sábado, 22 de maio de 2021

a pessoa coletiva

 

A palavra “hermenêutica” vem do grego e significa “interpretação”. No coração de hermenêutica há um nome próprio: “Hermes”. “Hermenêutica” :  “arte relativa a Hermes”. Quando Dioniso foi despedaçado por seus carrascos , Hermes guardou de  Dioniso o coração , semente da  arte de renascer. Deus mensageiro, Hermes agora também transportava o coração como mensagem primeira . Simbolicamente, isso significa que o sentido das mensagens que alguém lê e interpreta depende , em primeiro lugar, do coração que a pessoa tem : se o coração for  pequeno, apequenará o sentido; se o coração for generoso, enriquecerá a mensagem  ; se o coração for ignorante, surdo será a toda mensagem; se o coração for sábio, aprenderá a ouvir a mensagem ( por mais simples que a mensagem seja).

A Constituição Brasileira está fundada na seguinte mensagem:  a “Dignidade da Pessoa Humana”. Essa mensagem  tem sentido político, social, sanitário, educacional...O coração dessa mensagem é a ideia de “pessoa”. Mas pessoa não é o mesmo  que  ego, tampouco é uma dimensão  apenas individual-neoliberal. A própria linguagem  nos auxilia a compreender a dimensão plural da pessoa, pois  existem seis  pessoas: as três pessoas do singular ( eu, tu , ele) mais as três pessoas do plural ( nós, vós , eles). Deleuze  afirma  que há ainda uma “quarta pessoa do singular”, a que se expressa no pronome reflexivo  “se” ( como em  “pensa-se”).

Assim, a “pessoa humana” não é apenas o “eu”, ela é também  o “nós”. Quando a pessoa individual sofre uma injustiça ou se vê no hospital à beira da morte por culpa de um governo genocida, é a pessoa coletiva “nós” que também se vê ameaçada e atingida, pois faz parte desse nós aquela pessoa que o poder trata  como mera estatística. Uma das características de todo poder genocida é  tratar  o nós, o nós coletivo e plural, como um “eles”. Pois o pronome “ele” também pode ser aplicado a uma coisa, como na frase: “onde guardei ele,  o celular?” . O poder genocida reduz toda  pessoa ao “ele” da coisa : para fazer da morte de uma pessoa  apenas  um “CPF cancelado”...

O que caracteriza toda pessoa , e a distingue das meras coisas ,  é a capacidade de pensar, sentir e agir. Não é apenas a primeira pessoa do singular que é capaz disso, também é capaz a primeira pessoa do plural, o nós. Não é somente o  “eu” que tem coração, o nós também precisa ter, pois é desse coração coletivo  que podem nascer empatias, agenciamentos e a  interpretação ativa do que precisamos fazer para mudar uma situação de indignidade e opressão. “Coragem” vem do latim “cor”: “coração”.

Assim, pensa pouco quem apenas diz ensimesmado: “Eu penso, logo existo”. Espinosa ensina que há mais potência libertária quando  conjugamos  o pensar , o sentir  e o agir na primeira pessoa do plural , pois o coração da democracia  é esta mensagem: “nós devemos pensar, sentir e agir  coletivamente para tornarmos nossa existência  social digna”.








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