(trecho de artigo a sair na Revista Guavira Letras)
O
poeta precisa alcançar uma língua dos começos, que é sempre começo começando:
um começo que nunca termina, um começo que (re)começa a cada vez
que o poeta escreve: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”.
Os
gregos que viveram antes de Platão tinham um nome para esse começo que é sempre
começo. Eles o chamavam de “physis”.[1] Convencionou-se traduzir physis
por natureza. Contudo, a palavra natureza está viciada por séculos de
pensamento objetivista, “coisal”, que parte sempre do já nascido, do já feito:
do meio-dia ou, no máximo, da manhã, nunca da aurora. Porém,
Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.[2]
Originariamente, physis
significa “brotar” ou “desabrochar”. Uma fonte também pode ser uma imagem para
a physis, desde que a dessubstantivemos e a apreendamos como verbo: fontanejar. A rosa desabrocha, ela se
abre e se oferece à luz, e assim fontaneja. Não apenas as rosas, várias outras coisas
desabrocham, fontanejam.
Porém, a coisa que
desabrocha pode nos fazer esquecer do desabrochar, pode nos cegar para esse
processo quase imperceptível aos olhos que apenas veem o “acostumado”. Algo
desabrocha na flor que desabrocha, e esse algo
não é a flor, é uma pré-flor, uma pré-coisa.
Se captarmos isso que desabrocha na flor, mas que não é flor, veremos nossos
próprios olhos desabrocharem, fontanejando, virando visão fontana.[3]
Se
virmos em nossa própria visão o desabrochar da visão que não é apenas a nossa,
seremos capazes de ver que tudo é desabrochar de um desabrochar que nunca
morre. Veremos fontanejar em nós uma “Canção do ver”.[4] A boca que fala
desabrocha, assim como a mão que escreve também fontaneja; igualmente desabrocha
a criança que nasce, o sol que se eleva, o afeto no peito, o conhecimento na
alma. Tudo desabrocha. Mesmo a alma em silêncio tem o silêncio a lhe
desabrochar. Mesmo o homem que morre faz desabrocharem lembranças que dele
teremos. Para quem o crê, o homem que morre desabrocha outra coisa.
Para
os gregos, a physis não é o desabrochar disto ou aquilo, mas o desabrochar que
se expressa nisto e naquilo, e somente pode mostrar-se desabrochando. A physis
desabrocha em cada coisa, desabrochando de si mesma, mantendo ligado a ela o
que dela desabrochou. A physis desabrocha não apenas na rosa, na boca que fala,
na criança que nasce...mas em tudo, no todo. A physis é o desabrochar que
permanece em si mesmo como desabrochar. A physis desabrocha de si mesma e se
mostra em cada coisa que dela desabrocha. Na rosa que desabrocha também
desabrocham a água que ela sorveu, os minerais do solo que ela sugou, a luz que
ela absorveu e também desabrocham através dela os bilhões de anos da terra que
a preparou.
[1] Cf Gerd Borheim, Os filósofos pré-socráticos. São Paulo:
Cultrix, 2001.
[2] BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 155.
[3] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11
[4] Ibid.
(desenho feito por manoel) |
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