"Um movimento artístico, científico, 'ideológico',pode ser uma máquina de guerra potencial, na medida em que ele traça um plano de consistência, uma linha de fuga criativa."
(Deleuze e Guattari, Mil Platôs)
Não me lembro ao certo como cheguei à filosofia. Quando recuo na memória, deparo-me com algo que não pertence a ela; portanto, é apenas de forma confusa, mutilada, que encontro nela rudimentos de como nasceu esse Afeto em mim. O que me lembro bem é que eu fazia parte de um bando, de um grupo, de uma matilha, de um rizoma. Éramos cinco ou seis, éramos um, éramos múltiplos. Fazíamos o colegial. Nossa amizade nasceu na sala de aula, nas aulas de literatura.Unia-nos a música, a poesia e tudo aquilo que , como diz Manoel de Barros, "não se compra ou vende no mercado". Lembro-me que certa vez resolvemos ir à Bienal de Livro. Não tínhamos dinheiro, não tínhamos meios, mas não nos faltava o desejo . Não o desejo por dinheiro ou meios, mas o desejo. Quando se tem o desejo, inventam-se os meios e , para chegar, não nos impedem as distâncias que os homens, com suas convenções, criam.Chegamos então à Bienal. A viagem foi longa. Vínhamos não apenas do subúrbio, vínhamos também do lugar que fica atrás dos incontáveis muros erguidos pela engenharia da exclusão social. Contudo, escalamos os muros, os atravessamos, os explodimos.E em todos pixamos a nossa assinatura.Chegados então à Bienal, enfim os livros. Circulamos entre corredores, deambulamos entre labirintos.E foi no centro de um deles que eu vi a Terra emoldurando a capa negra de um livro. Sobre a Terra, o título: "Assim falou Zaratustra". E acima do título, um estranho nome:Nietzsche. Não sabíamos bem porque, mas tínhamos que habitar aquele planeta chamado Nietzsche. O nome "Nietzsche" não nos era exatamente desconhecido. Mas ele nos aparecia em uma névoa na qual estavam também, para nós, Gláuber, Lima Barreto, Van Gogh, Cartola, Pixinguinha, Dioniso...Enfim, não sabíamos conceitualmente o que era a filosofia, mas já nos afetávamos por ela porque nos afetava a vida e tudo aquilo que, segundo Manoel de Barros, "é rebeldia, rebeldia sobretudo contra o clichê". O bando viu o livro com os olhos que eram do bando, e não de cada um isoladamente. Todavia, não tínhamos dinheiro, faltavam-nos meios. Em conjunto, a máquina de guerra planejou uma ideia. Víamo-nos em uma batalha na qual era preciso resgatar um aliado do território inimigo. Forço a memória para me lembrar dos detalhes, das ações. Mas o que sei é que, de repente, olhamos para o lado e vimos, entre nós, mais um: o livro de Nietzsche foi embora em nossas mãos.O livro circulou entre nós, e o grupo decidiu que ele ficaria comigo. E comigo até hoje está. Levei-o muitas vezes para conhecer o subúrbio, pegar trem, ir ao samba. Certa vez, lembro-me bem, fui ao Morro dos Macacos com um amigo. Lá no alto desse morro nasceu a escola de samba Vila Isabel.E lá no alto ainda havia o mesmo berço de samba bom. Eu começara a fazer faculdade de filosofia. Um amigo que conhecia o lugar me disse: " o samba é bom, você vai ver. Mas o problema é, infelizmente, a bandidagem que fica por lá e pensa que é dona do morro". Naquela época, o tráfico não era tão violento, mas havia, sem dúvida, o risco. Chegando então lá no alto, havia o samba ( que estava para começar), mas os marginais pareciam a tudo vigiar de perto. Fui apresentado como "o filósofo". Quem me apresentou o fez com indisfarçável ironia, como a me dizer:" você não se diz um homem livre, se vira!". Um dos bandidos, com arma na mão,e que não tinha mais do que 17 ou 18 anos, achou graça na palavra "filosofia" e, sentando à mesa onde já se encontravam outros bandidos, me pediu para sentar também. Não tinha como recusar. Quando me sentei, sobre a mesa estavam, além das cervejas, várias armas dos mais diversos calibres. Vi então um espaço livre e coloquei ali, entre tais coisas, o livro de Nietzsche.O marginal olhou para aquele livro e me perguntou: "O que é isso que você colocou na mesa?".Pondo-me à margem daquela suposta margem, com firmeza respondi:"esta é minha arma".O marginal riu, algo nele parecia que entendeu. Ele me pediu para falar mais alguma coisa, mas eu respondi dizendo que estava ali para ouvir. Então, como se os sambistas tivessem ouvido o que eu falei, começou o samba.