quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

alvorada


Dizem que ele é o último dia.
Ontem o imaginei um velho,
um quase morto.
Mas em sua aurora hoje ele me acordou:
Que manhã...
Dia 31 também é dia novo!


sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

paisagens de verão (summertime)



Quando a alma anda perdida na memória,
é o olho do corpo que a salva:
mostrando-lhe um novo presente
que nasce agora.













segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

manoel de barros:o poeta do deslimite

deslimite pode ser compreendido como um processo ao mesmo tempo estético e existencial, no qual vida e poesia se mostram como as duas faces de uma mesma Vida a qual não se pode impor uma forma ou limite . Esta Vida somente se deixa apreender em uma experiência de devir. O devir não é uma forma ou algo de determinado, mas um processo no qual os seres atingem seus deslimites (conforme veremos ao longo do estudo) .
Atingir o deslimite não significa destruir-se ou negar-se. Ao contrário, é o limite que destrói a invenção que se pode e se deseja. O deslimite , portanto, é uma experiência com a Vida, e não com a morte ( nos vários sentidos que essa palavra pode ter).
Embora seja uma experiência eminentemente poética, isso não significa que ela seja suscitada apenas pela leitura de poesia. A essência de tal experiência é exatamente nos ensinar a alargar a compreensão do que seja poesia, como faz Manoel de Barros, para que a vejamos em todas as coisas que, rompendo seus limites, deixam ver a Vida.

(trecho do livro)


sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

manoel de barros:"o que é verdadeiramente novo nunca vira sucata"

No poema “Achadouros” , Manoel de Barros nos fala de uma  senhora, a "negra Pombada, remanescente de escravos do Recife", que  contava aos meninos sobre Corumbá ter “achadouros” , que eram buracos  feitos pelos   holandeses  em seus quintais para esconder suas moedas de ouro, antes de fugirem apressadamente do Brasil. Durante muito tempo em Corumbá, movidos pelo desejo de encontrar tais tesouros, os homens escavaram  quintais para ver se ali achavam ouro.O poeta é aquele que busca os achadouros também, mas o tesouro que ele deseja é outro : ele escava o ordinário e ali acha o extraordinário; ele escava o habitual e neste acha o incomum; ele cava em si mesmo e dentro de si ele acha o mundo ainda por descobrir. Ele acha, em meio ao barro, ao húmus, ele acha/inventa o ouro de uma vida da qual nunca cessam os inauguramentos.

Nietzsche dizia que o novo  sempre é novo, o estabelecido sempre o foi.É uma ilusão nascida da idéia de progresso ( e que faz par com a idéia de decadência) supor que o que hoje é estabelecido um dia foi novo, ou o que hoje é novo um dia será o estabelecido. O novo sempre foi, é e será novo. Ele antecede, sucede e é coetâneo a si mesmo, como metamorfose. A infância não é  apenas uma  época passada reportada a uma fase da vida,  a infância é "semente da palavra".  Aquilo que é realmente novo, sempre o foi e será; por outro lado, aquilo que é o estabelecido, o "acostumado" ( diria o poeta), sempre o foi e o será também. O novo nunca será o estabelecido, e o estabelecido nunca foi , outrora, o novo.É uma ilusão nascida  do tempo concebido linearmente supor que o novo hoje será, amanhã, o estabelecido; ou que o estabelecido hoje foi, ontem, o novo. Essa ilusão escamoteia um pré-julgamento: o que faz do estabelecido o critério para conhecer o novo. O estabelecido é a gramática, o "saber em tomos", a "expressão reta"; o novo é a agramática, a ignorãça, a infância da palavra, o feto dos nomes. O novo nunca é território: ele é sempre agente de desterritorializações.Os objetos viram sucatas: "Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel (...).Até nave espacial vira sucata" (2010b, p. 71). Todavia, os desobjetos poéticos são sempre fontes de invenção, e esta nunca vira sucata. 


quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

aurora 2

Erguer-se... como se ergue
a aurora do seio da noite”.
Homero, Ilíada.


Assim como a membrana
rodeia  e protege o núcleo da vida,
e o núcleo da vida é o nascer
que antecede a criança,
a aurora rodeia e protege
o novo dia,
e sua luz sem tremer aos vivos chama:
"levanta!"









quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Manoel de Barros:desbiografia



A importância de uma coisa não se mede com fita métrica  nem
com balanças nem com barômetros etc. (...) A importância de uma coisa
há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.

Manoel de Barros


“Não sou biografável”, disse certa vez Manoel de Barros.  E nos confessa ele ainda que suas memórias são inventadas.Sem dúvida, é difícil capturá-lo em uma apresentação biográfica habitual, pois ele se aloja em uma região imperceptível aos olhos daqueles que só percebem o já visto, o etiquetado.
Ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como diz Deleuze, emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, idéias, sensações. Ser imperceptível é um caso de devir: devir imperceptível. Tornar-se imperceptível é pôr em questão os mecanismos que, de forma a priori, determinam a percepção, fazendo-a submeter-se a um já dado que nos cega diante daquilo que é diferente.
Quando o nome próprio conquista a potência de expressar acontecimentos e sentidos, despe-se da pessoa que até então designou , uma vez que aquele que o porta atinge a mais necessárias das artes: a de se tornar impessoal. “Palavra que eu uso me inclui nela” afirma Manoel de Barros. Para haver essa inclusão, esse devir, é preciso aquela arte. Assim, diz Deleuze a esse respeito, descobre-se “sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau.” No poema intitulado “Ninguém”, Manoel de Barros escreve:

Falar a partir de ninguém faz comunhão com as árvores
Faz comunhão com as aves
Faz comunhão com as chuvas
Falar a partir de ninguém faz comunhão com os rios,
com os ventos, com o sol, com os sapos.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com borra
Faz comunhão com os seres que incidem por andrajos.
Falar a partir de ninguém
Ensina a ver o sexo das nuvens
E ensina o sentido sonoro das palavras.
Falar a partir de ninguém
Faz comunhão com o começo do verbo.

Tornar-se impessoal, “Ninguém”, é conquistar o estatuto de um sujeito coletivo de enunciação: sua voz já não diz “eu” , mas “nós”. E neste “nós” inclui-se sobretudo o que não tem voz, mas que a poesia faz falar: “Queria ser a voz em que uma pedra fale”,uma voz que já não manifesta um eu pessoal :

Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.

Pela voz poética de Manoel de Barros também se tornam sujeitos,mas sujeitos larvares, uma quantidade infindável de seres: lagartixas, girinos, bocós,pedras que dão leite, patos atravessados de chuva, arames de prender horizonte,tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma... enfim, o que não se pode vender no mercado:“coisas se movendo ainda em larvas, antes de ser idéia ou pensamento”. Manoel de Barros nos diz ainda:

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
Um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Ou alguém que possa freqüentar o futuro das palavras.

Mais do que tudo, o que por sua voz fala é a própria língua que, despida da forma da gramática, “voa fora da asa”:

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimento
 O verbo tem que pegar delírio.

Este “fazer nascimento” referido pelo poeta inunda a poesia com a potência de um germe: na imanência deste, o verbo, como logos, liberta-se dos substantivos e das substâncias; devém ele próprio experimento com o sentido, e nos ensina: “Poesia é voar fora da asa”: “a poesia é a loucura da palavra”.

Trecho do livro: