sexta-feira, 9 de março de 2018

a empoética terapêutica de manoel


(trecho de artigo a sair na Revista Guavira Letras)

O poeta precisa alcançar uma língua dos começos, que é sempre começo começando: um começo que nunca termina, um começo que (re)começa a cada vez que o poeta escreve: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”.
Os gregos que viveram antes de Platão tinham um nome para esse começo que é sempre começo. Eles o chamavam de “physis”.[1] Convencionou-se traduzir physis por natureza. Contudo, a palavra natureza está viciada por séculos de pensamento objetivista, “coisal”, que parte sempre do já nascido, do já feito: do meio-dia ou, no máximo, da manhã, nunca da aurora. Porém,

Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.[2]
                                                                                    
Originariamente, physis significa “brotar” ou “desabrochar”. Uma fonte também pode ser uma imagem para a physis, desde que a dessubstantivemos e a apreendamos como verbo: fontanejar. A rosa desabrocha, ela se abre e se oferece à luz, e assim fontaneja.  Não apenas as rosas, várias outras coisas desabrocham, fontanejam.
Porém, a coisa que desabrocha pode nos fazer esquecer do desabrochar, pode nos cegar para esse processo quase imperceptível aos olhos que apenas veem o “acostumado”. Algo desabrocha na flor que desabrocha, e esse algo  não é a flor, é uma pré-flor, uma pré-coisa. Se captarmos isso que desabrocha na flor, mas que não é flor, veremos nossos próprios olhos desabrocharem, fontanejando, virando visão fontana.[3]
Se virmos em nossa própria visão o desabrochar da visão que não é apenas a nossa, seremos capazes de ver que tudo é desabrochar de um desabrochar que nunca morre. Veremos fontanejar em nós uma “Canção do ver”.[4] A boca que fala desabrocha, assim como a mão que escreve também fontaneja; igualmente desabrocha a criança que nasce, o sol que se eleva, o afeto no peito, o conhecimento na alma. Tudo desabrocha. Mesmo a alma em silêncio tem o silêncio a lhe desabrochar. Mesmo o homem que morre faz desabrocharem lembranças que dele teremos. Para quem o crê, o homem que morre desabrocha outra coisa.
Para os gregos, a physis não é o desabrochar disto ou aquilo, mas o desabrochar que se expressa nisto e naquilo, e somente pode mostrar-se desabrochando. A physis desabrocha em cada coisa, desabrochando de si mesma, mantendo ligado a ela o que dela desabrochou. A physis desabrocha não apenas na rosa, na boca que fala, na criança que nasce...mas em tudo, no todo. A physis é o desabrochar que permanece em si mesmo como desabrochar. A physis desabrocha de si mesma e se mostra em cada coisa que dela desabrocha. Na rosa que desabrocha também desabrocham a água que ela sorveu, os minerais do solo que ela sugou, a luz que ela absorveu e também desabrocham através dela os bilhões de anos da terra que a preparou.





[1] Cf Gerd Borheim, Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2001.
[2] BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 155.
[3] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11
[4]  Ibid.



(desenho feito por manoel)

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