quinta-feira, 31 de julho de 2025

Espinosa educador: Conceitos, Afetos & Práticas

 

Espinosa vem sendo estudado por pesquisadores das mais diversas áreas. Além disso, o interesse por sua obra não para de crescer, mesmo entre o público não formado em filosofia. Contudo, o contato direto com a obra de Espinosa dificulta a plena apreensão de seus conteúdos . Isso se deve à maneira geométrica mediante a qual o filósofo expõe suas ideias.

Nesse sentido, à primeira vista, parece que Espinosa não teve uma preocupação didática. Mas essa visão se desfaz quando obtemos uma compreensão mais pormenorizada da obra, tendo como pano de fundo seu pensamento  como um todo. Mesmo o uso da geometria tem razões didáticas. Embora sejam poucas, pouquíssimas, as referências de Espinosa à Educação, essas referências valem não pelo seu aspecto quantitativo, mas pela sua natureza constituinte de oferecer  um fundamento e objetivo geral à sua Ética.

É o objetivo principal desta Pesquisa mostrar que há em Espinosa, virtualmente ou em esboço,  a configuração de uma proposta de Educação que, tendo como base sua Ética,  traz elementos que , a despeito de terem sido formulados há trezentos anos, ainda trazem uma novidade que merece ser descoberta. 


Uma das contribuições mais singulares de Espinosa à filosofia , sobretudo no âmbito da Teoria do Conhecimento, é afirmar que o conhecimento não se faz apenas com ideias, o conhecimento também envolve afetos. Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou  maneiras da mente, os afetos igualmente  o são ( Ética, Parte 3, Definição geral dos afetos). Os afetos também envolvem o pensamento: eles são modos ou maneiras de pensar, um pensar que  sente , uma vez que envolve o corpo ( Ética , Parte 3 , esc. da proposição 11).

Por essa razão, há uma diferença entre as ideias e os afetos: enquanto as ideias dizem respeito à mente em seu aspecto intelectual-cognitivo, os afetos expressam a mente enquanto ânimo ( Ética, Parte 2, axioma 3). O ânimo é a mente enquanto unida indissociavelmente ao corpo, isto é, à vida. Às vezes, Espinosa se refere ao ânimo  (animus ) como o “coração”. Não no sentido romântico ou meramente subjetivo, e sim enquanto sede viva dos afetos. O coração também pensa, porém sentindo.

A coragem, segundo Espinosa, é a presença do ânimo levando-nos a agir. A covardia e o  medo ,ao contrário, são  uma forma de des-ânimo: enfraquecimento ou despotencialização do nosso ânimo, isto é, de nossa mente e de nosso corpo. A potencialização do ânimo não se faz apenas com as ideias, mas também com os afetos.  O ânimo fortalecido não teoriza apenas , ele também sente e age : dá pernas e braços às ideias . Um ânimo fortalecido é aquele que age pelo fortalecimento de outros ânimos, de outras mentes e corpos. Esse agir é o fundamento da ética de Espinosa, de tal modo que o conhecer nada é se não suscitar um agir. 

Em Espinosa, “fortaleza” ( fortitudo) não é apenas uma palavra, é uma virtude, uma das principais de sua filosofia ( Ética, Parte 3, prop. 59, escólio). A fortaleza é a expressão imediata da ação mais característica da mente que se torna ativa: a compreensão. A fortaleza é a virtude-potência da mente que compreende. Essa virtude-potência possui dois aspectos interligados: a firmeza e a generosidade. A firmeza é a fortaleza para consigo mesmo enquanto agente, ao passo que a generosidade é a fortaleza  para com o outro. Reconhece-se uma mente que compreende, uma mente que filosofa, pelo fato de que ela é fortaleza de ânimo. Na língua banto, fortitudo é “quilombo”.

O ânimo não se fortalece sozinho, não há um “cogito” que o possibilita, uma vez que o fortalecimento do ânimo  requer o que Espinosa chama de “encontros”, “bons encontros”. O termo “encontro” é a tradução da palavra latina occursus. De rica acepção, occursus também pode ser “circuito”. Esse sentido talvez explique ainda melhor o que é um encontro em Espinosa: o bom encontro cria um circuito onde energias passam, ideias fluem, afetos são partilhados, ações são construídas de forma agenciada; já o mau encontro é , literalmente, um curto-circuito que bloqueia, ameaça , violenta , despotencializa , adoece e tiraniza, corpo e mente.

Occursus também pode significar “boas-vindas”. Na Roma Antiga, occursus era um processo que preparava o introitus, a introdução à cidade, à civitas: do lado de fora das  portas abertas da cidade, o visitante recebia o occursus, o boas-vindas, para em seguida  ser introduzido no convívio da civitas. Um bom encontro constrói um circuito de boas-vindas  . Todo bom encontro  recebe quem nele entra como um espaço de boas-vindas, sobretudo daquilo que cada um tem de singular e diferente , de tal modo que um occursus é sempre um boas-vindas à autonomia[1]. O partejar socrático é um boas-vindas que o encontro filosófico possibilita àquele que , (auto)conhecendo-se, chega enfim a si mesmo como se fosse um ser novo.

O mau encontro, ao contrário, é quando a nossa maneira de ser é mal-vinda : portas fechadas à nossa entrada, seja a entrada ao conhecimento,  seja a entrada à cidadania, seja a entrada à nossa “cidadela interior”, como dizia Marco Aurélio, e sem a qual não há o despertar para a filosofia enquanto autoconhecimento.

Até aqui não empregamos o termo educação. Mas esta é nossa principal hipótese:  todos esses processos que cartografamos sucintamente  em Espinosa descrevem um processo do qual poderíamos extrair uma concepção de educação. Afinal,  um processo  educativo  é um  bom encontro  quando ele é prática de cuidado/boas-vindas ao que no educando  é potência ainda. Um bom encontro é sempre um espaço de agenciamentos, nunca um monólogo. Um espaço educativo se torna um  topos de boas-vindas quando, por intermédio dele, o educando também é introduzido ( introitus)   à sociedade, ao mundo, à vida, enfim, a ele mesmo por meio  da educação que o faz descobrir a si próprio. Também para aquele que educa o processo de ensino e aprendizagem deve ser vivido como um  “boas-vindas”, por mais que se tenha vivido inúmeras vezes aquele encontro na vida. Vista sob essa perspectiva, a educação deve fazer-se como um circuito que emancipa, como uma pólis sempre renovada.  Nesse sentido, a educação é mais do que  transmissão de conhecimento: é construção de  um circuito gerador de um modo de vida. Nesse circuito, não apenas as têm lugar ideias , também estão implicados afetos.



[1] Embora não cite Espinosa , Derrida fundamenta uma “ética da hospitalidade” na prática de “boas-vindas” em um sentido muito próximo ao que aludimos aqui. Apoiando-se nessa “ética da hospitalidade”, Fábio Araújo (2006)  propõe uma clínica da afetividade calcada na ideia de “acolhimento” e “amizade”. E segundo Walter Kohan e Maximiliano Durán (2020), a hospitalidade é um dos princípios de uma “escola filosófica popular”.


Este texto é parte de uma pesquisa sobre Espinosa que desenvolvo na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ UNIRIO. A partir de setembro, haverá atividades abertas  ao público externo. Para informações: eltonluizleitedesouza@unirio.br




quarta-feira, 30 de julho de 2025

o néscio tentando ler o poeta

Fiz esta postagem em 2019, ainda sob o “governo” do inelegível:

 

Não só o elogio que recebemos indica que estamos indo na direção certa em nosso trabalho , pois muitas vezes  a censura recebida  também deve nos encher de satisfação, quando ela vem dos tolos e néscios.

Como ensina Nietzsche, mais importante do que aquilo que  se diz é quem diz. Há certo tipos de pessoas que  a tosca crítica delas a nós deve ser recebida  como um elogio e nos dar ainda mais força para avançar .

Fiz essas considerações acima devido ao seguinte fato: soubemos agora que a poesia de Manoel de Barros foi censurada e proibida de constar no exame do Enem de 2019, já sob o  poder dos fascistas. E o mais grave: foi uma censura motivada por questões teológico-políticas.

Como todo tirano que teme a liberdade de pensamento, dizem que foi o  próprio genocida quem deu o parecer final sobre o que deve ou não constar na prova. Vocês conseguem imaginar o fascista tentando ler  Manoel de Barros!? Deve ter sido algo semelhante ao vampiro diante do alho, ou como o asqueroso ácaro sendo  fulminado pela luz do sol...

Essa censura engrandeceu ainda mais o valor pedagógico ,  político  e libertário do poeta. Sei que soa  paradoxal dizer isso, mas essa restrição dos fascistas a Manoel deve nos encher de alegria: estamos no caminho certo.

Ainda mais porque essa censura é nada frente à obra do poeta, e só revela a pequeneza,  tacanhez e estreiteza daqueles que o censuraram. Eles são como aquelas obscuras pedras citadas pelo próprio Manoel, que assim nos dá o exemplo: “Sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.”

 

Viva Manoel!!🦋📚✊


Manoel de Barros e as "iluminuras"

 

1.Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com dois pintores: Klee e Miró.

O poeta aprendeu a fazer “imagens” com os pintores : imagens construídas com palavras, cuja cores e paisagens são diretamente pintadas na tela da alma.

 Manoel chama essas imagens de “iluminuras”: um misto de luz com uma realidade ainda escura, tal como a aurora que tem atrás de si a noite ainda, a noite da qual uma nova manhã se distinguiu , brilhando.

Essa “realidade escura” que participa da criação poética não é como a treva da ignorância e do obscurantismo, ela é como  o escuro no interior do casulo ou do útero, onde cresce o embrião de uma vida nova.

Assim, as iluminuras poéticas são imagens que se lê partejando, como realidade a nascer no poema e em nós, desabrindo-nos.

2. Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ; porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda . A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.

 

                                                                   (  O jardim /  Miró) 

terça-feira, 29 de julho de 2025

conversas sobre manoel

 

Estou realizando algumas conversas com profissionais, educadores , filósofos , museólogos , literatos , poetas e artistas em geral  que se inspiram na poética de Manoel de Barros em seus trabalhos.  Essas conversas fazem parte de uma pesquisa (UNIRIO/FAPERJ) que desenvolvo. O nome da pesquisa é : "Na ponta do meu lápis há apenas nascimento : a empoética de Manoel de Barros."

"Empoética" é uma noção criada por Manoel. Da empoética manoelina nascem empoemamentos. "Empoemar" é um verbo que se conjuga em vários modos e pessoas, ensejando singulares práticas. O pintor empoema as tintas, o poeta empoema as palavras, o músico empoema o som, o revolucionário empoema a ação, o doar empoema as mãos, enfim, a palavra que educa empoema a mente.

Empoemar-se é mais do que ler ou escrever rimas e versos; empoemar-se é uma intensificação da vida, na qual o pensar, o agir e o sentir se agenciam, produzindo horizontamentos, por dentro e por fora, pessoais e sociais.

Na semana passada, conversei com o museólogo Clóvis Britto ( UNB/UFBA) , que pensa as exposições museais  a partir da poesia de Manoel. Em breve, conversarei com duas professoras que empregam Manoel para ensinar filosofia no ensino médio.

Amanhã, o papo será menos acadêmico , porém não menos interessante: será com a vencedora de um concurso de redação sobre o poeta ( o nome do concurso foi: "Um passeio com Manoel" ). O nome dela é Ennesli Granjeiro, ela atua hoje como atriz. O concurso foi organizado pela Fundação Manoel de Barros. Já tive a oportunidade de conversar com ela antes, vale a pena conhecer a história dela. Ela conta como se empoemou.

Para quem quiser/puder acompanhar e participar da conversa,  deixarei aqui o link para o meet ( será amanhã, dia 30, das 10h às 11h).

meet.google.com/whz-sykb-tbm




domingo, 27 de julho de 2025

A "sozinhez"

 

                        PARA VENCER A SOZINHEZ

 ( apresentação que escrevi para o livro “Palavra Muda”, do poeta Paulo Vasconcelos)

 

 Segundo o poeta Manoel de Barros, poesia não é apenas verso e rima no papel, poesia é  empoemamento : horizontamento da alma. Cada poeta , quando é um poeta de fato, nos empoema inventando o sentido e o ser do que seja  poesia.

“Palavra é sempre muda”, dizem, “quem fala é a boca”.  Mas Paulo nos ensina que a própria palavra pode ser muda, para assim expressar  o que não consegue dizer a mera boca  que apenas diz palavra.

Paulo inventa um devir-só repleto de esvaziamento de egos. Devir-só não é a mesma coisa que ser sozinho. Esse devir-só é o dizer de  quem expressa , das coisas mais comuns, o seu incomum único.

Paulo data alguns poemas ao modo de   acontecimentos de um diário. São poemas com registro de nascimento , dia e hora, dando a ver que poema é acontecimento unindo  o íntimo lírico ao   social e histórico.

O poeta é um “cristo pagão” que aceita sua solidão acompanhada de deuses, muitos deuses, os do dia e os da noite, sobretudo estes, e ainda mais alguns que carecem de nome, mas não de ser.

Solidão é o dão de quem se dá (“poesia é coisa de dão”, Manoel de Barros). Paulo escreve como quem se esvazia  para que nada resista à poesia que o preenche. Ele se desvencilha do gozo de uma  “sozinhez” narcísica, para assim narrar, não sem dor,  as solidões da singularidade ao mesmo tempo simples e refinada. Em seus versos há perceptos de paisagens sem homens, feitas  de mar , de peixes e desmesuras aquáticas; há montanhas e suas alturas, mas também há o tecido urbano, no qual o humano está à  procura de si mesmo.

Há um fio entre o verso e  nós. O fio não nasce de um ponto, ele nasce de um novelo que Paulo desdobra , esvaziando-se . Não é palavra o que ele nos dá, ele nos dá uma canção que espera o amor voltar para atenuar as dores dessa “difícil vida danada”,  que mesmo assim é celebrada , sem arrependimentos , sem culpa, com boa vodca.

Um “deus” com “d” minúsculo faz-se mais humano que o homem, ele aprende o desejo, a saudade, tem pai mortal e lê cordel. Assim, esse deus      não espera obediência, apenas que o vejamos    incorporando-se “natureza e tempo” , para assim também nos fazer gente, tempo, lua, saudade não nostálgica.

A palavra muda não é a que ausenta a palavra, a palavra muda é a conquista de um silêncio completo: diz tudo sem dizer nada, pois não o diz com o som, o diz apenas com o sentido artesanado.




 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Didática da invenção

 

Segundo o poeta Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar cartilhas . A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”.

Ensinar a inventar e criar para não sucumbirmos à resignação e ao medo , essa é a lição de tal didática, lição para aprendermos a nos refazermos.

Manoel diz que aprendeu essa didática não em livros ou com mestres doutores, ele a aprendeu com um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a Manoel como (re)inventar-se. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me escreve”.

Essa criança lúdico-poética não é uma idade , ela é a própria potência da vida em seu “minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos convida para os seus “exercícios de ser criança”.

“Velhez” , segundo o poeta, também não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade refém do “mesmal”. O mesmal é a vida reativa, ressentida, resignada, não importa a idade que se tenha. Às vezes, até mesmo  partes da sociedade são tomadas pela velhez, engendrando assim servidões e tir4nias. O mesmal e sua velhez são  a antipoesia - no sentido existencial, político e subversivo  que a poesia tem.

Na vida, os exercícios de ser criança consistem em soltar e dar linha na pipa , atirar com estilingue nas latas, jogar bola na rua , muitas vezes tendo que driblar a repressão dos guardas . Os exercícios são as “peraltagens” de que são capazes as crianças.

É preciso aprender a fazer essas peraltagens com as palavras, para elas serem para nossa liberdade o que a linha é para a pipa : para horizontar a mente com linhas de fuga.

Que nossas palavras também aprendam a driblar as significações dominantes e seus guardas. Enfim , inventar com as palavras uma lúdica arma, um simbólico estilingue, uma arma para fazer viver e não para matar, apontada contra a velhez dos reaças.

Como ensina também Kierkegaard: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse seu mestre”.





 




Texto publicado no facebook:

Certa vez, quando eu era aluno de filosofia, ouvi uma aula belíssima do professor Cláudio  Ulpiano dizendo que só há uma condição de resistirmos ao poder, ou não sermos seduzidos por ele, seja ele qual for  : permanecendo  marginais. Ser marginal é estar na margem: nem dentro , nem fora.

A margem é como uma membrana: um espaço de comunicação entre o dentro e o fora. O poder, por sua vez, quer sempre o centro, e é por isso que ele é centrípeto, monopolizador, e a tudo quer subordinar à sua lógica.

A lógica do  poder é a da “bolha” , do espaço fechado, e por isso  teme aberturas, horizontes.

Mas quem se coloca “fora”, num espaço de pretensa “neutralidade” , com certeza não se compromete, porém perde o poder de agir: constata, critica, reclama, mas não age.

Tudo tem uma membrana. E é nesse espaço da membrana que é preciso se colocar se quisermos  construir linhas de fuga. Como diz Manoel de Barros, é na membrana que podemos desabrir algo que está fechado.

Disse isso por conta desse espaço aqui, o facebook. De uns tempos para cá, eles adotaram a prática de diminuir o alcance das postagens de todos que não se tornam “produtor de conteúdo” para ele.

Eles fazem uma espécie de chantagem: “se você não quiser ter suas postagens invisibilizadas e sua página escondida, submeta-se ao nosso comércio”. Comércio do que exatamente? Comércio de nós mesmos, pois é disso que se trata: nós somos o produto que eles vendem, comprando-nos antes.

Inclusive, como todo Mefistófeles, eles prometem que se vendermos   nossa alma para eles teremos uma recompensa: nossas postagens serão “bombadas”, “impulsionadas” e “turbinadas” pelos robôs e algoritmos deles, não importa o conteúdo ou a qualidade da postagem.

Eu disse NÃO a essa chantagem. Não sou funcionário deles, não “sou produtor de conteúdo digital” . Os conteúdos que coloco aqui, vêm da vida real. Não sou “produtor de conteúdo digital” desse Mefistófeles digital, minha profissão é: professor.

Não tenho o menor interesse que minhas postagens sejam “turbinadas” por robôs acéfalos. Todos nós que postamos aqui  , sobretudo textos, desejamos sim ser lidos e, se merecermos, recebermos partilhas e comentários, mesmo que discordantes. Escrevemos para pessoas, são elas que nos interessam e justificam nossa presença aqui, não robôs.

Nada contra , claro, quem deseja ser “produtor de conteúdo digital”, mas o que não pode é o face chantagear todos a sê-lo.

É como professor  que me manterei aqui: na margem, na membrana, como marginal. É na margem disso aqui que podemos, mesmo estando aqui, não cedermos a isso aqui, não sermos instrumentos deles ( que são cúmplices do “MAGA”),  e empregarmos esse espaço aqui contra eles e a favor de nós, de nossas lutas sociais e políticas por emancipação e por uma vida mais digna: lá, no mundo real.


___   ___   ___


Como dizia Nietzsche, os homens do poder sempre tentam passar a ideia de que os valores e a ordem que lhes colocam no lugar onde  eles  estão, um lugar de privilégios e domínio sobre os outros seres humanos, esses valores e ordem  seriam  como o gelo das geleiras nos picos das montanhas: uma realidade irremovível, imutável, eterna.

Ante isso, ensinava Nietzsche, a filosofia somente tem serventia se for como o “vento do degelo”. 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

As formas de se adquirir conhecimento

 

                                  PROGRESSÃO , CONVERSÃO , SUBVERSÃO [1]

 

Os livros de filosofia costumam dizer  que há  duas maneiras de adquirir conhecimento: por progressão e por conversão. A imagem que melhor traduz o conhecimento por progressão é a de uma escada: aprender se torna um processo de subir degraus. Começa-se no degrau do primário, passa-se ao degrau do ensino básico, depois sobe-se ao degrau do ensino médio...até chegar ao degrau da faculdade. Aqui,  há ainda os degraus dos períodos, depois o degrau do mestrado, sendo seguido pelo do doutorado até chegar ao último degrau: o do pós-doc. Contudo, o que caracteriza o conhecimento por progressão é que ele tem um começo e um fim  (  o pós- doc) , assim afirmando   a lógica de um suposto “progresso formal-intelectual” .

O conhecimento por conversão segue outra lógica: não a da escada que sobe, mas a de uma mudança de caminho, uma guinada, uma virada. Con-versão: “voltar-se para”. Em Platão, por exemplo, a conversão implica em um voltar-se para cima: para o Céu onde moram as Ideias. Mas como chegar até lá? Para lá não há degraus ou escadas. É preciso ter asas. Para Platão, o conhecimento não é um progredir, e sim um retornar: um voltar-se para a Origem Transcendente.

Inspirando-se nos pré-socráticos, Deleuze afirma que há ainda uma terceira maneira  de adquirir conhecimento: nem por subida de degraus, nem por ascensão por asas, mas por subversão. E esse processo não é puramente acadêmico ou intelectual, mas existencial e vital.

Subverter não é subir degraus e nem alçar às alturas, mas virar de cabeça para baixo uma ordem de coisas dadas. Subverter é destruir, mas destruir para criar: “Só podemos destruir/subverter sendo criadores”, afirma Nietzsche.  O subversivo faz de suas mãos mais do que asas: pois nelas, em suas mãos, ele carrega ferramentas para forjar uma realidade nova, como Espinosa polindo lentes para subverter a visão. Assim, Espinosa subverteu a imagem do filósofo: fez-se artesão.

 Enquanto a conversão busca um Céu nas alturas, o subversivo quer a Terra, ele afirma a Terra como o verdadeiro Céu. A progressão mira o alto de um podium, a conversão almeja o Céu, porém a subversão constrói o plano horizontal das conexões que ampliam e expandem.

Heráclito, Lucrécio, Espinosa, Nietzsche, Marx, Deleuze...se inscrevem na linhagem dos subversivos, cada um à sua maneira. Para eles, não se filosofa para progredir em conhecimento hierárquico ou para fugir da terra, mas para subverter os poderes que apequenam a vida, fomentam a superstição, exploram o ser humano e ameaçam o presente e o futuro da terra.

A poeta Carolina de Jesus, por exemplo, subverteu a lógica da ignorância que jogou livros no lixo: salvando os livros do lixo, Carolina de Jesus subversivamente produziu riquezas de ideias e afetos que não se compram ou vendem no “mercado”. No filme Meu amigo Nietzsche, o menino também salvou a filosofia do lixo, subvertendo assim a pobreza e a exclusão. Arthur Bispo do Rosário subverteu o lugar de louco no qual o confinaram, e com a arte subverteu nossa compreensão do que é a lucidez.  

Sem dúvida, é fundamental subverter a visão eurocentrada da filosofia, para assim afirmamos o pensar original que brota das nossas periferias e lugares de exclusão. Às vezes, para despertamos o filosofar é preciso subverter a lógica acadêmica da filosofia , e assim unir o pensamento à vida.

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.









sexta-feira, 18 de julho de 2025

O poder teológico-político

 

O  excelente e imperdível novo documentário de Petra Costa me fez lembrar   o livro “Tratado teológico-político”  , de Espinosa.

No livro, o filósofo  descreve o fenômeno da “credulidade”. No fundo de toda credulidade  vigora o medo. Não o medo que pode nascer em quem enfrenta reais perigos, mas o medo ressentido que prostra e cega. O que Espinosa descreveu em palavras, Petra mostrou em som e imagens.

Segundo Espinosa, é o medo  o sentimento que melhor define a condição de servo voluntário.

“Credulidade” não é a mesma coisa que  “fé”. A autêntica fé não nega  a ciência, já a credulidade é neg4cionista do conhecimento.

 A fé é movida  pelo amor, mas é o ódi0 o combustível da credulidade. A fé busca a justiça e age em favor dos pobres , a credulidade troca a cruz por arm4s e faz da religião um vil negócio. A fé almeja alcançar Deus, a credulidade em tudo vê o “Diabo”.

A credulidade se traveste de religião, mas é na verdade  projeto de poder obscur4ntista  :  poder teológico-político.

 A credulidade é rasa, rasteira: por não conseguir alcançar a profundidade do sentido que há nos textos sagrados, ela imagina  que berrando e gritando se fará ouvir  pelo  Espírito Santo.

A credulidade é produtora de fantasia. Essa  fantasia  retroalimenta a credulidade, criando assim um mundo paralelo à parte, mas que é visto pela credulidade como  “Mundo Verdadeiro”. Não por acaso, a palavra “Verdade”  está sempre na boca delirante da credulidade.

Fantasia não é a mesma coisa que criatividade. As crianças nascem fantasiosas, porém nem todas conseguem desenvolver a criatividade.

Quando a criança, movida pelo medo, imagina haver um monstro debaixo da cama, o monstro  é produto de sua fantasia, embora a criança ignore isso.

Mas se a criança ,  ludicamente, cria uma história onde há um monstro, ou simplesmente desenha um monstro e fabula uma narrativa , a criança aprende que o monstro é criação de sua mente, de tal modo que, se ela o criou, também o pode derrotar, criando igualmente o personagem corajoso  que enfrentará e  vencerá o monstro. Criança que assim  brinca aprende a esconjurar o medo. O medo apequena a mente, já a criatividade  faz a mente  crescer e se horizontar.

Toda criança nasce fantasiosa, porém para haver o despertar da criatividade é preciso criar meios socioeducacionais que potencializem o imaginar pensante nas crianças.

Os tir4nos estão sempre perseguindo os criativos  e colocando “monstros” debaixo da cama dos ignorantes, assim infantilizando, pelo medo,  os homens.

Homens infantilizados são incapazes de se autogovernarem, terminando  por se submeterem ,  pela credulidade,    ao poder teológico-político acumpliciado com tir4nos.

“Comunista”, “vermelho”... são os “monstros” que o poder   teológico-político  colocou    debaixo da cama dos acorrentados à credulidade ,   para assim ludibriá-los e levá-los a crer delirantemente que  um mero ladrão de joias traidor da pátria é um “Messias” que irá salvá-los.

Esse poder teológico-político vem perdendo força, seu “Messias” só engana hoje incautos incuráveis da credulidade. Mas é preciso continuarmos atentos .

 



Esta música de Nelson Cavaquinho é parte da trilha sonora do filme de Petra:








 





"Pessoas que se enquadram cegamente no coletivo fazem de si mesmas meros objetos materiais, anulando-se como sujeitos dotados de motivação própria. Inclui-se ai a postura de tratar os outros como massa amorfa. Uma democracia não deve apenas funcionar, mas sobretudo trabalhar o seu conceito, e para isso exige pessoas emancipadas.

Só é possível imaginar a verdadeira democracia como uma sociedade de emancipados. A única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contestação e para a resistência". ( Trecho do livro Educação e Emancipação, de Theodor Adorno)


sexta-feira, 11 de julho de 2025

Fortaleza-Quilombo

 

Em sua Ética, Espinosa dá especial importância a uma virtude: a fortaleza. Em latim, “fortitudo”. Alguns traduzem “fortitudo” como “força do ânimo”.  A palavra “ânimo” expressa a unidade da mente e do corpo quando agem. O “des-ânimo” é a despotencialização do nosso ânimo, do nosso poder de agir.

“Virtude” significa “força”. Não a mera força física ou bruta, mas a força potencial . Originalmente, “virtu” designava a força que nasce de uma fibra , fio ou corda, quando são tensionados e “vibram”.

 Por exemplo, o violão somente produz música se suas cordas forem vibradas; o arco só pode lançar suas flechas longe se sua corda  for tensionada ; o próprio coração , ao pulsar, faz suas fibras vibrarem para impulsionarem o sangue por todo o corpo.

Da mesma maneira, ideias que fazem pensar levam a mente a vibrar, abrindo-se para o mundo.  Coragem, indignação, generosidade, solidariedade, empatia, senso de justiça...são virtudes que , para virarem ação sobre o mundo, requerem  fibra naqueles que as sentem, para que neles elas vibrem.

Segundo Espinosa, a fortaleza é o ninho que dá guarida a todas as virtudes e as protege, como um escudo. Sem fortaleza, não há filosofia, ética, conhecimento, vida digna. A fortaleza-virtude é  força, mas não é violenta; ela tem potência, porém não é soberba; ela é firme, sem ser rígida.

 Uma fortaleza não precisa de muros ou cercas, e disso   a flor de lótus  dá o testemunho: ela desabrocha e persevera sendo ela mesma a despeito de  ao redor dela  predominar a lama. A fortaleza da flor de lótus  é a força que lhe é imanente, e que a lama não turva ou toca. Na sabedoria oriental, a flor de lótus é considerada  o símbolo da sabedoria prática.

Epicteto foi feito escravo em Roma , como aqui Dandara e Zumbi . A filosofia foi, para Epicteto, a sua Palmares: quando o poder quer nos  agrilhoar ( simbólica ou fisicamente ),   são Quilombos que precisamos edificar, dentro e fora da gente. Não por acaso,  na língua banto “fortaleza”  é  “quilombo”.

A fortaleza que protege uma sociedade livre e independente não é feita de muros ou arame farpado, a fortaleza de uma sociedade soberana é a democracia direta e participativa.






E anteontem foi o dia de nascimento de Mercedes Sosa ( ela faria 90 anos). Letra-poema de Violeta Parra:




 

sábado, 5 de julho de 2025

Eles contra nós

 

Os jornais surgiram na Europa como espaços críticos e simbólicos da então emergente burguesi4  . Os jornais nasceram como voz de uma classe contra outra classe: como voz da burguesi4 contra a m0narquia.

Depois, com os movimentos operários, surgiram jornais de esquerda como voz dessa nova classe nascente. Até hoje na Europa, há jornais de esquerda que fazem contraponto aos jornais (neo)liberais hegemônicos que, tal como no passado, ainda defendem o interesse de uma determinada classe, ainda que tentem dissimular isso.

No Brasil nunca houve algo semelhante: aqui, a imprensa foi criação da monarquia, quase como uma porta-voz dela. Os primeiros jornalistas eram filhos de senhores de engenho. Nunca tivemos, a não ser isoladamente, uma imprensa que veiculasse  outra voz sem ser a voz da classe dominante. Hoje, os senhores de engenho são outros...

 Um empresário estadunidense ultrdireitist4 , ferrenho apoiador e financiador de Trump, recentemente disse com cinismo: “Marx estava certo, o motor da história é a luta de classes.  Só que agora somos nós, os ricos, que fomentamos a luta e avançamos contra nossos inimigos:  os pobres.”

Conforme alguns colegas já disseram, a imprensa corporativa distorce os fatos ao afirmar que o governo assumiu o lema “Nós contra eles”, quando na verdade é o inverso que acontece: “São eles contra nós”. Ao distorcer a realidade, a imprensa corporativa revela que ela sempre foi   a voz desse “eles”, e não do nós.

Quem são “eles”? “Eles” chagaram aqui nas caravelas; “eles” depois foram os donos dos navios negreiros; “eles” moravam nas casas-grandes; hoje, a caravela colonialista, o navio negreiro escravagista e a casa-grande excludente são o “eles” do mercado financeiro que fazem dos juros aviltantes a nova forma de açoite ( como na imagem pintada por Banksy que acompanha esta postagem).

“Nós” somos os trabalhadores, os estudantes, os professores, as mulheres, os indígenas, os artistas, as minorias, as crianças... E também  as florestas, os seres vivos,  os rios, o planeta, enfim.

Como ensinava Espinosa, o “eles” é um pequeno grupo que usa o poder (“potestas”)  para   se colocar à parte, como um “todo à parte”, porém sugando a vida de todos para assim manterem seus privilégios usurpad0res ; o “nós” é a multitudo e sua potência ( “potentia”) no exercício de uma democracia que não é representativa, mas direta.

Nem sempre a multitudo dá sinais de vida, às vezes parece que ela está desesperançada, cansada, quase morta... É a indignação que desperta a multitudo e agencia , como partes singulares dela, aqueles e aquelas que se unem e  agem ante as injustiças.