domingo, 20 de agosto de 2023

Manoel de Barros: a visão fontana

 

Segundo  Manoel de Barros,  poeta não é exatamente quem faz rimas e versos, poeta é quem possui e exerce uma  visão fontana, uma visão que é fonte para a gente potencializar ainda mais o nosso ver.

“Fontana” é a qualidade de tudo o que é fonte, seja fonte de água ou de ideias, e “fontanejar” é a maneira que toda fonte tem de sair de si e se doar, generosamente : “A cisterna contém, a fonte transborda” (Blake).

 A visão fontana não é uma visão que constata o meramente dado; ao contrário, ela é uma visão que vê , antes, o sentido enquanto  alma viva das coisas, sobretudo daquelas que ainda não existem e precisam ser ousadas, criadas, aprendidas e ensinadas.

As águas que nela  fontanejam a  fonte as sorve do chão. Porém, antes de estarem sob o chão,  essas mesmas   águas já estiveram, outrora, no céu  : elas foram gotículas suspensas no alto da atmosfera , e depois caíram  como chuva que entrou pelos poros da Mãe-Terra.

Essas mesmas águas fontanas  também  já circularam no interior dos animais, como sangue e suor ; elas foram igualmente  fluxo de primavera quando a neve no pico das  montanhas   derreteu; essas águas fontanas  já foram orvalho nas flores, seiva nos troncos e ,nos frutos, o doce sumo; elas já foram lágrimas de dor, lágrimas de alegria; e envolvendo e protegendo o feto, essas mesmas águas já foram líquido vital  no interior da placenta.

Um dia tais águas fontanas sustentaram a Terra, como nos faz crer Tales, o pensador originário; e Cristo fez delas vinho, o sangue de toda festa; e é nesse fluxo de vida sem limites  que nada e mergulha, livre, a indomável Moby Dick.

E todos, insetos e humanos, flores e animais, até mesmo a Terra, todos bebem dessas águas fontanas para se manterem vivos.

É esse fluxo que se metamorfoseia e enche de vida tudo ( como a Natureza Naturante de que fala Espinosa) ,  é essa Vida transbordante  que o poeta vê e sente , primeiro nele, para fazer com que a palavra por ele fontaneje e seja como água fértil para os que têm sede de vida potente.

Enfim, como também ensina o pensador-escritor argentino Julio  Cortázar: “Há um estado de intuição para o qual a realidade, seja ela qual for, só pode ser formulada poeticamente, segundo modos poemáticos;  e isso porque a realidade, seja ela qual for, só se revela poeticamente”.




 



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