sexta-feira, 17 de setembro de 2021

o poeta e o monturo

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual o poeta   descreve o que aconteceu  num monturo que  ele encontrou  no meio de um  caminho ermo.

Monturo não é exatamente um monte de lixo. Num  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo,mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

 Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um lírio.

 

“Poeta é ser que vê semente germinar.

Nas fendas do insignificante ele procura grãos de sol.”(Manoel de Barros)

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”(Manoel de Barros)



- Trecho do filme "Língua de brincar", de Gabraz Sanna:




- Nova música de Caetano:



 



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