terça-feira, 29 de julho de 2014

o que é o afeto?

O QUE É O AFETO?
(Espinosa, Ética, Segunda Parte, Definição 5)
Segundo Espinosa, o homem possui um corpo e uma mente.Nisso não há nenhuma novidade, muitos também afirmaram isso antes dele.Espinosa inova verdadeiramente, e muito, quando afirma que a mente e o corpo do homem não são realidades que existem em si, de forma independente de todo o universo.A mente e o corpo do homem são partes do universo, partes singulares.O corpo é parte do mundo material, a mente é parte do mundo espiritual.A mente é parte de uma realidade que vai muito além dela, assim como o corpo é parte de uma realidade também muito maior.
A nossa mente e o nosso corpo se distinguem de todo o resto porque eles existem de forma determinada. “De-terminar” significa: dar fim, delimitar.Sabemos que uma onda é parte do oceano, mas de certo modo a onda é o oceano mesmo, mas modificado, determinado a existir como onda. Mas essa determinação não cria um outro ser diferente do oceano, cria apenas o oceano existindo de certa forma determinada, como onda. A onda é um modo ou uma modificação do oceano, uma maneira singular de ele ser.
Assim, a nossa  mente e o nosso corpo são determinados a existir como onda não pelo próprio oceano, mas por outras coisas determinadas .Devido à nossa maneira muito limitada de apreender a realidade, vamos de coisa determinada a coisa determinada, de onda a onda, umas pequenas e outras grandes, e assim ignoramos o oceano que produziu todas as coisas determinadas. De maneira determinada, fui gerado por uma coisa determinada que me pôs no mundo, e esta coisa determinada que me gerou também foi gerada por outra coisa determinada que a gerou, e assim até o infinito. Todavia, o infinito não é feito de coisas determinadas, assim como o oceano não é feito de ondas, como se estas fossem a causa e ele o efeito. Ao contrário, é o oceano que é causa da existência das ondas, mas o oceano não é causa da mesma maneira como pode ser causa uma coisa determinada de outra coisa determinada. As coisas determinadas podem ser causas parciais da existência de outra coisa determinada. Ela é dita causa parcial porque ela não pode ser causa total. Ou seja, uma coisa determinada que produziu uma outra coisa determinada explica apenas em parte a existência dessa coisa determinada. Somente o que é causa total pode explicar a existência de algo. Mas explica não apenas por sua existência, explica antes pela sua essência. Assim, uma causa parcial pode produzir parte da existência de algo determinado, mas não pode produzir sua essência.Um pai, por exemplo, é causa parcial da existência de seu filho, mas ele não é causa de sua essência.Um pai é causa parcial apenas de seu filho, e até mesmo de seu neto. Porém ele não o é do filho de um outro pai.A causa que produziu uma essência produziu também a essência de todas as coisas, inclusive a do filho e a do pai, e o fez  de forma  diferente daquela como age um pai.Uma causa assim total cria não apenas uma essência, ou uma a uma, ela cria todas as essências, e as faz eternas, assim como ela. Uma causa total cria todas as essências, ao passo que uma causa parcial cria uma determina existência ou parte dela.Uma existência determinada , a do pai, pode desaparecer sem que desapareça a existência determinada do filho , que ele no entanto pôs no mundo. Contudo, a causa total que produziu uma essência nunca desparece: ela está viva em todas as essências, de tal modo que destruir uma essência, por mais simples que seja, seria também destruir a causa infinita de todas as coisas. Por essa razão, uma essência não pode ser destruída por outra essência, e nenhuma essência determinada pode criar outra essência.  A causa infinita que produziu cada essência é a Vida, e esta  nunca destrói ou mata. O pai põe no mundo, Deus põe na eternidade, isto é, põe nele mesmo, como modificação dele mesmo.
Portanto, a essência de tudo que existe é uma modificação de Deus e, assim como ele, é eterna. Somente o que é gerado por uma causa parcial, uma causa determinada, existe em um tempo determinado e, assim, morre. Morrerá por outras causas determinadas. A causa total não age de fora, assim como o fazem as causas determinadas. A causa total ou infinita age de dentro, na  imanência de cada coisa que ela produz. Por isso, a causa infinita é dita causa imanente.
 Se olharmos para a mente do homem apenas do ponto de vista da sua existência determinada, a veremos como o efeito de coisas determinadas que a produziram : a língua, os costumes, os valores ( da família e da sociedade). Enfim, veremos a mente apenas em seu aspecto psicológico, que uma ciência, a psicologia, pode fazer de objeto de estudo, pois a ciência somente consegue lidar com coisas determinadas. Todavia, as coisas determinadas não subsistem por si mesmas, a não ser por uma abstração, assim como a onda não pode subsistir sem o oceano. Além disso, o oceano somente é indeterminado visto sob os olhos da onda individual. Quando adquirimos olhos para ver o próprio oceano da vida, compreendemos que ele é potência que é mais real do que tudo que existe de forma determinada, e  que o determinado nada é sem essa potência que age na imanência dele.O indeterminado só tem sentido em razão das coisas determinadas.   Assim, a mente existe psicologicamente como coisa determinada, e é dita ser a mente de João ou Pedro. Mas a mente também é o produto da natureza, e sob esse aspecto ela não é apenas psicológica, ela é ontológica, ela existe como parte da natureza espiritual infinita.Vista sob essa perspectiva, a mente é uma abertura a um pensamento infinito do qual ela é uma parte.
Do que é composta a mente? Ela é composta de duas coisas, e nada mais.A mente é composta por ideias e por  afetos. Ideias e afetos têm algo em comum: eles são pensamentos, eles são formas de pensar.Eles são maneiras de a mente se expressar.Mas eles têm algo diferente: toda ideia o é de algo que existe no mundo dos corpos.Toda ideia possui uma realidade objetiva: ela representa algo que existe no mundo material . Por exemplo, uma coisa é Pedro enquanto ideia que minha mente forma, outra coisa é Pedro tal como ele existe no mundo material. Uma coisa é a ideia de cadeira que formo em minha mente, outra coisa é o objeto dessa ideia, já que o objeto também existe no mundo material.Posso sentar-me na cadeira que existe como objeto da ideia, e não na própria ideia da cadeira.Coisa diferente acontece com o afeto.Este existe apenas na mente, no pensamento.Isto não significa que o afeto não existe ou seja apenas imaginação. O afeto existe, tanto quanto as ideias.Por exemplo, o afeto amor.Segundo Espinosa, quando vivemos esse afeto, não podemos vivê-lo sem um objeto que exista no mundo material, seja este objeto uma pessoa ou coisa, pois o amor é aquilo que nos faz desejar nos unir a algo ou alguém. Quando amo ,por exemplo, uma roupa, desejo me unir a ela, vestindo-a o máximo de vezes que puder;quando não gosto dela a mantenho no armário, esforço-me para não me unir a ela.  Para vivermos o amor é preciso existir uma coisa amada, é necessário uma ideia da coisa amada. Para vivermos um afeto, necessitamos de uma ideia que nos remeta ao mundo dos corpos. Exemplo bem simples: Maria ama Pedro porque ela, além de viver o afeto, tem também a ideia de Pedro dentro dela.  Ninguém ama sem amar alguma coisa. Assim , quando amamos algo, unem-se em nossa mente o afeto e a ideia desse algo, ao mesmo tempo que se une nosso ser e o da coisa amada que existe fora de nós.É por isso que amar intensifica  a mente, a torna mais viva, pois une afeto e ideia. O afeto depende da ideia para ser vivido de forma objetiva. Mas a ideia não depende do afeto para exercer sua atividade essencial: o conhecer.Para amar algo necessito da ideia desse  algo.  Para conhecer uma coisa, porém, não preciso exatamente amá-la, e muito menos odiá-la. Necessito apenas formar uma ideia adequada dela. Contudo, quando amamos algo nem sempre fazemos uma ideia adequada primeiro da coisa para depois amá-la. Se assim fosse, viveríamos apenas uma vez o amor na vida, e seríamos felizes para sempre, certos do amor assim como estamos certos de que dois e dois é igual a quatro. Todavia,não raro amamos algo sem formar desse algo uma ideia adequada, verdadeira. Não raro, amamos nos fiando apenas em ideias aparentes de um ser , ideias estas que depois se mostram inadequadas, confusas, e isto muitas vezes ao preço de grande sofrimento.Mas talvez a razão de formarmos ideias confusas das coisas reside no fato de termos antes  ideias confusas, não verdadeiras, de nós mesmos. Por que isso acontece?
Uma coisa não possui apenas uma ideia, ela possui também um corpo.  A primeira coisa que vemos de algo que existe é seu corpo, sua existência material. E um corpo que existe age sobre o nosso . Não vemos ideias, vemos corpos.Os corpos são objeto da percepção, já as ideias somente passam a existir se nós as formamos: elas exigem uma atividade da alma.Uma ideia não é uma imagem. Vejo um celular de última geração: vejo seu corpo. E seu corpo age sobre o meu. Nasce um amor irrefreável por ele, desejo me unir ao objeto como algo que me fará feliz:o compro antes de formar uma ideia adequada do que aquela coisa é.Quanto menos conseguimos formar uma ideia adequada de algo, mais imaginamos coisas que nada têm a ver com a ideia verdadeira desse algo, e passamos a atribuir-lhe propriedades quase que mágicas, como se a coisa não fosse exatamente um corpo feito por outros corpos: imaginamos realidades  que não tem, a vemos como causa , quando na verdade ela é efeito, efeito de uma causa que ignoramos. Esse agir apenas em função de uma imagem, imagem esta nascida da ação de um corpo sobre o meu, esse “agir” na verdade não é um agir, mas um reagir. Este reagir recebe um nome:paixão. Paixão se origina de passio, que significa “sofrer a ação de algo” .Como a nossa vida é mais governada pelos corpos do que pelas ideias, vivemos a vida mais ao sabor das coisas que agem sobre nós do que pela capacidade que temos de formar ideias adequadas das coisas. Quando um corpo age sobre  outro nasce o que Espinosa chama de afecção. A afecção não é o afeto. A afeção é uma modificação que nosso corpo sofre pela ação de outro corpo. Por exemplo, quando vemos um corpo que age sobre o nosso , nossos hormônios se alteram , assim como a respiração e mesmo a circulação do sangue.Todas essas modificações que ocorrem no nosso corpo são afecções.
Tudo o que ocorre no nosso corpo terá um correspondente em nossa mente.Quando formamos uma ideia adequada de uma coisa, formamos uma ideia adequada também do seu corpo, de sua realidade material .Mas se um corpo age sobre o meu e o torna apaixonado, perco a capacidade de formar uma ideia adequada dele, pois as afecções que ele produzirá em mim me deixarão passivo. E a mente somente consegue formar uma ideia adequada quando ela não está passiva.Dessa forma, o correspondente na mente das afecções não serão os afetos, já que estes não têm objeto. O correspondente na mente das afecções corpóreas serão as ideias inadequadas, ideias confusas. Assim, quando algo nos deixa passivos porque seu corpo age sobre o nosso, nossa alma também fica passiva , e dentro dela nascem as ideias confusas . A mente se torna ativa, livre, apenas quando ela é capaz de formar ideias adequadas.A ideia adequada torna a mente capaz de compreender e fazer nosso ser inteiro, inclusive o corpo, a agir adequadamente, de acordo com essa compreensão. A ideia inadequada e confusa não tem por causa a própria mente, mas algo que ocorre no corpo ao qual ela está ligada.É por isso que a mente não compreende a ideia confusa, e esta a faz de refém em sua própia casa.A ideia confusa não é bem uma ideia, ela é uma imaginação. Assim, quando amamos apenas de forma passional, sobretudo nas paixões tristes, amamos mais a imaginação que temos de uma coisa do que a ideia adequada dela.Para vencermos tais paixões tristes, é necessário desfazermos os laços nascidos entre o afeto e a mera imaginação passiva.Mas isso não é tão simples, pois não é a coisa externa a responsável exclusiva pela subordinação do afeto à imaginação, fazendo nascer assim a paixão. Nós mesmos somos responsáveis por isso acontecer.Mas a isto muitas vezes ignoramos, por não conseguirmos formar uma ideia adequada de nós mesmos.Uma ideia adequada de nós mesmos não significa uma ideia rígida, imutável.Uma ideia adequada da onda também inclui nela o oceano, isto é, uma potência que sempre se renova.

Para Espinosa, não há como vivermos um afeto sem reportá-lo a  um objeto do qual tenhamos uma ideia .Esta pode ser adequada ou inadequada, verdadeira ou confusa.Mas mesmo que seja confusa a ideia, isto não impedirá que o afeto se ligue a ela, e passemos a viver o afeto como se tratasse de uma ideia adequada, verdadeira.  A mente somente consegue formar ideias adequadas quando ela não se torna refém do que acontece ao seu corpo, sobretudo quando este vive subordinado à ação dos outros corpos, tornando-o dependente das coisas efêmeras.É preciso compreender que é na mente que está o afeto, não no corpo.Além disso, a imaginação passional nasce não tanto da ideia adequada do corpo que age sobre o nosso, mas das afecções que este produz sobre nosso corpo. Então, imaginamos que as afecções que sofremos são o corpo mesmo que as produziu. Todavia, as afecções que sofremos se explicam mais pela natureza do nosso corpo do que pelo corpo que agiu sobre nós.Por exemplo, quando desenhamos com o dedo figuras na areia, os desenhos assim nascidos se explicam mais pela natureza do corpo da areia do que pela natureza dos nossos dedos. Se fizermos os mesmos movimentos dos nossos dedos sobre o corpo do rígido cimento, nenhum desenho ficará em seu corpo.De maneira semelhante, as afecções que sofremos, e que modificam nosso corpo, se explicam mais pela natureza do nosso corpo do que pela natureza do corpo que agiu sobre o nosso. Imagine se a areia da beira de uma praia pudesse ter consciência e falar, não a acharíamos totalmente equivocada se ela nos dissesse que , apenas pelo desenho que nossos dedos fizeram nela, ela seria capaz de conhecer a ideia adequada do que são  nossos dedos? Para saber adequadamente o que são os dedos é preciso saber o que são as mãos, o que é o braço, o que são os nervos. Mas essas coisas são realidades que a areia não tem como saber apenas pelo desenho, que é um efeito de uma ação sofrida e, enquanto tal, não pode ser causa de um conhecimento adequado. Então, ela de fato não sabe, apenas imagina que sabe, e toma esta imaginação como se fosse conhecimento. Na verdade, ela se apaixonou mais pela imagem que os dedos desenharam nela do que pelos próprios dedos. Somente se ela conseguisse formar uma ideia adequada dos dedos e, antes desta, uma ideia adequada de si mesma, somente assim ela poderia amar de uma forma adequada e alegre, e não apenas volúvel,o que os dedos e o desenho são. Do contrário, amará apenas um efeito que logo o mar virá apagar , e mais a areia sofrerá quanto mais ela imaginar que o desenho era eterno.

"Por alegria compreendo uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca, compreendo uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor." ( Ética, Terceira Parte, proposição 11, escólio)."Quando a mente [deixando-se dominar pela imaginação] pensa em coisas que a entristecem e  enfraquecem, essa simples imaginação já a entristece e enfraquece".(Ética, Terceira Parte, proposição 13)


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