domingo, 9 de junho de 2019

o passarinho à toa


Eu tinha uns 5 anos quando aprendi a ler,  foi  uma das maiores alegrias que senti na vida. Havia uma vizinha professora que alfabetizava na casa dela. Lembro-me que no  quintal dela havia um viveiro com vários  passarinhos, e o canto plural deles também era  lição  que eu  gostava de ouvir. A professora   me ensinou  primeiro o nome de cada letra. Depois ensinou que cada letra podia, ao se encontrar com outra, formar um novo ser: a sílaba. Então eu aprendia  que “b” com “a” formava “ba”; e que “l” com “a” formava “la”. Mas quando eu via a palavra “bala” escrita no papel, na verdade não a via, pois eu não conseguia ver o nome : via apenas as letras isoladas ou então as silabas “ba” e “la”.  Embora a palavra estivesse escrita no papel, ela ainda não estava escrita dentro de mim. Eu via apenas fragmentos, ou a união destes, mas não via o todo.
Houve uma noite em que eu  folheava  um gibi na cama antes de dormir.  Eu ia das letras às sílabas, e mais longe não ia. De repente, sozinho,  saltei um abismo: diante dos meus olhos eu vi, enfim, mais do que o “ba” e o “la”. Eu vi a palavra “bala” escrita no gibi. A palavra  sempre estivera lá, fora de mim, escrita no papel. Mas agora ela estava também em mim, como corpo de uma ideia. A palavra não pertencia apenas  ao papel agora , ela pertencia ao meu pensamento  , como instrumento de exploração do mundo. Depois da primeira palavra, passei para outra, e depois outra, e outra...Eu estava com tanta alegria que corri até minha mãe para mostrar que aprendi a ler. Vi nos seus olhos que ela não entendeu tanta alegria. Aliás, nem eu entendia ( só compreendi essa alegria quando estudei filosofia e aprendi o que era a alegria para Espinosa). Fiquei com medo de ir dormir e esquecer o mundo que descobri, mundo este que estava dentro e fora de mim. Acabei adormecendo com o gibi na mão... Sonhei que a Mônica e o Cascão, os personagens do gibi, eram passarinhos que cantavam na minha mão. Assim que acordei reabri o gibi. E com alegria percebi que eu ainda conseguia, lendo, ouvir o que a Mônica e o Cascão diziam para mim. E é essa mesma alegria que reencontro quando leio versos como este de  Manoel: “Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar”.



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