sábado, 26 de agosto de 2023

Acalântis

 

Acalântis era uma jovem que desafiou as Musas, deusas das artes ( “Musa” significa: “conhecimento que vem das artes”). O desafio não foi por mera vaidade ou pretensão. Acalântis não as desafiou xingando ou ameaçando, ela as desafiou cantando.

Toda criação artística potente é um desafio que o artista lança à arte e a si mesmo, para assim reinventar arte e vida, pois nada de novo se cria sem desafios.

As obras de Van Gogh são um desafio lançado à pintura ; os solos de sax de John Coltrane são um desafio lançado à música; os versos de Manoel de Barros são um desafio lançado à poesia.

Com sua arte, o artista desafia a matéria e o espírito a se amar para serem um único ser na obra que nasce, como um ser vivo.

Essa união singular entre corpo e espírito para formarem um único ser vivo, seja gente ou obra de arte , o poeta-filósofo Lucrécio chamava de “concílio”.

Acalântis cantava estando feliz ou triste, amando ou desgostando, fosse primavera ou inverno. E quem a ouvia era acalantado: aumentando a alegria ou diminuindo a dor.

As Musas se surpreenderam com a arte de cantar de Acalântis. Além da beleza, havia também calor no canto de Acalântis, como se dentro dela brilhasse um sol.

Então , para que o canto de Acalântis ganhasse asas e pudesse ir longe, as Musas transformaram Acalântis num passarinho canoro: o pintassilgo, conhecido como “o passarinho cujo canto acalanta”.

“Acalantar” significa : contagiar com calor, com vida. O pintassilgo acalanta não só aos ouvidos com seu canto , ele acalanta também o ser inteiro de quem sabe achar no canto um ninho.

A arte não é só canto de alegria , ela também pode ser clínica e nos auxiliar a curar a dor , tanto as físicas quanto as psíquicas.

O pintor acalanta com suas cores, a cantora acalanta com sua voz , o poeta acalanta com suas palavras-assobio : para que não morramos do frio desses dias sombrios.

Para quem as sabe ver , ouvir e sentir, cor , voz e palavra também são ninhos, para assim fazermos como ensina Manoel de Barros: “Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo.”


( bem cedinho, todo dia sou acordado pelo canto de um bem-te-vi . Ele fez ninho numa árvore perto de minha janela. Mal nasce o dia, o bem-te-vi já está cantando . Nem mesmo um carcará imenso que ronda por aqui mete medo no bem-te-vi. Ao ouvi-lo cantando, pensei: “Hoje chove, chove, chove...Mesmo assim ele persevera com sua arte.” Fui à janela : assim que o vi , ele voou atravessando a fina chuva e pousou no galho mais alto. Ele então cantou e apareceu outro bem-te-vi , ambos dividindo o mesmo galho. Olharam para o horizonte, tomaram coragem e para lá voaram... Foram eles que me lembraram hoje “Acalântis” )




 






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