quarta-feira, 24 de abril de 2013

jardim de outono





Eu tentei me horizontar às andorinhas.
Manoel de Barros

O plano de imanência é o horizonte absoluto.
Deleuze & Guattari


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                                                           OS ACHADOUROS


                                                               Quando o sábio se vê reduzido à necessidade,
mesmo aí ele acha mais ocasiões de ofertar do que de receber,
pois ele possui um tesouro que nunca se esgota:
o de possuir a si mesmo.
Epicuro.


No poema Achadouros Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros , os homens  escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro.O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha o mundo ainda por descobrir. Ele acha, em meio ao barro,  ao húmus, ele acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Deleuze, Manoel de Barros , rizoma



Usa-se a inteligência   para entender a não-inteligência [ o afeto, a  arte, a vida].
Só que depois o instrumento  -  o intelecto - por vício de jogo continua  a ser usado,
 e não  se pode colher as coisas de mãos limpas,
diretamente na fonte.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo.


Na natureza  há dois tipos de raízes: as arborescentes e as rizomáticas. As primeiras possuem raízes fixas, ao passo que as segundas são constituídas por raízes que se movem, e que fazem da planta um autêntico  andarilho, um Andaleço de espaços lisos de itinerâncias.Filosofias ortodoxas sempre fizeram da árvore um modelo ideal de sistema : raízes fincadas em um solo fixo ( seja este solo a Razão ou Deus), um tronco rígido , a Física, ligando as raízes aos diversos galhos, que são as disciplinas  sustentadas dogmaticamente  pelo tronco.  Descartes,o racionalista, é o exemplo mais célebre de uma filosofia arborescente. Em Deleuze e Guattari, diferentemente, as formações rizomáticas inspiram uma pop’filosofia( Mil Platôs). O rizoma é  constituído por  raízes formando uma multitudo, um espaço sem centro, uma anarquia coroada. O rizoma  não é uma semente, um fruto ou uma flor. Ele é uma raiz que brota de si como se fosse uma semente, ele  guarda em si sua continuidade à maneira de um fruto, ele desabrocha  para fora como só faz uma flor.Ele é sua própria semente, fruto e flor, sem deixar de ser raiz.Ele é plenamente raiz, e como tal o rizoma cresce. Enquanto no modelo arborescente as disciplinas são compartimentadas e segmentadas, o rizoma inspira uma produção de conhecimento trans e interdisciplinar.A essência do rizoma é se expandir:  expandir-se como raiz, sem para tal necessitar de semente, fruto ou flor.Os rizomas são plantas sem “existidura de limites” , como diz Manoel de Barros. São plantas de conectividade, agenciamento, encontros, afetos . Como em Manoel de Barros, os rizomas são as raízes crianceiras , são as raízes da invenção. 

quinta-feira, 11 de abril de 2013

trecho do livro sobre Manoel de Barros






No "Livro de pré-coisas" , na prosa poética intitulada "Agroval", Manoel de Barros descreve um acontecimento ordinário do pantanal. “Ordinário”, aqui, significa a mesma coisa que comum ou regular. À idéia de “ordinário” costumamos opor a noção de “extraordinário”. Vale a pena lembrar a origem matemática destes termos. Na matemática, os “pontos ordinários” de um triângulo são os inumeráveis e indistintos pontos que ocupam cada um dos lados da figura, ao passo que seus três “pontos extraordinários”, ou singulares, localizam-se em cada ângulo do triângulo. Em uma reta, por sua vez, os pontos extraordinários são dois: aqueles que ocupam os extremos da linha.
Todavia, a diferença entre ordinário e extraordinário mostra toda a sua riqueza quando examinamos o círculo. Aparentemente, tal figura geométrica é destituída de pontos extraordinários ou singulares. Mais do que uma linha reta, geralmente costuma-se afirmar que nossa vida é um círculo: o círculo de nossa vida. Então, estaria o círculo de nossa existência destituído de momentos singulares? Estaria nossa vida refém do ordinário?
Mas o círculo guarda um segredo, tanto na matemática como na vida: qualquer ponto ordinário seu pode metamorfosear-se em ponto extraordinário, se por ele passar uma tangente. No encontro da tangente com o círculo, ambos dividirão o mesmo ponto, abrindo assim o círculo a uma força que vem de fora de seus limites e contornos. Quando o ordinário se converte em extraordinário, acontece o deslimite -renovando-se a vida.
Assim, entre o ordinário e o extraordinário não existe uma diferença intransponível: é no seio do ordinário que o extraordinário acontece. “Cada coisa ordinária é um elemento de estima”, afirma o poeta. Pois, complementa, “é no ínfimo que eu vejo a exuberância”. Em "O Guardador de águas", ele revela ainda: “No achamento do chão também foram descobertas as origens do vôo.” É no ordinário do chão que o extraordinário, como vôo, é “achado”. Enfim, “o chão é um ensino”.
"O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade , afirma o poeta,é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão".






quinta-feira, 4 de abril de 2013

evento: lançamento do livro do professor e filósofo Cláudio Ulpiano


O Centro de Estudos Claudio Ulpiano e a Funemac Livros têm o prazer de convidá-los para o lançamento do livro “GILLES DELEUZE: A GRANDE AVENTURA DO PENSAMENTO”, de CLAUDIO ULPIANO.  O evento, promovido pelo Departamento de Direito da PUC e organizado pelo Centro de Estudos Claudio Ulpiano, será na próxima 2ª feira, 8 de abril, a partir das 19:30, no auditório B8, na cobertura do Edifício da Amizade, Ala Frings.

Local: PUC-Rio – Campus da Gávea – Auditório B8 – cobertura do Edifício da Amizade – Ala Frings – Rua Marquês de São Vicente 225 – Gávea – Rio de Janeiro – RJ
Abertura:
- Maurício Rocha (PUC-Rio)
- Silvia Ulpiano (CCLULP)
Professores Palestrantes:
- Tatiana Roque (UFRJ)
- Mario Bruno (UERJ-UFF)
- Alterives Maciel (PUC-Rio)
- Luiz Manoel Lopes (UFC)
- Elton Luiz Leite de Souza (UNIRIO)
Artistas, Alunos, Leituras e falas:
- Marici Passini e Renata Bergo Duarte (CCLULP – Ritornelo Livros)
- Marcelo Braga (dançarino, coreógrafo)
- Sascha Amback (músico, compositor)
- Eduardo Goldenstein (cineasta)
- Paulinho Moska (cantor, compositor)

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Manoel de Barros: "o aprender a desaprender"




Uma influência especial em Manoel de Barros: Paul Klee. Manoel de Barros se apropria, à sua maneira, da Máquina de Chilrear de Klee, e a faz de ferramenta de sua oficina poética . Este pintor ensinou-lhe a necessidade de "aprender a desaprender" - que define muito bem o que aqui chamaremos de devir-criança, e que tão presente está na obra de Manoel de Barros: “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Por isso, completa o poeta,

Palavras
Gosto de brincar com elas.
Tenho preguiça de ser sério. 

De sua parte, Paul Klee impôs a si mesmo uma espécie de “desaprendizagem” ( Miró , outra influência de Manoel,viveu algo semelhante). Embora ele desenhasse de forma precisa e técnica, esta mesma precisão e técnica tornou-se uma fôrma e prisão para as imagens que ele queria exprimir. Uma fôrma/prisão que precisava ser quebrada para que , livres, as imagens pudessem fluir. Então, ele passa a desenhar com a mão esquerda. O artista descobriu-se novamente criança nesta mão: cada desenho era o desenhar de novo nascendo ─ fazendo-se como novidade, experiência e descoberta. Ao desaprender as formas e códigos da mão direita, Paul Klee redescobriu a pintura e a ele mesmo: reencontrou a alegria da criança cujo brincar e inventar é a coisa mais séria e verdadeira. Assim como a arte de Paul Klee,

A poesia tem a função de pregar a prática 
da infância entre os homens.




domingo, 17 de março de 2013

Manoel de Barros: o "pote"








A desgrandeza é de Deus.

Manoel de Barros
 

No poema Aventura,  o personagem  é um pote que Manoel de Barros  encontra abandonado encostado à natureza. Jogado ali de   barriga vazia para cima, o pote continha apenas , naquele estado de abandono, a presença da ausência do que outrora  o fazia repleto, cheio, desejável;e que o tornava  parte da mesa matinal de quem se alimentara do conteúdo que o pote entesourava. Findo este conteúdo , ficou vazio o pote: sem poder guardar a si mesmo, sem ter outra coisa a ofertar senão o vazio , o pote fora rejeitado, esquecido, abandonado pelos homens e suas utilidades, de tal maneira que apenas a natureza o quis. O pote já não  servia para nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo aquilo que, ao encostar nela, sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", diz o poeta. 
Houve um intervalo de tempo entre o primeiro encontro do poeta com o pote  e um outro encontro que veio a seguir. Neste intervalo , um passarinho passou voando atoamente  sobre o pote e cuspiu uma semente em seu  ventre vazio. Ali já havia areia e cisco trazidos pelo vento. Houve então um rascunho de coisa nova, um  encantamento , um poema: no ventre do pote milagrou  uma vida, nasceu um pé de rosas que ali desabrochou. "As chuvas e os ventos deram à gravidez do pote forças de parir".E onde antes crescia o vazio, agora crescia o amor: "se a gente não der o amor ele apodrece dentro de nós". E repleto ficou o pote da beleza que se oferta  sem nada pedir em troca.





quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Manoel de Barros: o "escovar a palavra"

                                                                           






                                                                                                        Quem se aproxima da origem se renova.

***   ***  

O que não aprendeu ainda a renunciar ao desejo de informar,
ao desejo de narrar, não aprendeu a cantar.
Quem canta é músico, passarinho, pintor, vento, poeta, chuva.
Poeta não precisa de informar sobre o mundo.
Poeta precisa de inventar outro mundo.

***   ***      

Palavra séria, para mim,
é aquela   que convida as outras 
para brincar de poesia.

Manoel de Barros

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz ter visto, quando criança, dois homens "escovando osso" ( o nome do poema é exatamente "Escova").Isso o afetou singularmente. Tempos depois, ele soube o nome do  que aqueles homens estavam fazendo: eles faziam "arqueologia", eles eram "arqueólogos". "No começo achei que aqueles homens, afirma o poeta, não batiam bem. Porque ficavam sentados na terra  o dia inteiro escovando osso.Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos . E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor".Desse aprendizado ele inventou outro, pois o poeta diz que aprendeu a fazer algo semelhante , só que com as palavras. Ele aprendeu a "escovar" as palavras.
Os arqueólogos escovam o osso , algo aparentemente inerte e morto, para nele fazer viver a "arqué". "Arque-ologia" procede de "arqué". "Arquivo" também procede. "Arqué" tem por sentido "princípio", "causa" ,"fonte", "origem" ou "começo".Só arquivamos( em armários, gavetas , museus ou em nossa própria memória) aquilo que julgamos ter alguma relação com nossa existência, seja como causa , fonte ou origem.Em nossa memória não está apenas o passado, está também o que dá sentido ao presente.Em A Arqueologia do Saber, Foucault mostra que o saber é prática de construção de "arquivos" que co-existem sem se sucederem em progressão.No exemplo de Manoel de Barros, os arqueólogos descobriam que havia, naquele osso, algo arquivado: arquivado não como um papel em uma gaveta, já que , nesse caso, o que está arquivado é o próprio osso como arquivo, como signo, como sentido. O tempo estava arquivado nele, e ele, o osso, estava arquivado no tempo. E este tempo não é o passado no qual aquele osso foi esqueleto, já que se trata também do tempo no qual ele é descoberto como arquivo.Um osso não é apenas um osso, quando nele descobrimos um arquivo.Outrora ele fazia parte de um esqueleto escondido sob pele e músculo.Hoje, como arquivo, percebe-se que ele faz parte do universo inteiro, e sobre este ensina.O osso vira um documento: docere, aquilo que ensina.
O poeta escova a palavra, e a faz nos ensinar coisas que a mera informação utilitária não ensina. O poeta escova a palavra para nela fazer nascer sua alma: o sentido. Escovada, tornada arquivo, ela não designa apenas o referente que o uso consagra, pois ela passa a expressar também a origem que a inventou, e essa origem não está fora, mas lhe é imanente como ato de invenção.Esta é a fonte do sentido: a invenção. Ao escovar a palavra, não importa qual, o poeta acha a poesia, tal como o arqueólogo acha no osso o mundo no qual ele era uma parte, e  hoje esse mundo é parte dele, como mundo a descobrir. A palavra se torna mais do que palavra quando o poeta a escova, para nela fazer viver uma memória.
Nietzsche dizia que sempre nos esquecemos que nunca vivemos o que agora vivemos. Ele evoca então  uma memória singularíssima: uma memória que deveria nos lembrar que nunca vivemos o que agora vivemos; uma memória não do passado ou do que se viveu, mas uma memória do novo, do que nunca se viveu. Pois é disso que a gente se esquece: do novo. Nesse sentido, a percepção utilitária, aquela que busca sempre o "já visto" em todo ver, tal percepção também precisa ser escovada, para que assim de fato possamos deixar nascer em nós a memória daquilo que a todo tempo nasce,  e que somente pode ser visto por  uma "visão fontana" , uma visão que também é fonte do que vê.Quando olha para uma árvore, nela somente vendo o útil, o lenhador vê o possível móvel ou as folhas de papel que guiam sua percepção interessada, que se torna cega de uma cegueira ignorada. Ele não vê a árvore, muito menos a poesia que a faz e fez. Ele não vê a "arqué", ele não vê que ali há uma fonte.Em um museu, um objeto exposto deveria expressar essa poesia que faz o  objeto ser mais do que um objeto, tal como o escovar a palavra a faz ser mais do que mera informação utilitária que amanhã já será sucata, feito as informações  do jornal de ontem. O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata, o verdadeiro novo nunca vira ontem.O novo é sempre fonte:arqué.A fonte é a "origem que renova".A fonte não é como um ponto de onde um fluxo jorra, pois este fluxo que a atravessa vem de um infinito com o qual ela permanece ligada. Pois é isto ser uma fonte: nos ligar a um infinito que nenhuma metragem utilitária pode diminuir. A fonte é o que nos liga e amplia.
"Poesia": poiésis, produção. Assim, o escovar é prática de cuidado também. Mais importante do que o "conhece-te a ti mesmo" é o "cuida de ti mesmo". Em latim, "caute" é a palavra que Espinosa imprimiu em seu anel. De caute provém cuidado também, assim como "curador": aquele que cuida."Caute" também pode ser "cautela" enquanto conduta ética. Desse modo, a poesia não é um conhecer meramente  intelectual, ela é um cuidado com o sentido, um cuidar do sentido.E é por isso que a poesia é também uma ética e uma clínica, como deveria sê-lo todo conhecimento, que nada é se não for também autoconhecimento. Assim , ao escovar um simples osso, é a nós mesmos que procuramos conhecer, não como um ser à parte , mas como parte de uma Natureza que é Poiésis.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

o homem-mosca e o homem-abelha





Sei de todas as espurcícias do mundo,
mas do que gosto mesmo é de circo.

Manoel de Barros


Minha tia, Dona Emília, me dizia: “meu filho, existem dois tipos de homem: o homem-mosca  e o homem-abelha.O homem-mosca , ao entrar em um lugar o mais limpo que seja, sempre procurará pela sujeira, real ou imaginada, que ele supõe estar ali. Sobre essa sujeira ele vai pousar , vai construir sua casa, e daí julgará tudo por essa sujeira: a sujeira sairá pelos seus olhos de inveja, cobiça e desconfiança; sairá pela sua boca como palavra de maledicência e ódio. O homem-abelha, mesmo diante do pântano da maior sujeira, mesmo aí ele achará uma flor onde pousar e se apoiar. Daí ele olhará ao redor, verá a sujeira, mas verá também que não é nela que ele está apoiado e, por isso mesmo, será capaz de voar sem se sujar, uma vez que nesta certeza estará apoiada sua intenção e confiança. E seu viver irá de flor em flor, mesmo que raras, e seu fazer será um esforço para aumentar os pontos de apoio para aqueles que , em meio a tanta sujeira, nela não querem pousar. O homem-abelha é fecundado e se torna instrumento de fecundar beleza, vida, dignidade, poesia, invenção. Então, meu filho, se esforce o máximo que puder para ser um homem-abelha: veja onde pousa, creia que sempre você encontrará onde pousar mesmo onde se multiplicam e mandam os homens-moscas”.
Depois, ao ler os deleuzes, os espinosas, os epicuros, os nietzsches, os lucrécios, os manoéis de barros...compreendi que minha tia, em sua sabedoria que não “vem em tomos”, sabedoria esta que não está nos projetos de pesquisa que os doutos acadêmicos latteficam,compreendi que o lugar onde pousamos é o “dentro da gente”: é o que pensamos que constitui sujeira ou flor. Ao entrar dentro  dele, o homem-mosca só encontra sujeira e lama, sujeira e lama que ele imagina que lhe existem fora: e ele mesmo põe os ovos que se multiplicarão e se alimentarão  desse ódio e tristeza.  O homem-abelha, como diz Manoel de Barros, “dá o amor para que este não apodreça dentro dele”.