(
Espinosa, Ética, Parte Cinco,
proposição 42, escólio)
O
ouro é precioso porque ele é raro. Por isso ele vale tanto e é tão desejado.O
que é raro desperta o desejo .O ouro é um corpo, ele é um corpo raro.E a este
corpo muitos depositam promessas de felicidade pela qual desejam suas almas.
Por esse corpo ser raro, precioso, todos o querem ter, e alguns o buscam à
força, trapaceando, roubando. Outros o põem adornando tronos.Se a cerâmica
fosse tão rara quanto é o ouro, e o ouro fosse tão fácil de obter quanto a
cerâmica, seria a cerâmica que adornaria os tronos, e o ouro seria usado como
piso em todas as casas. Assim, o que faz o ouro ser ouro, não é tanto o que ele
é enquanto corpo, mas a sua raridade, é a sua comparação com outros corpos que
existem em maior quantidade.O que faz o ouro material valer tanto, é também
porque a ele deseja a imaterial alma.É isto o que o faz precioso. Não é sua
dureza, pois há pedras mais duras que o ouro; não é sua cor, dado que existem
minerais mais belos nesse aspecto. O que o faz tão desejado é a sua raridade,
assim como é rara, imaginam os homens, a felicidade.Além disso, se sumirem do
mundo a pedra, o cisco, o cascalho, as migalhas de coisas inúteis e tudo aquilo
que não damos valor, e se tudo no mundo fosse apenas feito de ouro, talvez ansiássemos
por encontrar um cisco ou cascalho como o garimpeiro que anseia achar um diamante.Ter uma casa inteira de ouro,e mais ainda todos os
móveis e alimentos que estão na casa, e mais todos os utensílios e roupas, tudo de ouro,talvez quem por isso passasse aprendesse a valorizar,
quem sabe, a raridade que está no simples pão feito de trigo, na modesta roupa feita de algodão,
na comum cadeira feita de madeira. É a isto que ensina o mito de Midas, o rei que a
tudo transformava em ouro pelo simples toque, e que quanto mais de ouro ele se
cercava, mais de pedra se tornava seu próprio coração.
Ora,
o que vale para o mundo material vale ainda mais para o mundo espiritual. O
mundo espiritual também tem seu ouro. Todavia, ele também tem coisas não muito
valiosas. O mundo espiritual , mundo do pensamento e da alma, é feito de
ideias. Contudo, ocorre com o mundo espiritual o inverso do que acontece com o
mundo material, onde o ouro impera. Não são as ideias raras as mais valorizadas
e desejadas por aqueles que querem exercer poder sobre os homens, para assim
mantê-los na servidão e na ignorância, na pobreza espiritual. Ao contrário, são
as ideias que valem pouco, são as ideias medíocres, medianas, as que mais se
prestam para tal fim.E muitos as ensinam e oferecem, e também as vendem, como
se fossem ouro, como se fossem o ouro do mundo espiritual. Estes que procedem assim, no entanto,são os que mais se
enriquecem com o ouro do mundo material,
pois parece que eles usam o mundo espiritual apenas como meio para obterem o
ouro do mundo material, e assim falam do espírito apenas como meio para obterem
templos suntuosos e tronos de ouro, além de cátedras e títulos. Mas o ouro do
mundo espiritual é mais raro ainda que o ouro que vive debaixo do chão. Obtê-lo
é mais árduo ainda que garimpar rios ou abrir minas na pedra.O ouro que verdadeiramente
nos enriquece não é visível, não está à
vista fácil, tampouco serve apenas para adornar as palavras ou ser acumulado em
cofres eruditos. Por isso, dele não há posse exclusiva, nem ostentação.Buscar
esse ouro, esforçar-se por ele, já é a própria felicidade, já é a própria
riqueza, diz Espinosa. A coisa mais preciosa que existe é aquela da qual só
existe um exemplar. Cada coisa singular é preciosa, rara, exatamente por ser
única.
*** ***
***
(Ética, Parte Três, proposição 44, escólio)
Na
vida dos homens em geral, mesmo naqueles que se dizem “práticos” ou “pragmáticos”
( e que não apreciam teorias ou reflexões),a imaginação é muito mais presente
em suas condutas do que eles suspeitam ou sabem. A imaginação se
caracteriza por imaginar como presente uma coisa ausente.A imaginação imagina
como presente as coisas ausentes.Não uma coisa que esteve presente e por alguma
razão se ausentou, mas uma coisa que
jamais foi ou é presente. Por exemplo, o
avarento imagina que todos querem suas moedas. Ou seja, sua imaginação torna
presente na mente do avarento um sentimento que está ausente nos outros:o
avarento imagina estar presente nos outros um sentimento que apenas está nele.O
ciumento imagina e torna presente na mente dele a imaginação de que os outros desejam
o que ele tem. Ele torna presente dentro dele essa ideia confusa, essa imaginação,
e imagina que está presente nos outros esse desejo: isto na verdade mostra o
quanto é fraco o desejo do ciumento em relação às coisas que ele imagina ser
dele ou ele merecer ter.O homem da imaginação, da imaginação passional, não
apenas torna presente o que está ausente, como também age como se fosse verdade
o que é apenas fruto de sua imaginação.Um ciumento, por exemplo, pode ferir ou
matar.O vaidoso imagina e torna presente em sua mente que os outros são
vaidosos e o invejam, ele imagina como presente algo que está ausente nos
outros, porque ele ignora como ele de fato é, e assim ignora também o que são
de fato os outros.Imaginando essas coisas, ele pode agir de fato para
prejudicar os outros, embora a imaginação prejudique, em primeiro lugar, a ele
mesmo: prejudica a sua capacidade de compreender.
A
imaginação não é como a memória. Esta faz viver, com a força da própria alma
que se recorda, o que aconteceu.A memória recorda o que aconteceu.Ao
contrário,a imaginação pode imaginar como presente o que nunca aconteceu, ou
então imaginar que está presente nela , como adivinhação, o que acontecerá.
Assim , a imaginação imagina que o futuro é uma coisa presente, tal como ela
imagina que é uma coisa presente a inveja ou o ciúme que ela imagina estar na
mente dos outros.Mas quando a imaginação assim procede, imaginando como
presente o que está ausente, ela o faz ignorando sua própria presença,
ignorando que é ela que inventa. Outro exemplo dado por Espinosa: quando olhamos para o sol, o vemos do tamanho de uma bola.Na verdade, o que vemos não é o sol, mas o resultado da ação do corpo do sol sobre o nosso.O que vemos é uma imaginação. Assim, por mais estranho que possa aparecer, não há diferença, do ponto de vista sensível, entre percepção e imaginação.O sol do tamanho de uma bola só está presente na nossa mente, na medida em que esta padece uma afecção do corpo ao qual ela está ligada. Para a mente formar uma ideia adequada do sol, é necessário que ela se autonomize em relação a este padecer, e aja. Ela age formando ideias adequada. A ideia adequada do sol nos ensina que ele não é do tamanho de uma bola.Mas jamais veremos, com nossos olhos do corpo, o tamanho exato do sol, mesmo porque com os olhos do nosso corpo somente vemos corpos, e não ideias.Por outro lado, ter a ideia adequada do tamanho do sol não fará com que desapareça o fato de o vermos do tamanho de uma bola.Assim, percebemos que ver o sol do tamanho de uma bola somente é um erro quando estamos privados da ideia adequada dele.Ver o sol do tamanho de uma bola é algo necessário, é uma verdade também, mas que se explica pelo mundo dos corpos e pela maneira como uns agem sobre os outros.A imaginação não é uma ilusão ou aparência, ela somente se torna isto quando a alma fica impotente para agir/conhecer de forma adequada as coisas.E a razão disso acontecer não é o corpo ou a imaginação, mas a própria mente, quando esta não consegue desenvolver sua potência, que é o conhecimento.
Se nós tivéssemos consciência dessa força que
a imaginação possui, a veríamos como arte, e não como algo que fala sobre a
realidade dos fatos .A imaginação somente se torna ruim quando ela ignora a
ideia que torna clara o que são as coisas que de fato existem, e que ela, a
imaginação, não pode substituir com uma mera imagem ou fabricação sua.Somente
na arte esta força da imaginação de tornar presente o que não existe, somente
na arte essa força se torna virtude, e com ela podemos aprender sobre nós
mesmos.
Por
isso, a dimensão estética, que envolve a imaginação, tem um caráter ético
também, no que concerne a nos tornarmos ativos, e não apenas reativos. Há também
nisso um caráter clínico, além de político,na medida que se trata de nos curarmos da ignorância de uma força
produtiva e inventiva que está em nós, mas que ignoramos tudo o que ela pode em termos
afirmativos, já que a "psicopatologia da vida cotidiana" nos mostra apenas o seu lado negativo, de destruição, seja a destruição/negação do
outro , seja a negação/destruição de nós mesmos.
Assim,
entre a ideia que conhece as coisas e a imaginação que inventa coisas não há
contradição ou luta. A imaginação artística pode nos ensinar, por imagens, a
melhor compreender uma ideia, assim como uma ideia nada é se também não puder
ser imaginada, se não favorecer em nós o aumento das nossas capacidades, inclusive
a capacidade de imaginar.Não imaginar como presente o que está ausente,como na
imaginação passional, mas criar imagens que traduzam, no campo sensível, do
sentir, toda a potência que há no campo das ideias, no pensar.Quando a
imaginação assim procede, ela também se torna uma potente ferramenta didática da
educação.
"Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois,proposição 49, escólio)
"Nossa suprema felicidade consiste em realizar apenas aquelas ações que o amor e a generosidade nos aconselham". (Ética, Parte Dois,proposição 49, escólio)
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