que compreende. Essa virtude-potência possui dois aspectos
interligados: a firmeza e a generosidade. A firmeza é a fortaleza para consigo
mesmo enquanto agente, ao passo que a generosidade é a fortaleza para com o outro. Reconhece-se uma mente que
compreende, uma mente que filosofa, pelo fato de que ela é fortaleza de ânimo. Na
língua banto, fortitudo é “quilombo”.
O ânimo não se fortalece sozinho, não há um
“cogito” que o possibilita, uma vez que o fortalecimento do ânimo requer o que Espinosa chama de “encontros”,
“bons encontros”. O termo “encontro” é a tradução da palavra latina occursus.
De rica acepção, occursus também pode ser “circuito”. Esse sentido talvez
explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um
circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são
construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um
curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e
tiraniza, corpo e mente.
Occursus também pode significar “boas-vindas”.
Na Roma Antiga, occursus era um processo que preparava o introitus, a
introdução à cidade, à civitas: do lado de fora das portas abertas da cidade, o visitante recebia
o occursus, o boas-vindas, para em seguida
ser introduzido no convívio da civitas. Um bom encontro constrói um
circuito de boas-vindas . Todo bom encontro recebe quem nele entra como um espaço de
boas-vindas, sobretudo daquilo que cada um tem de singular e diferente , de tal
modo que um occursus é sempre um boas-vindas à autonomia[1]. O
partejar socrático é um boas-vindas que o encontro filosófico possibilita
àquele que , (auto)conhecendo-se, chega enfim a si mesmo como se fosse um ser
novo.
O mau encontro, ao contrário, é quando a nossa
maneira de ser é mal-vinda : portas fechadas à nossa entrada, seja a entrada ao
conhecimento, seja a entrada à
cidadania, seja a entrada à nossa “cidadela interior”, como dizia Marco
Aurélio, e sem a qual não há o despertar para a filosofia enquanto
autoconhecimento.
Até aqui não empregamos o termo educação. Mas esta
é nossa principal hipótese: todos esses
processos que cartografamos sucintamente
em Espinosa descrevem um processo do qual poderíamos extrair uma
concepção de educação. Afinal, um
processo educativo é um
bom encontro quando ele é prática
de cuidado/boas-vindas ao que no educando
é potência ainda. Um bom encontro é sempre um espaço de agenciamentos,
nunca um monólogo. Um espaço educativo se torna um topos de boas-vindas quando, por
intermédio dele, o educando também é introduzido ( introitus) à sociedade, ao mundo, à vida, enfim, a ele
mesmo por meio da educação que o faz
descobrir a si próprio. Também para aquele que educa o processo de ensino e
aprendizagem deve ser vivido como um
“boas-vindas”, por mais que se tenha vivido inúmeras vezes aquele
encontro na vida. Vista sob essa perspectiva, a educação deve fazer-se como um
circuito que emancipa, como uma pólis sempre renovada. Nesse sentido, a educação é mais do que transmissão de conhecimento: é construção
de um circuito gerador de um modo de
vida. Nesse circuito, não apenas as têm lugar ideias , também estão implicados
afetos.
[1] Embora não cite
Espinosa , Derrida fundamenta uma “ética da hospitalidade” na prática de
“boas-vindas” em um sentido muito próximo ao que aludimos aqui. Apoiando-se
nessa “ética da hospitalidade”, Fábio Araújo (2006) propõe uma clínica da afetividade calcada na
ideia de “acolhimento” e “amizade”. E segundo Walter Kohan e Maximiliano Durán
(2020), a hospitalidade é um dos princípios de uma “escola filosófica popular”.
Este texto é parte de uma pesquisa sobre Espinosa que desenvolvo na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO. A partir de setembro, haverá atividades abertas ao público externo. Para informações: eltonluizleitedesouza@unirio.br
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