quinta-feira, 27 de setembro de 2018

introdução à filosofia


                                                  INTRODUÇÃO À FILOSOFIA[1]
                                                                                             

                                                                                                   Serás menos escravo do amanhã,
                                                                                                      se te tornares dono do presente.    
                                                                                                                                                                                                                            Sêneca

O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia,
 e significa que a filosofia não pode contentar-se
em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceitual.

Gilles Deleuze

Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;
mais importante do que o filósofo é o poeta.

Gilles Deleuze

                                 
1. Questão preliminar: o que é a filosofia?  

Dar uma definição rápida do que significa a filosofia não é tarefa fácil. Oriunda do grego, a palavra “filosofia” nasceu da reunião de duas outras palavras: “philo” e “sophia”. “Philo” significa tanto “amor” como “amizade”. Isso quer dizer que a filosofia não é prática apenas  intelectual ou racional, pois ela se nutre também de uma dimensão afetiva, expressa exatamente pelo termo “philo”. Deleuze afirma, por exemplo, que a filosofia não é apenas Conceito, ela também é Afeto (este termo não significa a mesma coisa que o mero sentimento   ). Espinosa ensina, por sua vez, que a filosofia é prática que se faz na Alegria. Outros, como Kierkegaard, Heidegger e Sartre, enfatizam o afeto da Angústia. Há ainda Aristóteles, para quem a filosofia começa na Admiração. Nunca, absolutamente nunca, algum filósofo ensinou que a filosofia pode nascer do ódio, da covardia, do medo ou da intolerância. Ao contrário, a filosofia é um esforço para se tentar vencer essas “sombras”, como diria Jung, ou essas “tristezas”, nas palavras de Espinosa. E é antes de tudo naquele que filosofa que a vitória deve anunciar-se primeiro.
O filósofo não é apenas aquele que domina a prática teórica e metodológica de definir conceitos, ele também é aquele que se afeta pelo que “dá a pensar”, e o que dá a pensar nem sempre pode ser explicado por conceitos. Nem sempre o que dá a pensar já está pensado e definido em livros e teorias. Um filme, uma música, um gesto, uma paisagem, um poema, um acontecimento...também dão o que pensar, ou podem dar o que pensar. Mas nada dá tanto a pensar do que a própria vida.
“Sophia” significa “sabedoria”. Assim, uma definição simples e geral da filosofia seria: “amor ou amizade pela sabedoria”, “afeto pela sabedoria”. Visto dessa maneira, o filósofo não é apenas amigo da sabedoria, ele não é apenas um intelectual, ele também é um ser que, como diz Espinosa, cultiva uma paixão alegre  .  O filósofo se mostra filósofo não apenas falando ou escrevendo, ele deve mostrar-se filósofo igualmente, e sobretudo, agindo. Segundo Cícero, o mero sofista busca a retórica das palavras, almejando persuasão; já o filósofo/sábio se exercita em outra retórica: a das ações, cujo objetivo é a compreensão.
“Sophia” não é só teoria, fórmulas, razões. Ela também é Vida, Arte, Poesia. São a essas coisas que o filósofo dedica Afeto. Para Deleuze, não há filosofia sem um modo de viver filosófico, sem um modo de vida. Um modo de vida filosófico não significa uma vida erudita mergulhada em livros, nem um tipo de vida que, para ser vivida, necessita de um título filosófico auferido pela academia.
Além disso, há uma diferença entre a filosofia e o filosofar. Heidegger, por exemplo, afirmava que a filosofia existe desde a Grécia. Porém, o filosofar, enquanto pensar, inaugurou-se na aurora da filosofia, entre os pré-socráticos. Nestes pensadores, o pensar foi exercido de forma múltipla, mais intuitiva do que sistemática.  Depois adveio o seu ocaso com Platão e, desde então, “velou-se”. Para a prática do pensar retornar, pensava o filósofo alemão, é preciso reviver a experiência da “origem”, como a viveram os pré-socráticos, e compreender que o pensar somente se anuncia em uma linguagem que nasça da experiência do Ser como Criação, Poesia. O Pensar é experiência com a aurora dele mesmo.
A filosofia é uma disciplina com sua história, metodologias, temas. O filosofar é uma ação feita não apenas pelo filósofo. Por exemplo, quando alguém, em uma situação cotidiana, emite um juízo acerca da beleza ou ausência de beleza de uma canção que ele ouve no rádio de seu carro, sem que saiba ele está filosofando ou tentando filosofar, pensar, uma vez que ele está emitindo um juízo de gosto. O gosto é um tema da Estética. Se outro homem ao ler o jornal lamenta a ausência de caráter dos políticos, tal homem também está a filosofar, pois ele indaga acerca do caráter. Em grego, “caráter” se diz “ethos”. A ética, enquanto disciplina filosófica, tem na ideia de caráter o seu grande tema (de Aristóteles a Kant, passando por Espinosa). Em geral, quando o senso comum imagina o que é a filosofia, ele costuma identificá-la apenas com uma parte dela: a metafísica. Mas linguagem, justiça, poder, potência, amor, desejo , Deus ( enquanto objeto da teologia racional ou natural)...são temas que podem suscitar o indagar filosófico.
Sócrates inaugura a atitude filosófica indo debater na praça, em meio ao povo, esses temas. Sócrates buscava , com a filosofia, mudar a propensão dos homens em não questionarem suas opiniões ( esse não questionar-se está na base do que Sartre designa “consciência irrefletida”). Para lutar contra inimigo, pensava Sócrates, é preciso ir enfrentá-lo onde ele mora: a praça. Sócrates é o acorrentado que se liberta, sai da caverna e depois retorna para tentar fazer com que os outros acorrentados tomem consciência de que estão acorrentados e retirem o grilhão com a própria mão, pois o tomar de consciência,  enquanto prática de autonomização, é ação que um outro não pode fazer por nós. O parteiro ajuda no ato de parir, mas a consciência que nasce pertence àquele a quem ele auxiliou a nascer.
 De Platão a Deleuze, o inimigo do pensamento é a opinião, a doxa. É Platão que, de certa maneira, afasta a filosofia das praças, reservando o filosofar exclusivamente para aqueles que também soubessem medir, contar, enfim, matematizar. Sabe-se que  Platão afixou à entrada da Academia a seguinte ordem: “não entre aqui quem não for geômetra, mas  também não entre aqui quem só for geômetra”. Esse isolamento da filosofia em relação ao filosofar nasceu exatamente com esse nome: Academia . Este foi o lugar construído por Platão para ser o templo de uma nova divindade: a  Deusa-Razão. Muitos séculos depois, Nietzsche chamará essa Deusa-Razão de um Ídolo construído por Platão para se proteger da multiplicidade, da contradição, da mudança, enfim , da Vida. Nietzsche inclusive opta por filosofar através de uma linguagem não acadêmica, mais próxima da alegoria poética do que da sistemática conceitual. Não obstante, ele não é menos filósofo do que o sistemático e conceitual Kant. Em O crepúsculo dos ídolos, Nietzsche afirma que o filósofo autêntico sempre tem na mão um “martelo”, que é a crítica que ele deve endereçar a “esses Ídolos” . Segundo Francis Bacon, a quem Nietzsche toma de empréstimo o termo, Ídolo é algo que, no âmbito do conhecimento,  ao invés de fazer o homem pensar, leva-o apenas a cultuar ou adorar. O culto ou a adoração são justificáveis no campo religioso, porém se tornam danosos quando trazidos para a prática do pensamento filosófico, que sempre tem de ser crítico e livre. “Crítica” provém do termo grego “krisis”: capacidade de julgar, discernir ou avaliar.
Sophia também pode ser um nome próprio. "Sophia", ou "Sofia", é o belo nome que muitos pais escolhem para chamarem a quem trazem à vida. Por outro lado, “Teoria” é tão abstrato que alguém vivo não se deixa chamar assim, tampouco pode ser o nome de alguém “Razão” ou “Ciência”. Não dá para imaginar alguém se chamando “Razão”! (embora muitos imaginam encarná-la e serem donos exclusivos dela...).
 Tal como uma pessoa , a sabedoria só atende se for chamada pelo seu nome. Se alguém a chamar apenas de "razão" ou "ciência" ela não atenderá, ela não virará seu rosto para quem assim a chamar, mesmo que grite, mesmo que, com poder, ordene. Mas assim como uma pessoa é mais do que seu nome, a sabedoria é mais do que sabedoria, ela também é generosidade, coragem, modéstia, invenção.
Platão, São Tomás e Espinosa destacam ainda outro nome para a sabedoria: fortitudo, firmeza ( que é o oposto da volubilidade). Em A República, Platão afirma que a firmeza, ou fortaleza, é a virtude daqueles que defendem , com coragem, a cidade. E sem a defesa prática da cidade não pode haver atividades contemplativas. A cidade em questão não é apenas a física , pois a cidade externa é reflexo da cidade interna que a própria alma é. Espinosa torna ainda mais filosófico o tema, e diz que a fortaleza é firmeza para consigo e generosidade para com o outro, ao passo que a fraqueza  é rigidez no julgamento para com  o outro e generosidade complacente  apenas  para consigo. Enfim, é na prática das virtudes  que se pode reconhecer também a sabedoria. Um homem que exerce a virtude da justiça realiza, de forma prática, a sabedoria – mesmo que ele nunca tenha lido a Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e conhecido teoricamente a definição do que é a justiça. Ao contrário, alguém pode conhecer todos os livros de ética que definem o que é a justiça, porém nada de justo haver em suas práticas. Tal homem é, quando muito, um erudito, não um sábio.
A principal diferença entre a sabedoria da filosofia e o conhecimento da ciência  repousa no fato de que todo conhecimento científico  pressupõe um objeto. Por exemplo, nosso corpo pode ser objeto de conhecimento da Física, da Biologia, da Química, da Medicina, etc. Cada ciência faz um “recorte” sobre nosso corpo, para assim torná-lo objeto de conhecimento.  Ao fazer isso, a ciência perde de vista o todo, já que nosso corpo não é apenas uma realidade física, biológica ou química, mas a reunião disso tudo e mais outras coisas. Sartre chega a dizer que é o corpo do outro que possui órgãos que podem ser tratados como se existissem em separado do ser inteiro de alguém.  Todavia, quando vivo meu corpo, o sinto como a expressão tangível de meus desejos, de meus projetos. Ou seja, o corpo é parte de um todo que não é apenas corpóreo.
Ao realizarmos esse tipo de afirmação, buscando assim o todo , entramos sem dúvida na filosofia...Ou melhor, nos damos conta de que nunca podemos sair dela. A ciência disseca a realidade em partes separadas e estanques, criando assim um conhecimento especializado, a filosofia une e liga cada parte ao todo. Este todo não é um todo fechado à maneira de um círculo. Se o fosse, não seria o todo, seria  tão somente  um conjunto, um  conjunto de coisas. E um conjunto de coisas também pode ser um objeto de estudo da ciência. Em grego, chama-se “holos” esse todo buscado pelo saber filosófico. Sartre conclui O ser e o nada nos dizendo que a consciência e o mundo formam um “holos” . De holos procede holismo, que é a tentativa de ver matéria e espírito como duas expressões diferentes de uma mesma realidade.
Durante o século XIX, no auge do positivismo, muitas dessas ciências supracitadas não apenas desconsideravam a filosofia, como também afirmavam que ela não possuía nenhuma serventia para a humanidade. Imperava a ideologia cientificista (que Machado de Assis, no livro O Alienista, ironizara tão bem). Munia essa ideologia   o “reducionismo”. Ou seja, cada ciência achava que o objeto por ela estudado não era uma parte da realidade, mas a realidade inteira. Assim, os químicos achavam que tudo podia ser explicado quimicamente (inclusive os sentimentos humanos). Os biólogos, por sua vez, achavam que todo comportamento humano, inclusive aqueles considerados os mais nobres (como os comportamentos morais e éticos) , nada mais eram do que o efeito de condicionantes biológicos. No direito, por sua vez, esse reducionismo marcou o surgimento do positivismo na França, quando a lei escrita, posta pelo Estado, passou a ser considerada a única fonte de direito, tornando-se depois, o positivismo, uma ideologia. Radicalizando essa visão, Napoleão retirou o ensino de filosofia nas faculdades de direito da França.
Todavia, mais do que fazer de uma parte a verdade do todo, o que tal procedimento positivista fazia era tomar uma parte como um todo à parte. E o mais absurdo nos reservava o século XX, quando uma parte da filosofia, a Lógica, passou a pretender ser a filosofia inteira: tudo aquilo que não era lógico foi considerado palavra vazia sem sentido. Os positivistas lógicos, por exemplo, para ironizarem a “inutilidade” da metafísica, costumavam exemplificar tal inutilidade com frases tiradas de  Heidegger ,  como a célebre  “o nada nadifica”. Mas talvez não exista nada mais sem sentido do que a loucura, a loucura racional, de uma lógica que queira, enquanto parte, ser o todo... “Uma razão insone engendra monstros”, ensina-nos Shakespeare .
Se a sabedoria da filosofia não possui objeto, no sentido em que o conhecimento da ciência o possui, então o que exatamente a filosofia estuda?A filosofia enquanto sabedoria espelha intimamente as principais atividades da alma humana.  Esta possui quatro atividades principais: pensar, conhecer, agir e sentir. O conhecer é atividade realizada pela razão enquanto logos ou  inteligência ( em seu sentido mais amplo); o agir, por sua vez, é uma atividade exercida pela vontade; enquanto o sentir é uma atividade realizada pela  parte de nossa alma designada como desejo  (ou sensibilidade). Razão, vontade e desejo são faculdades da alma humana. O pensar é uma atividade ou potência exercida pelo pensamento ( em grego, “nous”).Assim, pensar não é a mesma coisa que conhecer. Por exemplo, conhecer o direito é uma atividade que diz respeito à Ciência Jurídica. Mas pensar o direito é uma atividade exercida no âmbito da Filosofia Jurídica. Conhecer a vida é atividade da Biologia, ao passo que pensá-la cabe à Filosofia da Vida. Por isso, o pensar não é atividade de uma faculdade específica, uma vez que ele é uma atividade, um processo, que concerne à alma como um todo em relação consigo mesma e com o mundo.
A parte da filosofia que trata do conhecer chama-se Epistemologia ( ou Teoria do Conhecimento).A epistemologia é a parte da filosofia que interessa principalmente às ciências na medida em que estas procuram refletir sobre os seus métodos e procedimentos. O “objeto” da epistemologia é o próprio conhecer (enquanto atividade das ciências), e não o objeto que cada ciência isolada estuda. Assim, embora a filosofia também exerça um tipo de conhecimento, este difere daquele exercido pela ciência.  Enquanto o conhecimento, na ciência, aplica-se a um objeto, o conhecimento que a filosofia realiza se aplica sobre o próprio conhecimento da ciência, estudando principalmente como ele ocorre e quais suas bases e métodos. E é nessa questão do método que vemos surgir epistemologias as mais diversas, até mesmo conflitantes, pois não existe apenas um único método, e sim métodos distintos. Algumas filosofias priorizam a indução ( os empiristas), outras a dedução ( os racionalistas), e há ainda as filosofias que dizem que tudo começa na contemplação, e há outras filosofias ( como a de Bergson) que fazem da intuição o coração da atividade filosófica; e há ainda Leibniz, que propõe a abdução como método ( Deleuze, dando à abdução um sentido um pouco diferente, a coloca como processo imanente à prática criativa que a filosofia também é).
A Ética e a Moral são as duas disciplinas filosóficas  que se ocupam do agir humano.  Por isso, estas são as disciplinas da filosofia que mais interessam  à Economia, à Política e ao Direito, pois estas três ciências  estão intimamente associadas ao agir humano, ou seja, à vontade enquanto faculdade.
 O sentir é uma atividade da alma humana  estudada por uma disciplina da filosofia intitulada Estética . Alguns desdobram o sentir também em fazer. Em grego, fazer se diz “poiésis”, nascendo assim o termo poética. O fazer da poética não é o mesmo que o agir da ética. Nesta, trata-se do agir humano, ao passo que o fazer da poética concerne ao criar uma obra de arte. E aqui pode nascer uma questão decisiva: se a obra a ser criada é  a própria vida que se leva, surge então uma íntima relação entre a arte e a ética, entre a poesia e como agimos/vivemos, nascendo assim o que Foucault chamava de “estética da existência”, que é, na verdade, uma “poética da existência”. Aqui, não apenas o fazer e o agir se revelam como arte, como também o próprio pensar: este se mostra então como criação e produção de sentido para a vida .
Por tratar das maneiras e capacidades da alma humana de sentir, a Estética interessa principalmente às artes ( pintura, cinema, música, poesia, etc.). Desse modo, através da Estética  a filosofia realiza uma interseção com as artes. É por isso que podemos afirmar que a filosofia não está apenas nos livros de filosofia, mas também nos filmes, nas músicas, nas poesias e nas pinturas -  na medida em que essas artes , tocando a nossa sensibilidade, faz-nos também pensar.
 É preciso deixar claro que o pensar, o conhecer, o agir e o sentir não são atividades  estanques. Afinal, para agir, por exemplo, é preciso sentir. Por outro lado, muitos danos podem ocorrer quando agimos sem pensar. E quem pensa sem sentir não pensa verdadeiramente.
Na história da filosofia vemos os filósofos discordarem sobre qual atividade é a mais importante. Os racionalistas, por exemplo,   conferem total supremacia à razão e pouca relevância à sensibilidade. Por este motivo, eles acreditam que somente podemos conhecer algo de verdade se nos afastarmos de nossa sensibilidade.  Por outro lado, há filósofos que   tendem a dar maior importância ao desejo e à sensibilidade, denunciando os excessos da razão epistemológica.
 Conforme dizia o escritor Balzac, “quando a forma predomina, desaparece o sentimento”. Em nossa alma, a razão é a faculdade mais formal de todas. Daí seu perigo quando se confunde o pensar com o mero conhecer.
Então, através da Epistemologia a filosofia oferece elementos para as ciências compreenderem melhor seus métodos e procedimentos; por intermédio da Moral e da Ética a filosofia  estabelece um diálogo sobretudo com a Política e o Direito , fornecendo elementos críticos para se compreender tais atividades e estabelecer suas finalidades;  pela Estética ( e pela Poética)  a filosofia explora o mesmo território que as artes também exploram: a nossa sensibilidade. Mas de todas as atividades da alma a que mais caracteriza a filosofia é exatamente o pensar. O pensar é a mais importante atividade da filosofia justamente porque  ele não interessa apenas à filosofia, mas a todos enquanto conhecemos, agimos e sentimos.  Portanto, sempre que procuramos seja pensar o que sentimos, seja pensar como e porque agimos ou pensar o que conhecemos,  nesse esforço de compreensão se encontra  o filosofar. Pensar, enfim, é questionar.  A filosofia é a arte do questionamento. O Pensar é a atividade estudada pela Metafísica.

Os primeiros filósofos e a filosofia
O nome “pré-socráticos” expressa um conjunto heterogêneo de pensadores.O termo “pré” não significa que eles vieram exatamente “antes” de Sócrates no tempo. Ao contrário, alguns lhe foram contemporâneos. Assim, o termo “pré” designa uma visão da filosofia que toma Sócrates como referência e padrão.Outros ainda empregam  a expressão “pré-platônicos”, uma vez que tomam Platão como o início da filosofia.
É errada a visão que considera inexistir nos  pré-socráticos uma reflexão sobre o ser humano. Entretanto, a maior dificuldade  para a  reconstrução  dessa visão que eles possuíam do homem repousa na escassez de fontes. Poucos escritos dos pré-socráticos chegaram até nós. Sabe-se, por exemplo, que Demócrito , o atomista, teria escrito bem mais que Platão! Todavia, apenas fragmentos nos chegaram.
Segundo  argumentam Deleuze e Guattari no livro O que é a Filosofia? ( Editora 34), é com os pré-socráticos que surge, pela primeira vez, o termo “filósofo”. Este termo nasce  mais especificamente com Tales de Mileto. O filósofo veio ao mundo  antes da filosofia. O filósofo surgiu em um espaço “entre” o Ocidente e o Oriente, pois foi nessa área limítrofe das colônias da Grécia que o filósofo apareceu. Há algo do Oriente em Tales,isto é, há nele um tipo de sabedoria que não se apoia apenas em conceitos.Há nele a poesia, a alegoria, a linguagem simbólica – acompanhadas de uma intuição profunda, quase mística. Enfim, o filósofo também era, em seu berço, um poeta. Muitos pré-socráticos, até mesmo Parmênides, evocam as Musas para inspirá-los. Pitágoras, apesar de matemático, criara uma doutrina esotérica acerca da transmigração das almas, o que faz dele o primeiro filósofo a acreditar na imortalidade da alma .
A filosofia, sustentam Deleuze e Guattari,   nasceu um pouco mais tarde. A filosofia surgiu após já ter nascido o filósofo.  Enquanto este apareceu às margens da Grécia, a filosofia é fruto genuíno de Atenas, o coração do Ocidente. Para a filosofia emergir, foi preciso que o filósofo perdesse essa aura poética e mística,foi necessário que ele deixasse de ser um sábio:foi preciso que ele desse as costas para o Oriente místico.
A filosofia aparece  somente em Atenas, no auge da Grécia Clássica.A filosofia nasceu em um determinado meio político ávido por debates e disputas verbais. A Grécia de então era um meio atravessado por rivalidades de toda ordem. Nesse ambiente  era fundamental a constituição de associações. Nasce então  uma idéia muito especial de “amizade” que será considerada a base da filosofia. A filosofia seria um exercício dialogado entre aqueles que buscam a sabedoria tendo como elo uma forma muito especial, não privada, de amizade.Na Grécia Clássica, o filósofo se torna um “amigo da sabedoria”, um “amigo do conceito”. Enquanto amigo do conceito, o filósofo vai também  defender o conceito dos seus “falsos amigos”:os meros sofistas. Um amigo,um verdadeiro amigo,nunca faz seu amigo de meio para obtenção de coisas materiais. Segundo pensava Platão, os sofistas faziam da sabedoria um meio para obtenção de fama e dinheiro. Na verdade, então, eles não faziam sabedoria,mas”falsa sabedoria”, uma “aparência de sabedoria”. Sócrates, Platão e Aristóteles dedicaram boa parte de seus ensinamentos para refutar esses falsos amigos do conceito.
No Banquete, porém, Platão demonstra que o termo “philia” , presente em “philosophia”, não designa apenas “amizade”. “Philia” também significa , de forma mais profunda, “amor”. De maneira provocativa e sutil, Platão quer com isso dizer que o filósofo não é apenas um amigo do conceito: ele também é um amante do conceito, ele é um enamorado do saber. Enquanto “amigo do conceito”, podem aparecer rivais,como os sofistas.Mas como amante do conceito, o filósofo não tem rivais, uma vez que ele e a sabedoria formam uma unidade cujo elo é o amor. Aqui, Platão reata com certo misticismo pré-socrático de fundo pitagórico , no qual tinha grande importância a intuição silenciosa do Bem,isto é, daquilo que  a mera palavra não alcança (  mais tarde ,  Plotino e Santo Agostinho dedicarão belíssimas páginas a esse tema). Esse aspecto de amante da sabedoria dará ao filósofo uma condição de “estrangeiro”, isto é, de alguém que não se deixa determinar pelas convenções de uma determinada pólis. Sem dúvida, Sócrates é um personagem importantíssimo nos diálogos de Platão, talvez o mais  relevante.Todavia, importante também é o personagem apenas designado como “o estrangeiro”, isto é, aquele que porta uma fala que transcende ao estabelecido pelas leis e costumes que os homens estabelecem, de forma convencionada , em uma determinada pólis. Se a condição de “amigo” liga o filósofo aos homens, nascendo assim questões pedagógicas e políticas,  a condição de “amante” o liga ao divino que imortaliza sua alma, fazendo-a conhecer e viver a união amorosa com o Celeste.

Principais pré-socráticos
Apesar da diversidade de doutrinas que caracteriza esse grupo de filósofos, uma questão pode ser apresentada como sendo a característica geral dos pré-socráticos: a busca pelo Um. Diante da multiplicidade de aspectos que a natureza apresenta aos órgãos da sensibilidade, os pré-socráticos buscavam a unidade que tornaria essa multiplicidade pensável e inteligível. A esta unidade eles deram um  nome: arqué.Este termo grego possui uma rica carga semântica. Os principais sentidos atribuídos a arqué são: origem, princípio, comando e causa. Os pré-socráticos empregavam arqué no sentido de causa. Perguntar sobre a  arqué era indagar acerca da causa que gerou tudo o que existe.
Diante da multiplicidade de aspectos cambiantes que nossos sentidos testemunham, o pensamento se erguia diante dessa multiplicidade e fazia uma exigência: o Um, a arqué, a causa. A pré-socrática representou o primeiro momento de tematização de um problema que acompanhará toda a filosofia , de Tales de Mileto  a Deleuze: as relações entre o Um e o Múltiplo. Se o múltiplo constitui a realidade tal como ela se apresenta aos sentidos, alcançar o Um exige outro instrumento distinto da sensibilidade. Assim, emerge igualmente nesse período uma visão de que o homem é constituído por dois princípios: a sensibilidade, necessariamente ligada ao múltiplo, sendo ela própria múltipla, e o Logos, este igualmente Um, tal como a arqué. Assim, seria o Logos o instrumento que poria o homem em contato com a arqué, com o Um.
Os primeiros pré-socráticos estão ainda muito próximos da poesia. Há neles uma visão do caráter divino da natureza. Em grego, natureza é “physis”, palavra esta cujo sentido  se reporta ao processo de  “nascer” ou “brotar”. Mais do que se pautarem pela abstração dos conceitos, eles ainda se apoiam em imagens, apesar de já se fazer presente a exigência de racionalização comandada pelo Logos.
Tales de Mileto dizia que “tudo é água”. A água seria a arqué da qual tudo nasceu. Como ele chegou a essa posição? Após a chuva, ele percebia que a natureza se renovava ou renascia. Quando estão saudáveis, os olhos estão sempre umedecidos. Do mar vêm vários seres vivos. A placenta, que é o primeiro berço de todo ser vivo, é um reservatório de água. As fontes trazem vida aos desertos. Assim, onde está a água se encontra  a vida. Por outro lado, Tales  constatou que tudo o que morre e definha vai perdendo água e secando. A terra sem umidade se torna estéril. Enfim, Tales intuiu que a água é o princípio da vida. Então, existe a água visível em suas mais variadas formas. Mas existe ainda a água enquanto arqué ou causa de tudo o que existe. Esta água universal não tem um aspecto particular, e só o logos intuitivo a pode apreender. Ela não é doce ou salgada: ela é simplesmente água, a pura água que apenas o pensamento pode intuir e conceber.
Heráclito, por sua vez, afirma que o fogo é a arqué ou o  Um do qual tudo é feito. Este Um, no entanto, reúne nele o múltiplo, de tal modo que este Um é idêntico ao movimento, ao devir. O fogo nunca fica imóvel, e é por isso que ele também é a imagem do tempo. E é isso que diz o célebre fragmento de Heráclito: “Nós não podemos entrar duas vezes no mesmo rio”. Quando saímos do rio e retornarmos para entrar nele, suas águas já passaram, assim como nós mesmos já somos “outro”. Muda o rio e mudamos nós.Nada é, tudo devém,pensava Heráclito. “Devir” significa: “vir de novo”. Cada “momento” do devir é uma repetição, um re-venir. Cada momento do devir é uma repetição dele mesmo, que sempre se repete diferente, pois nunca ele é o mesmo, assim como as águas do rio do tempo.Segundo dirá Platão, ninguém mais que Heráclito compreendeu tão perfeitamente o mundo sensível, que sempre é regido pela mudança. Hegel, Nietzsche, Bérgson e Deleuze foram muito influenciados por essa intuição heraclítica do devir.
Mas por que as coisas mudam? Heráclito dirá: “não existe um porquê”(Aristóteles , por sua vez, responderá a Heráclito afirmando que as coisas mudam para realizar um fim: a forma). Heráclito dizia que há no devir uma “inocência” pela qual o devir constrói e destrói, tal como crianças que brincam de construir e destruir castelos de areia. Não raro, Heráclito  era visto observando crianças brincando e jogando. E a muitos ele dizia que aprendia mais com elas do que com os doutos. Para muitos, um obscuro. Para outros, o primeiro dos pensadores trágicos. Com Heráclito teria nascido o primeiro pensamento da imanência. “Imanência” provém de “i-manare”. “Manancial” se origina de manare. Manancial é a mesma coisa que “fluxo”. Assim, imanência é, literalmente, o que existe interior ao fluxo, ao devir, ao tempo. Por oposição, temos o vocábulo  “transcendência”. “Transcendência” é: “ir para além dos entes” ( no núcleo da palavra transcendência  existe o termo “ens”, “ente”).
Vale destacar outro pré-socrático: Empédocles. Ao invés de apontar para apenas um elemento como arqué, Empédocles nos diz que a causa de tudo são as quatro raízes e os dois princípios. As quatro raízes são: a água, o fogo, o ar e a terra. Os dois princípios são o Amor e o Ódio. O Amor é a Vida, ao passo que o Ódio é a morte. Sob o poder do Amor, as quatro raízes se combinam para gerar tudo o que existe, uma vez que tudo o que existe seria a união da água, da terra, do fogo e do ar. O ódio, por sua vez, é o princípio que dissolve o ser organizado e faz as quatro  raízes  voltarem a existir separadas. O ódio faz as raízes existirem sós. O ódio é a solidão. O ódio não destrói as quatro raízes, ele apenas desfaz os seres que nascem de sua união e composição. Além de realidades meramente físicas, Empédocles introduz Afetos (Amor e Ódio) na gênese do mundo. Estes afetos não estariam apenas no homem, eles não seriam tão somente subjetivos. Tais  afetos seriam também cósmicos e presidiriam, ao mesmo tempo, a vida dos homens e a vida do universo.
Outro pré-socrático importante foi Anaximandro. Com Anaximandro, o pensamento atinge graus de abstração nunca antes alcançados. Para este pensador, a arqué não é a água, o ar , a terra, o fogo ou a mera combinação deles. Para ele, a arqué não pode ser nada de determinado, pois tudo o que é determinado possui um limite, uma identidade. E tudo o que possui limites não é o todo. Assim, para ele  a arqué ou causa de tudo será chamada de ApeironA-peiron:o que não tem limites. Mas por que existem as coisas com limites, as coisas finitas? A resposta de Anaximandro introduz um elemento de julgamento moral: as coisas finitas existem por uma culpa. Todo ser finito que se separa do infinito o faz por uma culpa. Dessa forma, tudo o que é limitado, por isso mesmo, sofre. O sofrimento é a condição existencial de tudo o que existe separado. Anaximandro acreditava que a sabedoria seria um processo de reatamento com o que não tem limites, o que implicava em uma regra de vida que se libertasse do império das coisas limitadas. Por exemplo, bens materiais, por maiores que sejam, são coisas com limites. Todo apego ao limitado, seja o limitado das coisas ou o limitado do “ego” ( embora Anaximandro não empregue exatamente esta palavra tão moderna),  todo apego alimenta ainda mais a culpa e o sofrimento.  Por essa razão, impede a liberdade e o pensamento.
Por fim, existiu Parmênides.Para este filósofo , a arqué não é mais nada físico, tampouco a combinação de coisas físicas.A arqué também não é, para ele, algo que se assemelhe a afetos humanos.  A arqué, porém, também não seria o infinito, o que carece de fins. Para Parmênides, a arqué, a causa de tudo, seria o Ser. E o que é o Ser?A resposta de Parmênides é seca,lacônica, e já anuncia,firmemente, o princípio fundante da  lógica: o Ser é o Ser. O Ser é idêntico a ele mesmo. O Ser não devém. Quando a água devém nuvem, ela deixa de ser água para se transformar em outra coisa. Como pode algo deixar de ser?Aceitar o devir é aceitar um paradoxo:afirmar que o não ser é.Assim, pensava Parmênides, o Ser não se move, ele não muda: ele simplesmente É. Os sentidos nos enganam: eles não nos mostram o Ser, eles nos mostram apenas as aparências. Desse modo, existiriam dois caminhos: o da Verdade, caminho este que apenas a alma pode trilhar,  e o da opinião,que é o caminho no qual reinam as aparências e ilusões nascidas de vivermos apenas a vida do corpo. O caminho da Verdade  é o do Ser,ao passo que o da opinião é o caminho da mera aparência, isto é, do não ser. Com Parmênides são esboçadas  as primeiras exigências de um pensamento lógico, que posteriormente será desenvolvido por Aristóteles;em Parmênides também se dá início à célebre  distinção entre Essência e aparência, tema este que merecerá especial atenção de Platão, e que marcará, até hoje, o vocabulário da filosofia.

O nascimento da pólis
A arte  pode ser também um espelho que reflete não apenas a personalidade daquele que a criou. Ela também pode ir mais além, e expressar a sociedade e a época em que ela foi produzida. Daí a função pedagógica da arte,a sua “Paidéia”[1],que ensina não apenas sobre a sua especificidade enquanto obra de arte, como também sobre o mundo do qual ela foi uma expressão.
Como se sabe, a Grécia Clássica representou o período de surgimento da democracia e da filosofia. O principal fruto da democracia foi a pólis. Esta palavra costuma ser traduzida por “cidade”. Porém, existe ainda um sentido mais rico e pouco conhecido. Trata-se do termo   “organização”. Por exemplo, na palavra “própolis” encontramos esse sentido de pólis como organização ( pró-polis= a favor da organização,uma vez que a colmeia é uma organização). Assim, a pólis é mais do que algo físico ou urbano. A  pólis é uma organização  que envolve também um espaço mental[2]. O homem será, ao mesmo tempo, criador da pólis e criatura dela. O homem assim compreendido será chamado de “politikos”. Em português: cidadão.
O centro da pólis era designado como “ágora”. Esta era a praça pública. “Ágora” procede de “agon” , que significa “disputa”. A ágora era um local onde se travavam disputas. O instrumento de tais disputas não eram lanças ou espadas, mas a palavra. A palavra dialogada era a base do exercício do poder na democracia nascente.  Havia uma condição para que se pudesse usar tal instrumento: que o homem que a empregasse  fosse livre e proprietário. Em grego,”propriedade” procede de “oikonomia” ( “oikos” é “casa), de onde nasce economia. Desse modo, emergem a política e a economia como espaços que deveriam ser, no entanto, mantidos separadamente: o politikos não deveria buscar o poder político para obter favorecimentos em sua esfera privada e econômica. A palavra dita em praça pública, e da qual nasciam as leis, deveria ser expressão de sua vontade em agir pelo bem comum.Tal palavra não poderia ser   mero instrumento  de interesses econômicos  particulares. A palavra também não poderia ser veículo da passionalidade,uma vez que a palavra deveria servir à razão. Uma razão política, nascida do esforço para  domar a contingência.
Mas quando surgiu exatamente este homo politikus?Este homem difere daquele que viveu à época mitológica. O homem do período mitológico viveu em um período  no qual imperavam reis e triunfavam guerreiros , enquanto muitos viviam a condição de escravos, submetendo-se àqueles. Inexistia o homem livre,  tal como o concebemos. Isto porque não havia ainda, àquela época, a democracia. O centro da vida de então era o castelo onde morava o déspota, e não a praça pública do povo.Além disso, não havia ainda uma clara delimitação , e separação, entre o universo humano e o dos deuses.Mesmo o guerreiro justificava suas ações pela influência de alguma divindade.
Porém, entre o desaparecimento do  guerreiro e o aparecimento do  cidadão há um período de passagem e transformação. Esta transformação não envolve apenas a política, pois ela também implica uma transformação mental do homem. Assim como a poesia ( a epopeia) é o melhor instrumento para compreendermos a mentalidade do homem que viveu na Grécia mitológica, há  outra arte que desempenhará papel fundamental para compreendermos essa nova mentalidade humana que emerge com a democracia. A arte em questão é o teatro.  Hoje, mal percebemos a importância que já possuiu essa arte. Todavia, essa arte está na base de constituição do homem que passa a viver no período democrático. Este período exigirá do homem uma nova relação com suas ações. Estas não poderão mais evocar a influência dos deuses como co-autores. Doravante, o homem deverá assumir-se como responsável pelos seus atos. E foi no teatro grego que esse processo de passagem foi primeiramente tematizado. Dessa maneira, o teatro também constitui um fator de educação cívica do cidadão, pela qual ele aprendia a evitar os fatores que impediam que ele se assumisse como responsável pelos seus atos. Nasce, nessa época,o primeiro esboço de uma teoria da vontade humana [3] .

Os sofistas: o homem como o  metron de todas as coisas
Foi nesse ambiente de extrema valorização do indivíduo, e da palavra, que surgiram os Sofistas. A maioria deles veio de fora de Atenas.Por isso, não podiam exercer atividades políticas nesta capital da Grécia. A origem dos Sofistas se liga a Sicília, àquela época uma colônia grega. Nesta cidade um tirano foi deposto pelos cidadãos com a ajuda de um retórico chamado Córax. Este ajudou os cidadãos a como falar bem em público e defender suas causas diante dos juízes. Teria sido Córax o inventor da retórica. Ele teve um discípulo: Górgias. Este  deu à retórica outros fins, fins também comerciais. E foi com Górgias que nasceu o termo “sofista”, que a partir de Platão passou a ter um sentido pejorativo.
Com os sofistas, as questões cosmológicas são substituídas pelos temas antropológicos. O homem passa ao centro da reflexão filosófica. Protágoras , outro famoso sofista, resume bem essa atmosfera com o célebre pensamento: “O homem é a medida (metron) de todas as coisas: daquelas que são,na medida em que são, e daquelas que não são, na medida em que não são”.Platão,ao refutar os sofistas, dirá que apenas a Ideia pode ser a medida das coisas que se podem conhecer.
Filosoficamente, os sofistas inauguram o relativismo e perspectivismo enquanto visões do homem e do universo. Para eles, a verdade nada mais seria do que uma perspectiva que derrotou suas rivais. Eles, no entanto, eram apenas “professores”, já que não podiam exercer atividades políticas. Seus cursos eram procurados avidamente por todos aqueles que queriam vencer seus rivais em praça pública, e assim ver transformado em lei ,  e obedecido por todos, o que nascia apenas dos seus desejos e ambições. Como consequência, os preços das aulas subiram de tal modo que apenas os mais ricos podiam pagar. Assim, o poder econômico passou a preponderar sobre o interesse público, o que acarretou em um descrédito nas leis. Resumidamente: o caos passou a rondar a nascente democracia. E os sofistas passaram a ser perseguidos, presos e até mesmo expulsos. É nesse ambiente conturbado, política e eticamente, é nesse ambiente que surge Sócrates.

-Sócrates
Ao surgir, Sócrates teria sido confundido como mais um sofista. Inclusive, alguns inimigos de Sócrates, que são os mesmos inimigos da democracia, fizeram de tudo para manterem essa confusão até o fim , para assim tirarem proveito e condená-lo à morte,como de fato o fizeram.Mas os que se acercavam com sinceridade de Sócrates, e  o ouviam falar e questionar, estes de imediato  percebiam, não sem admirado  espanto,  que o grande dom da palavra que Sócrates possuía servia a outros fins, embora o próprio Sócrates dissesse que “apenas sabia que nada sabia”.
Entre aqueles que dele se aproximaram, havia um jovem que até então admirava os sofistas e pensava em seguir a carreira de autor de teatro. Esse jovem ainda se chamava Aristocles, mas passará à  história com outro nome:Platão. Sob o impacto do contato com Sócrates, o jovem Platão rasga seus poemas e decide se dedicar exclusivamente à filosofia (embora, até onde se sabe, nunca o velho Sócrates  teria exigido que o jovem  discípulo rasgasse poemas...).
Ao conhecer Sócrates, o jovem Platão descobre  seu caminho. Entre as muitas lições que ouviu de Sócrates, e que depois reproduzirá ( nem sempre fielmente...) em seus célebres Diálogos, uma delas merece destaque, pois essa lição também a aprenderá Aristóteles, e esta lição muito o influenciou na invenção da Lógica Dialética. A referida lição é a seguinte: “Para lutarmos contra a palavra mentirosa só temos uma arma: a palavra verdadeira”. A mera força bruta pode fazer calar a palavra mentirosa, mas não extirpa sua raiz da alma. Apenas a palavra que traz a verdade pode derrotar a palavra mentirosa . E a palavra verdadeira deve vencer a mentira à luz do dia, uma vez que a palavra mentirosa teme a luz. Ela vive da ardilosidade, da intriga e da dissimulação, uma vez que a movem interesses que vivem à sombra da razão. Assim, aquele que defende a verdade deve saber usar a palavra, pois aqueles que defendem a mentira só sabem usar a palavra, uma vez que carecem de ideias e virtudes. São as ideias e as virtudes que dão força à palavra que traz a verdade. Ou seja, o que torna as palavras verdadeiras vivamente poderosas é que elas não são apenas palavras ( flatus vocis).
Um fato marcante acerca de Sócrates é que ele dizia ouvir “uma voz interior”. Nele existiam ouvidos para ouvir essa voz que não era humana. Tomando de empréstimo uma expressão que já fazia parte da cultura grega, mas dando a ela outros fins, Sócrates  chamava essa voz interior como sendo a voz de um Daimon. Contextualizando esse termo com outro de nós mais próximo, a voz do Daimon seria a “voz da consciência”, a “voz da interioridade”. Sócrates ouvia essa voz e a  fazia de autoridade: era ela que pautava a sua conduta,e não os valores ( ou a falta deles...) dominantes. Essa interioridade que Sócrates descobre não era uma interioridade meramente psicológica. De forma mais profunda, ela era uma interioridade que o ligava ao Bem. É pelo interior que se alcança, alçando-se, o Bem.
Sócrates evocava a duplicidade de sentidos presente no termo “soma”. De “soma” nasce “somático”. “Soma” significa “corpo”. Mas “soma” também significa, em grego, “túmulo”. Sócrates explorava essa duplicidade do termo soma para indicar que o corpo era o túmulo da alma: quanto mais a alma vive apenas a vida do corpo, mais ela está como que  “morta”, morta em vida, morta para a vida do pensamento e para todos os frutos que ele pode conceber, como o fruto das virtudes; ao contrário, quanto mais a alma busca a vida que é dela própria,  mais ela se percebe eterna e ao Bem busca se unir.
Outro pensamento de Sócrates muito sábio: ”Conhece-te a ti mesmo”. Para ele, somente quem conhece bem uma coisa pode aperfeiçoá-la. Por exemplo,o bom sapateiro é aquele que conhece bem os sapatos. Por isso, o bom sapateiro sabe não apenas consertá-los, ele sabe igualmente  aperfeiçoá-los. O fim maior de todo conhecimento é o aperfeiçoamento. Assim, conhecer a si mesmo é aperfeiçoar a si mesmo. Sabe-se quem se conhece  pelo esforço que  faz para aperfeiçoar-se. O ignorante,ao contrário,já se acha perfeito, e é por isso que não busca verdadeiramente conhecer-se. O bom sapateiro conhece a essência dos sapatos, e é por isso que ele é capaz de melhorar os sapatos em suas existências imperfeitas. Se todo conhecer é um aperfeiçoamento, este aperfeiçoamento é praticado em razão de algo que já existe perfeito, e que funciona como modelo. Este ser perfeito é o Bem, modelo de todo aperfeiçoamento.    Conhecer a alma é, também, conhecer quem a fez. É o Bem o produtor da alma. E conhecer o Bem é fazê-lo. Sabe o que é o Bem quem o faz, pois o Bem não é matéria teórica,mas prática.
Dessa maneira, as preocupações de Sócrates versam quase que exclusivamente sobre o plano ético-moral.  É Platão que dará um estatuto epistemológico e ontológico às palavras que ouviu do seu mestre. Platão transformará em sistema aquilo que em Sócrates era vida e ação.




[1] Para saber mais sobre o assunto: WERNER, Jaerger. Paidéia: a formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes,2001.
[2] A esse respeito: VERNANT, Jean-Pierre. “O universo espiritual da pólis”, As origens do pensamento Grego.Rio de Janeiro: Difel, 2002.
[3] Em termos estritos, a doutrina das faculdades humanas somente pôde  estabelecer-se quando a filosofia se debruçou sobre o Sujeito, fato este que caracteriza a Filosofia Moderna. No entanto, em termo lato , amplo, já existe desde os gregos , ainda que em esboço, uma tematização  de que o homem é dotado de determinadas atividades, que posteriormente serão conhecidas como “faculdades”. O principal texto a esse respeito é: VERNANT, Jean-Pierre. “Esboços da vontade na tragédia grega”. In: Mito e tragédia na Grécia antiga. Tradução Anna Lia A. de Almeida Prado, Filomena  Yoshie Hirata Garcia e Maria da Conceição M. Cavalcanti. São Paulo: Perspectiva, 1999.



Referências:
BORNHEIM, G.Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998.
NOGARE, P. Humanismos e anti-humanismos.Petrópolis:Vozes, 1979.
VAZ, C. Antropologia filosófica I. São Paulo: Edições Loyola, 1995.
Filme sugerido:                                                                          
Sócrates, de Rossellini.





[1] Versão ampliada de capítulo de livro escrito pelo prof.

Nenhum comentário:

Postar um comentário