quinta-feira, 31 de julho de 2014

o ouro de espinosa

( Espinosa, Ética, Parte Cinco, proposição 42, escólio)

O ouro é precioso porque ele é raro. Por isso ele vale tanto e é tão desejado.O que é raro desperta o desejo .O ouro é um corpo, ele é um corpo raro.E a este corpo muitos depositam promessas de felicidade pela qual desejam suas almas. Por esse corpo ser raro, precioso, todos o querem ter, e alguns o buscam à força, trapaceando, roubando. Outros o põem adornando tronos.Se a cerâmica fosse tão rara quanto é o ouro, e o ouro fosse tão fácil de obter quanto a cerâmica, seria a cerâmica que adornaria os tronos, e o ouro seria usado como piso em todas as casas. Assim, o que faz o ouro ser ouro, não é tanto o que ele é enquanto corpo, mas a sua raridade, é a sua comparação com outros corpos que existem em maior quantidade.O que faz o ouro material valer tanto, é também porque a ele deseja a imaterial alma.É isto o que o faz precioso. Não é sua dureza, pois há pedras mais duras que o ouro; não é sua cor, dado que existem minerais mais belos nesse aspecto. O que o faz tão desejado é a sua raridade, assim como é rara, imaginam os homens, a felicidade.Além disso, se sumirem do mundo a pedra, o cisco, o cascalho, as migalhas de coisas inúteis e tudo aquilo que não damos valor, e se tudo no mundo fosse apenas feito de ouro, talvez ansiássemos por encontrar um cisco ou cascalho como o garimpeiro que anseia achar um  diamante.Ter  uma casa inteira de ouro,e mais ainda todos os móveis e alimentos que estão na casa, e mais  todos os utensílios e roupas, tudo de ouro,talvez  quem por isso passasse aprendesse a valorizar, quem sabe, a raridade que está no simples  pão feito de trigo, na modesta roupa feita de algodão, na comum cadeira feita de madeira. É a isto que ensina o mito de Midas, o rei que a tudo transformava em ouro pelo simples toque, e que quanto mais de ouro ele se cercava, mais de pedra se tornava seu próprio coração.
Ora, o que vale para o mundo material vale ainda mais para o mundo espiritual. O mundo espiritual também tem seu ouro. Todavia, ele também tem coisas não muito valiosas. O mundo espiritual , mundo do pensamento e da alma, é feito de ideias. Contudo, ocorre com o mundo espiritual o inverso do que acontece com o mundo material, onde o ouro impera. Não são as ideias raras as mais valorizadas e desejadas por aqueles que querem exercer poder sobre os homens, para assim mantê-los na servidão e na ignorância, na pobreza espiritual. Ao contrário, são as ideias que valem pouco, são as ideias medíocres, medianas, as que mais se prestam para tal fim.E muitos as ensinam e oferecem, e também as vendem, como se fossem ouro, como se fossem o ouro do mundo espiritual.  Estes que  procedem assim, no entanto,são os que mais se enriquecem com o ouro do  mundo material, pois parece que eles usam o mundo espiritual apenas como meio para obterem o ouro do mundo material, e assim falam do espírito apenas como meio para obterem templos suntuosos e tronos de ouro, além de cátedras e títulos. Mas o ouro do mundo espiritual é mais raro ainda que o ouro que vive debaixo do chão. Obtê-lo é mais árduo ainda que garimpar rios ou abrir minas na pedra.O ouro que verdadeiramente nos enriquece não  é visível, não está à vista fácil, tampouco serve apenas para adornar as palavras ou ser acumulado em cofres eruditos. Por isso, dele não há posse exclusiva, nem ostentação.Buscar esse ouro, esforçar-se por ele, já é a própria felicidade, já é a própria riqueza, diz Espinosa. A coisa mais preciosa que existe é aquela da qual só existe um exemplar. Cada coisa singular é preciosa, rara, exatamente por ser única.

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(Ética, Parte Três, proposição 44,  escólio)
Na vida dos homens em geral, mesmo naqueles que se dizem “práticos” ou “pragmáticos” ( e que não apreciam teorias ou reflexões),a imaginação é muito mais presente em suas condutas  do que eles  suspeitam ou sabem. A imaginação se caracteriza por imaginar como presente uma coisa ausente.A imaginação imagina como presente as coisas ausentes.Não uma coisa que esteve presente e por alguma razão  se ausentou, mas uma coisa que jamais foi ou é presente.  Por exemplo, o avarento imagina que todos querem suas moedas. Ou seja, sua imaginação torna presente na mente do avarento um sentimento que está ausente nos outros:o avarento imagina estar presente nos outros um sentimento que apenas está nele.O ciumento imagina e torna presente na mente dele a imaginação de que os outros desejam o que ele tem. Ele torna presente dentro dele essa ideia confusa, essa imaginação, e imagina que está presente nos outros esse desejo: isto na verdade mostra o quanto é fraco o desejo do ciumento em relação às coisas que ele imagina ser dele ou ele merecer ter.O homem da imaginação, da imaginação passional, não apenas torna presente o que está ausente, como também age como se fosse verdade o que é apenas fruto de sua imaginação.Um ciumento, por exemplo, pode ferir ou matar.O vaidoso imagina e torna presente em sua mente que os outros são vaidosos e o invejam, ele imagina como presente algo que está ausente nos outros, porque ele ignora como ele de fato é, e assim ignora também o que são de fato os outros.Imaginando essas coisas, ele pode agir de fato para prejudicar os outros, embora a imaginação prejudique, em primeiro lugar, a ele mesmo: prejudica a sua capacidade de compreender.
A imaginação não é como a memória. Esta faz viver, com a força da própria alma que se recorda, o que aconteceu.A memória recorda o que aconteceu.Ao contrário,a imaginação pode imaginar como presente o que nunca aconteceu, ou então imaginar que está presente nela , como adivinhação, o que acontecerá. Assim , a imaginação imagina que o futuro é uma coisa presente, tal como ela imagina que é uma coisa presente a inveja ou o ciúme que ela imagina estar na mente dos outros.Mas quando a imaginação assim procede, imaginando como presente o que está ausente, ela o faz ignorando sua própria presença, ignorando que é ela que inventa. Outro exemplo dado por Espinosa: quando olhamos para o sol, o vemos do tamanho de uma bola.Na verdade, o que vemos não é o sol, mas o resultado da ação do corpo do sol sobre o nosso.O que vemos é uma imaginação. Assim, por mais estranho que possa aparecer, não há diferença, do ponto de vista sensível, entre percepção e imaginação.O sol do tamanho de uma bola só está presente na nossa mente, na medida em que esta padece uma afecção do corpo ao qual ela está ligada. Para a mente formar uma ideia adequada do sol, é necessário que ela se autonomize em relação a este padecer, e aja. Ela age formando ideias adequada. A ideia adequada do sol nos ensina que ele não é do tamanho de uma bola.Mas jamais veremos, com nossos olhos do corpo, o tamanho exato do sol, mesmo porque com os olhos do nosso corpo somente vemos corpos, e não ideias.Por outro lado, ter a ideia adequada do tamanho do sol não fará com que desapareça o fato de o vermos do tamanho de uma bola.Assim, percebemos que ver o sol do tamanho de uma bola somente é um erro quando estamos privados da ideia adequada dele.Ver o sol do tamanho de uma bola é algo necessário, é uma verdade também, mas que se explica pelo mundo dos corpos e pela maneira como uns agem sobre os outros.A imaginação não é uma ilusão ou aparência, ela somente se torna isto quando a alma fica impotente para agir/conhecer de forma adequada as coisas.E a razão disso acontecer não é o corpo ou a imaginação, mas a própria mente, quando esta não consegue desenvolver sua potência, que é o conhecimento.
Se nós tivéssemos consciência dessa força que a imaginação possui, a veríamos como arte, e não como algo que fala sobre a realidade dos fatos .A imaginação somente se torna ruim quando ela ignora a ideia que torna clara o que são as coisas que de fato existem, e que ela, a imaginação, não pode substituir com uma mera imagem ou fabricação sua.Somente na arte esta força da imaginação de tornar presente o que não existe, somente na arte essa força se torna virtude, e com ela podemos aprender sobre nós mesmos.
Por isso, a dimensão estética, que envolve a imaginação, tem um caráter ético também, no que concerne a nos tornarmos ativos, e não apenas reativos. Há também nisso um caráter clínico, além de político,na medida que se trata de nos curarmos da ignorância de uma força produtiva e inventiva  que está em nós, mas que ignoramos tudo o que ela pode em termos afirmativos, já que a "psicopatologia da vida cotidiana" nos mostra apenas o seu lado negativo, de destruição, seja a destruição/negação do outro , seja a negação/destruição de nós mesmos.
Assim, entre a ideia que conhece as coisas e a imaginação que inventa coisas não há contradição ou luta. A imaginação artística pode nos ensinar, por imagens, a melhor compreender uma ideia, assim como uma ideia nada é se também não puder ser imaginada, se não favorecer em nós o aumento das nossas capacidades, inclusive a capacidade de imaginar.Não imaginar como presente o que está ausente,como na imaginação passional, mas criar imagens que traduzam, no campo sensível, do sentir, toda a potência que há no campo das ideias, no pensar.Quando a imaginação assim procede, ela também se torna uma potente ferramenta didática   da educação.

"Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois,proposição 49, escólio)













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