domingo, 25 de junho de 2017

o apóstolo da ideia

Um professor de filosofia nunca deve comportar-se como um “Profeta”, isto é, como alguém que imaginativamente, passionalmente, anuncia “Verdades” sobre o que virá, e que apenas ele sabe o que é preciso fazer para essa Verdade advir. Em geral, os Professores-Filósofos-Profetas exigem “obediência  acrítica” ao que  ele profetiza como condição de advinda da Verdade que ele “ensina”. E essa obediência não é para começar quando advir a Verdade que ele anuncia, ela deve começar agora, já, mesmo que nenhum sinal indique que advirá o que ele profetiza. Porém,  não há nenhum sinal de autêntica filosofia nesse profetizar: ao contrário, esse profetizar nada mais é do que  um adiar da autêntica filosofia.  Os mais obedientes ao professor-profeta serão recompensados ( com notas, iniciações, estágios...ou ao menos terão o privilégio de não receberem seu ódio e vingança, pois em geral os Profetas vivem mais a odiar , paranoicamente, aqueles que não acreditam em suas profecias-verdades-aulas  do que amar os que o seguem). Sobretudo, o que um professor-profeta mais odeia, é outro professor-profeta, cujas verdades se detestam, competindo e rivalizando, de tal modo que o ódio os une.
Tampouco um professor de filosofia deve  querer-se um “Messias”, aquele que vai “salvar”, que se crê a própria Verdade: somente ele ensina a filosofia, mais ninguém. Em geral, o professor-Messias cita poucas fontes além de si próprio: não menciona outros filósofos, não emprega comentadores ou outros apoios para sua fala. Mesmo que ele não critique ou menospreze outros filósofos diretamente, a sua fala egoicamente exclusiva , que porta apenas a ele mesmo, já é um menosprezo da alteridade e diferença . Professores assim não querem ensinar, querem ser imitados, inclusive no ódio e no zombar de tudo o que não seja eles. Eles não formam educandos, eles querem discípulos, mesmo que medíocres.
Um professor de filosofia deve assemelhar-se a um apóstolo. “Apóstolo” significa: “aquele que porta uma ideia, e a comunica”. O apóstolo comunica a ideia que já está nele, ele não anuncia a advinda  de uma ideia em um futuro incerto. Ele também não se diz a própria ideia, ideia exclusiva que somente ele é. O professor de filosofia deve ser aquele que comunica e afeta a partir da ideia que o afetou, singularizando-o. Essa ideia não é apenas uma ideia intelectual ou teórica, essa ideia é a própria vida, a vida como ideia que torna viva a nossa alma-ideia. Vida esta que não está apenas nele, mas diferencialmente em todos.
Profetas ambicionam falar a muitos, quantitativamente; apóstolos falam sempre ao que há de único em cada um , mesmo se o ouvem muitos. A ideia que não tem apóstolos vive apenas nos livros, como ideia teórica. E aqueles que falam dela apenas teoricamente, são mercadores de livros ou fórmulas, não são apóstolos de ideias. O apóstolo é mais do que um intelecto que fala, pois nele também há imaginação e poesia. Sem isso, não há pedagogia.
Sobretudo, nenhum filósofo é um messias. Messias somente o pode ser a ideia que liberta a vida que há em nós. Assim, todo autêntico filósofo é, em verdade, um apóstolo. Platão se quis o apóstolo da Forma, Aristóteles o foi da Substância, Descartes se queria o apóstolo do Ego, enquanto Kant se apresentava como o apóstolo da Razão Pura...Deleuze se afirmava apóstolo da Diferença, ao passo que Heidegger se propunha o apóstolo do  Ser.  Nenhum deles se colocou como profeta, tampouco como messias. Geralmente, tais pretensões proféticas ou messiânicas são encontradas naqueles que nada têm de filósofos, embora posem como tal, sobretudo quando há o holofote da mídia ou quando está em jogo as benesses da academia...
Na verdade, o profeta é aquele que afasta a ideia-messias, afastando-a dele primeiro, talvez por ódio ao pensamento, ao passo que o messias é uma espécie de apóstolo de si mesmo, talvez por ódio ao pensamento dos outros. Por outro lado, a ideia autêntica  nunca é aquela que  um profeta anuncia , tampouco pode ela ser posse exclusiva de alguém que se diga filósofo-messias.  Que fique claro também que estamos empregando esses termos conforme uma tipologia filosófica[1], nada tendo a ver com sua configuração religiosa, embora filósofos que se pretendam profetas ou messias estão mais a fazer seitas do que escolas.
Mas de todo o apostolado que  constitui a filosofia,  talvez ninguém tenha sido mais apóstolo de forma mais  potente do que Espinosa, isso porque seu “messias” é a própria Ideia Infinita, o Absolutamente Infinito, que nos torna apóstolos sobretudo da alegria, e não da angústia ou da morte. Um autêntico apóstolo  não o é  apenas enquanto fala, mas sobretudo enquanto age.















[1] Esse emprego das noções de “imaginação-profeta” e “imaginação-apóstolo” se encontra no livro Espinosa e o problema da expressão, de Gilles Deleuze, que aqui retomamos, ampliando-lhes o sentido.

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