quarta-feira, 12 de maio de 2021

sobre a criança e as três metamorfoses em Nietzsche

 

Durante a ditadura militar os milicos ordenaram que se retirasse a filosofia e a sociologia no ensino dos jovens. Os inimigos do pensamento sabem muito bem que nada há de “inútil” nessas disciplinas. Mas eles interferiram também na outra ponta do ensino, retirando Nietzsche e Marx como tema para ingresso nas Pós-Graduações de filosofia.

 O caráter “subversivo” da filosofia é trabalhado muito bem no curta  “Meu amigo Nietzsche”. O filme mostra a amizade que nasce entre uma criança e o filósofo, entre a criança e a descoberta do que há de mais potente nela mesma.

Não por acaso, a “criança” é uma das personagens mais importantes no pensamento de Nietzsche, que dizia  poder  o homem  passar por três metamorfoses : a do burro ( ou “camelo”), a do leão e a da criança.

O burro é aquele que diz “sim” ao que está dado: ele aceita, passivamente, os valores estabelecidos. Sua forma de aceitação é “dar as costas” para carregar. É assim que o burro se sente “útil” : carregando o peso que em suas costas colocaram. Todos nascemos mais ou menos burros, pois carregamos , desde a infância , os valores de um mundo que já achamos pronto, dado. Quando o poder  diz que só se deve ensinar às crianças tabuada e gramática, e nada de artes e filosofia, o que ele quer é manter submissos seus carregadores também no futuro.

O leão pode nascer do burro quando este sofre uma metamorfose, aprendendo a dizer “Não”. Ninguém sobe no dorso de um leão: ele  vê em tudo uma jaula onde querem prendê-lo. O leão  é ferozmente  crítico e cético, imaginando que ser  potente é negar . O leão pode mais do que o burro,  porém  é incapaz de criar , pois para criar é preciso crer. E o leão em nada crê.  O leão imagina que  crer é ser como o burro que ele já foi. Do leão pode surgir nova metamorfose:   a criança, aquela que redescobre a força do “Sim”.

 Pois o Sim da criança não é como o sim alienado  do burro. O Sim da criança sobreviveu ao não do leão, o incorporou como crítica, porém vai além dele, tornando-se afirmação de uma  potência criativa . A criança não carrega, como o burro; nem ruge e ameaça, como o leão. Ela libertou-se de todo peso, corre e dança, e há nela uma força mais poderosa que a dos dentes e garras.

O burro é refém dos valores do  presente que o esmaga e aliena; já o leão nasceu quando este presente virou passado que o leão não quer mais que se repita. Mas a criança é , ao mesmo tempo, metamorfose no presente e libertação do passado em razão de uma  crença ativa  no futuro , uma “linha de fuga”, como criação de novas possibilidades para a vida, a despeito das forças obscurantistas que ameaçam retê-la. Não se trata de otimismo ou esperança:  “Só podemos destruir sendo criadores.”(Nietzsche)






O filme tem vários detalhes muito sutis compondo sua narrativa. Um deles é o nome da autoescola que está no cartaz que o menino lê  : "Freud" ,  o nome da autoescola.  De certo modo, aprender a ler o inconsciente ensina a "dirigir" a vida, e Nietzsche é uma das influências de Freud. Quando o menino potencializa sua escrita e pensamento   a partir da leitura de Nietzsche, ele se encontra na sala de aula com a professora, e no quadro está o desenho a giz ( feito por ele?) de dois corações, cada um com o seguinte nome dentro : Rée e Lou. O primeiro nome é uma referência ao poeta Paul Rée, amigo de Nietzsche, e o outro é o primeiro nome  de Lou Salomé, grande filósofa e pensadora  que namorou Rée. Há uma cena do filme onde também aparece o nome  "Salomé" escrito em um  muro, e perto desse muro há uma carroça que lembra uma famosa foto onde aparecem os três: Nietzsche, Rée e  Lou Salomé. Na foto,  Lou Salomé está  com um  chicote na mão. Isso explica certa passagem na obra do filósofo  muito mal interpretada por leitores apressados, passagem esta na qual Nietzsche diz: "vai estar com as mulheres? Não se esqueça do chicote...". Mas o chicote não é para a mão do homem , como erradamente se interpreta , e sim para a mão da Mulher-Lou-Ariadne  : o chicote como crítica ativa e necessária ao falocratismo  da moral do homem.




“Super-homem” é uma tradução inadequada para o que Nietzsche chama de “übermensch”, uma vez que  diz o oposto do que Nietzsche quis dizer. “Übermensch” não é o homem ainda mais forte e com poder. Pois “über” tem o sentido daquilo que está “acima” ou “além”. Mas não acima como o teto está acima  ou além do chão , ou o  céu acima e além  da terra. O “acima-além” que “über” expressa é como a borboleta que está acima da lagarta, indo além dela em potência  : como realidade nova que está além-acima enquanto metamorfose ou superação  nascida. Assim, a melhor tradução é “Além-do-homem”.


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