sexta-feira, 17 de julho de 2020

assobios...


Aprendi a ler antes de entrar para a escola. Eu tinha por volta de seis anos. Queria muito  aprender a ler porque um grande amigo meu , o Edinho, lia para mim as histórias dos gibis. Edinho tinha dez anos e, além de meu melhor amigo, era  apaixonado por gibis. Ele era o irmão mais velho que não tive (eu era primogênito). Então, minha mãe me colocou  para ter aulas particulares de alfabetização com uma professora vizinha. Eu me lembro até hoje: ela morava em uma casa com um imenso quintal. No meio do quintal havia um grande viveiro de passarinhos  cantando o tempo todo. Havia especialmente um passarinho azul que me marcou profundamente. Ele não era o maior de todos fisicamente , porém  seu canto era muito singular e potente . A mesa da professora ficava perto da janela. Então, na minha imaginação eu ali tinha dois professores: a que com cuidado e atenção me ensinava as letras da língua, e o passarinho que também com cuidado me ensinava outras línguas. Eu amava ser aluno dos dois. A língua que a professora me ensinava eu ainda não conseguia ler, porém a língua do passarinho parecia que já estava dentro de mim. Às vezes, enquanto a professora tentava me alfabetizar na língua dos homens,  na língua do passarinho eu  até já me arriscava a falar, quando então eu assobiava no meio da aula. A professora olhava para mim e sorria. Eu voltava para  casa assobiando a lição poética que aprendi do mestre  passarinho azul.
Quanto à língua dos homens, eu já sabia que “b” + “a” formava “ba”, e que “l” + “a” era “la”, mas eu não conseguia ler o todo que elas formavam quando se juntavam  na palavra “bala”. Eu ia das letras  às sílabas, porém não conseguia passar das sílabas à palavra. Via apenas as partes, não via o todo, e o todo é sempre maior do que suas partes. À noite antes de dormir, eu abria um gibi e  ficava olhando as imagens e identificando as letras e sílabas. Até que houve uma noite em que, de repente, enquanto assobiava inocentemente,  vi a palavra “bala”. Foi instantaneamente que ela apareceu, como um raio. Ela sempre estivera ali, eu é que não a via. Não que me faltassem os olhos do corpo, eram outros olhos que ainda não estavam abertos em mim . Pulei de uma palavra à outra, depois às frases, e destas à história inteira, para depois ficar pensando como ela foi criada. E achei que criar tinha a ver com a lição do mestre passarinho...Perdi o sono aquela noite, com medo de dormir e esquecer o que aprendi. A querida professora me ensinou a gramática, mas creio ter sido aquele passarinho que me ensinou a ler mais do que palavras, e é o canto dele que ainda ouço em todo libertário, como Espinosa e  Manoel.

“Sei falar a língua dos pássaros: é só cantar.” (Manoel de Barros)











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