segunda-feira, 10 de maio de 2010

a calça




Quando eu era adolescente, não querendo dar trabalho à minha mãe e desejando exercer um pouco de autonomia, fui eu mesmo, certo dia, lavar uma calça jeans minha. Como não tínhamos máquina de lavar, fiz a tarefa à mão.Após lavá-la, coloquei então a calça para secar, estendida no varal de nosso pequeno quintal.
Na manhã do dia seguinte, notei que a calça havia caído do varal, provavelmente arremessada por algum vento mais forte. Uma das pernas caiu dentro de uma bacia com um líquido que eu pensara ser apenas água. Peguei a calça e a pus novamente para secar.
Horas depois, percebi que o líquido da bacia não era apenas água, mas sim água sanitária, pois a perna que caíra no recipiente estava completamente desbotada.
Minha percepção se sentira atraída por aquele efeito diferente, que nunca antes eu vira em calça alguma. Peguei a calça e resolvi mergulhá-la por inteiro na bacia com água sanitária...
No dia seguinte, vi o resultado: aquela calça , paradoxalmente, era e não era mais uma calça, pois ela se tornara um signo através do qual eu poderia expressar o mundo que eu trazia dentro. Nunca antes eu havia visto uma calça assim, e era isso que me fazia ver algo de novo nela. Subtraída do comum ao qual pertencia, a calça agora se tornara um ser singular cuja positividade maior era a sua diferença.
Ao pôr a calça, eu vestia não apenas meu corpo, mas também meu espírito - pois este, por ser diferente, somente por algo diferente pode ser vestido.
Quando sai à rua, algumas pessoas me interrogavam com um olhar curioso, enquanto outras me julgavam com um olhar de reprovação. Percebi então a tirania do senso comum, que logo se mostra quando algo destoa de seu olhar homogenizador e padronizante. Tive que tomar naquela breve situação a mais importante decisão, que certamente determinaria minha vida dali por diante: ou voltar para casa e colocar uma calça/alma igual a de todos, ou continuar sendo o que era, e enfrentar o inimigo que também estava dentro de mim... Decidi seguir meu caminho e afirmar minha diferença enfim vestida .
Chegando ao colégio, um amigo do peito gostou do efeito, pois a alma dele, como a alma de quase todos, estava nua e queria também vestir-se. Mostrei-lhe como se fazia, a alma dele também se vestiu, e assim eu já não estava mais sozinho.

sábado, 17 de abril de 2010

Dioniso



A história de Dioniso começa com a paixão de Zeus por uma simples mortal, a princesa Sêmele. Seduzida pelo deus, a mortal engravidara. Desse amor entre Zeus e Sêmele nasceu então Dioniso. A natureza de Dioniso se compunha desses dois mundos, nele misturados: o mundo eterno dos deuses e o mundo temporal dos homens.
Quando Dioniso era ainda uma pequena criança, fora vítima de terrível violência: seus irmãos da parte divina, enciumados com a beleza do deus-criança, avançaram sobre ele e, com atroz fúria, o fizeram em pedaços. Quando Zeus chegou, diante dele apresentou-se a sinistra cena: esquartejado, o corpo do deus-criança estava a um canto jogado. De súbito, Zeus perguntou a si mesmo: “Em qual dessas partes Dioniso está por inteiro? Pois a partir dela posso fazer renascer o deus”. Zeus descobriu então que a parte do corpo que guardava Dioniso era exatamente o coração, pois o coração era a sua parte eterna. O coração enquanto sensibilidade e afeto,ponto onde vida e arte estão inseparáveis.O coração não se explica pela quantidade material que se pode despedaçar,pois ele é a integridade de uma qualidade indestrutível. Zeus recriou novamente o deus Dioniso, fazendo este nascer de novo a partir do coração do deus-criança. Esse fato explica o nome do deus: Di-oniso, “aquele que nasceu duas vezes”.
Contudo, o segundo nascimento foi, na verdade, um renascimento. Isto explica a grande força desse deus: a todos aqueles cuja vida foi despedaçada ou violentada por algum motivo, Dioniso socorre com a crença em uma vida renovada, intensificada. Enquanto o nascimento biológico ocorre uma única vez, o renascimento através do coração pode acontecer inúmeras vezes, pois o coração, enquanto morada do desejo, nele nos mantém inteiros .

segunda-feira, 29 de março de 2010

as duas paisagens




"Na plenitude da felicidade cada dia é uma vida inteira".

Goethe



Segundo Fernando Pessoa, existem duas paisagens: a paisagem de dentro e a paisagem de fora. Cada uma delas possui um sol: o sol da paisagem de fora é esse astro incandescente que vemos no céu todos os dias (às vezes inclemente, como em dezembro; noutras, atrás de nuvens que o encobrem, como acontece em junho).
O sol da paisagem de dentro é o coração. No entanto, enquanto na paisagem de fora há uma lei férrea de sucessão das estações (o inverno sucede ao outono, este por sua vez sucede ao verão, e este último se segue à primavera), na paisagem de dentro uma outra lógica se opera: por vezes, dura dentro de nós um verão interminável:sob o crivo de seu meio-dia, tudo o que é sombra se desfaz. Noutras vezes, ao contrário, se instala na paisagem de dentro um inverno de densas tempestades e bruscas nevascas: em pleno meio-dia, já é noite... Some de nossas vistas espirituais o caminho que nos levava ao que desejávamos, tateamos numa noite que nos vai dentro. Mesmo que na paisagem de fora esteja a brilhar um sol de dezembro, em plena Ipanema, o inverno de dentro às vezes perdura, invencível ─ achamo-nos no Alaska.
E o mais estranho é que, na paisagem de dentro, por vezes esse mesmo inverno é substituído por um verão que chega sem aviso. Então, a neve que antes nos imobilizava, prontamente se derrete: torna-se a poça d’água na qual vemos refletido o céu azul que , de tanto andarmos de cabeça baixa, esquecemos que existia.
A felicidade suprema talvez seja quando os dois sóis (o sol de fora girando em seu céu misterioso e o sol de dentro pulsando em seu céu mais misterioso ainda) brilham juntos numa primavera de renovação ou num outono sem pressa , onde aquece o lume de uma felicidade conquistada , contentemente viva : beatitude.

sábado, 27 de fevereiro de 2010




A Terra está grávida...
Cuidemos para que seu filho nasça.
Quando menos se esperava,
desejou ela ser novamente mãe:
em seu ventre,
a nutrir-se da Vida que nunca acaba,
espera para nascer o Amanhã.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010



A VERDADEIRA NOBREZA

Ele se chamava Angenor, com esse nome nasceu.Angenor era um homem negro, simples , que mal fizera o primário. Morava na Mangueira; a Mangueira morava nele.Aprendeu a traduzir no violão o que lhe falavam as rosas. Escrevia poemas; via poesia onde todo mundo só via pobreza e miséria. Aos que só olham o chão, ele aconselhava:"Corra e olha o céu...", o "céu que a todos cobre" de forma igual.
Para ganhar a vida,já que de poesia não dava, foi trabalhar como operário de obras.O chapéu que ele usava nas obras era igual ao de todos: chapéu de operário, ordinariamente comum. Porém, o modo como ele punha o chapéu, a maneira como ele andava ,cheio de classe e elegância, fez um companheiro de obras ironizar:"Angenor,acorda: isso é só um chapéu de operário, não é uma cartola!".
E foi desse útero poeticamente subversivo, que subvertia o sentido ordinário das coisas, que nasceu Cartola, cuja nobreza de alma tornava nobre tudo o que tocava. Mesmo os que têm bom nascimento, doutoramentos acadêmicos e posses materiais, mas se lhes faltar nobreza de alma, quando estes põem uma cartola de fato, esta se transforma em um triste chapéu ordinário, espelho que se torna de uma alma assim.
Cartola, ao contrário, não nasceu nobre de sangue, mas fez a nobreza nascer em seu sangue de poeta:nascido Angenor, renascido Cartola.



Traçado a giz
deve ser o contorno
de quem não cabe em si mesmo.