quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

o paciente da janela

 

No último dia  de um curso de  Introdução à Filosofia que eu ministrava, uma aluna que nunca faltava  me entregou um papel e disse : “Professor, acho que tudo que  você falou no curso tem a ver com esta história”. 

De autoria anônima, o texto estava datilografado: era uma dessas histórias que a própria vida escreve . Segue uma interpretação dela:

Cinco pacientes estavam numa enfermaria que tinha   apenas uma pequena janela como abertura ao mundo. Cabia apenas uma das macas sob a janela. O paciente que se encontrava nela passava o dia narrando  aos demais enfermos  os acontecimentos e paisagens que ele via através  da janela :

“Vejo daqui um mar azul de amplo horizontes,  vocês conseguem sentir  sua brisa?” Três dos quatro pacientes que ouviam o relato conseguiam sentir a brisa, embora não vissem o mar. De imediato, acendia-se neles a memória dos dias em que se banharam no mar. Porém um dos pacientes não conseguia sentir a brisa, por mais que se esforçasse.

No outro dia, o paciente-narrador prosseguia: “Vejo  crianças brincando numa pracinha, vocês conseguem ouvir o riso delas?” Os três que sentiram  a brisa também conseguiam ouvir as crianças. Algumas dessas crianças estavam também dentro deles, de tal modo que eles se lembravam da criança que foram. Parecendo ter  a sensibilidade fechada, o quarto paciente nada ouvia...

E assim se seguiam os dias: como um aedo-poeta, o paciente da janela empregava suas palavras para com elas reavivar mundos, de tal modo que seus relatos  também eram remédio.

Mesmo doente , ele encontrava a oportunidade para, usando simples palavras,  auxiliar a vida do outro, não fazendo de sua posição na janela um privilégio egoico ,  doentio.

Mas houve um dia em que ele estava mudo e de olhos fechados. Chamaram a enfermeira.  Ela constatou, sem surpresa, que ele não mais vivia. Ela disse que o paciente da janela era o mais doente dentre eles  ( embora ele , como um estoico, nunca  se queixasse...).

Havia agora um espaço vazio sob a janela. Combinou-se que o paciente com a sensibilidade embotada poderia ocupar tal lugar, desde que continuasse as narrativas.

Quando ele foi colocado lá, porém, nada disse, ficou mudo. Indagado porque nada narrava, ele respondeu : “Aqui diante da janela não há mar, crianças ou pracinha; há apenas um espesso muro  cinza”. Ele se limitava a repetir: “Há apenas um espesso muro cinza...”

Sua palavra se tornou a mais pobre que há: aquela que , resignadamente, apenas descreve o que está dado.

Já o primeiro paciente usou as palavras para criar  uma linha de fuga  e transver o muro com sua “visão fontana”, como ensina Manoel de Barros.

O muro cinza representa tudo aquilo que rouba nossa visão de horizontes, externos e  internos.

 

Essa história me lembra Sêneca, que dizia  : nenhum de nós é “O” médico, pois somos companheiros de enfermaria. Encontra o remédio  aquele cujas palavras e ações partilham educação, arte  e conhecimento  que fortalecem em nós a vida.


“Todas as ideias salutares devem estar em movimento, em permanente atuação, de modo a serem para nós não só objeto de conhecimento mas também de prática.” 

( Sêneca, Cartas a Lucílio, “Carta 94”)


"O que é a ficção? O que é essa verdade que tem a face da mentira?"

(Dante)

 

(imagem: Magritte)





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