Platão elaborou uma tipologia com nove tipos de seres humanos . Tal tipologia era apresentada sob a forma de uma
escala: do homem mais nobre ao mais vil.
A nobreza, no caso, não era devido ao sangue ou posses. Valendo-se de alegorias para se
expressar ( pois as alegorias servem para tentar dizer o que não é apenas
palavra), Platão dizia que o ser mais nobre é aquele que possui uma forma
especial e rara de asas , asas que permitem elevar, para assim nos transportar até o lugar onde vivem as Ideias. Porém, não é a razão a
dona dessas asas, a razão é apenas os “olhos que veem” as Ideias. Sozinha,
entregue apenas às suas teorias e raciocínios, a razão não tem força para nos elevar. As asas que conduzem às Ideias pertencem a um “Daimon”: Eros, o Amor
( em grego, “eros” também significa “asas”). Somente consegue chegar bem perto das
Ideias, e ficar face a face com elas, aquele em cujas costas não há peso e sim
asas , como as asas do beija-flor que o põem diante de seu néctar. Enquanto
Daimon ( isto é, ser que auxilia nas travessias ), Eros é
a força do Afeto transmutador . Assim, na escala
proposta por Platão , mais nobre é o ser cujas asas têm força para
conquistar proximidade com as Ideias. Mas as asas de Eros não são como as de
Ícaro, cujas asas eram artificiais e colocadas com engodo: asas que fazem subir
apenas para aumentarem o tamanho da queda. As asas de Eros também não são como as dos pássaros, pois
estes já nascem com asas. As asas de Eros eram como as da borboleta: asas que nascem de uma metamorfose. O segundo ser na escala é o que busca a justiça; o terceiro é aquele que cuida da saúde do corpo; o quarto é o que
tem engenho e arte...e assim segue Platão descrevendo e enumerando os tipos de
seres humanos. O penúltimo em tal escala ( o oitavo, portanto) é aquele que usa
as palavras não para ensinar, mas para iludir e enganar, como os que hoje fabricam
“fake news” . Por isso, quem assim procede está mais perto da vileza do que da
nobreza. Segundo Platão, esse penúltimo na escala é o ardiloso sofista . Os sofistas prometem asas, porém asas artificiais como as de Ícaro. E o último ser
nessa escala, o ser humano mais vil, é aquele que possui a alma de tirano.
Platão dizia que devemos manter o tirano longe
da educação dos jovens e mais
distante ainda do governo da sociedade. O tirano recebe também outro nome: “antifilósofo” . Todo tirano , ou
antifilósofo, é cego às ideias e cultua
a ignorância e o ódio. O tirano não tem asas, o tirano é peso soturno que,
chegando ao poder, afunda a sociedade no abismo.
sábado, 29 de fevereiro de 2020
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
o cão acuado...
Os próximos 15 dias serão talvez os
mais decisivos dos últimos anos. Como um cão acuado, temendo as evidências dos
fatos que o ligam à milícia e à corrupção, o presidente miliciano resolveu ir
para o ataque, mas agindo ao modo de todo covarde : usando os outros. A
convocação que seu governo arquiteta e divulga para o dia 15 não é apenas contra deputados e
senadores, essa manifestação visa
atentar contra as instituições. No mínimo, esse miliciano incorreu em delito
mais do que suficiente para afastá-lo do poder pelos meios institucionais.
O povo múltiplo e heterogêneo que
ocupou as ruas durante o carnaval deveria continuar nas ruas até o dia 15, pelo
menos. Ditadura não tolera festa e alegria. O povo que o miliciano convoca passou o carnaval todo acumulando
ressentimento contra aqueles que , cada um com sua diferença, foram às ruas
viver o carnaval. Esses que ainda creem nesse miliciano não estavam nas ruas,
eles destilaram seu ódio contra a festa popular dentro de quarteis, templos e
shoppings. A rua não é deles, eles somente vão às ruas tentando fazer delas a extensão do quartel, do templo e dos condomínios,
pois não toleram lugares abertos , plurais e sem dono: eles temem e odeiam os lugares de miscigenação de ideias e
agenciamentos fortalecendo o comum.
É muito grave a situação. Não sabemos
ao certo quantos ignorantes ainda creem nesse miliciano que não pensará duas
vezes em usar como escudo humano esses incautos.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
o telescópio da filosofia
A filosofia não designa uma
disciplina acadêmica apenas, pois ela é
um nome que expressa algumas atividades que não são apenas do homem, mas da
própria vida . Essas atividades são o conhecer ( base da Teoria do Conhecimento
ou Epistemologia), o agir ( núcleo da Ética e da Moral) , o sentir ( do qual
nasce a Estética ) e o mais rico dos atos: o pensar. O pensar enseja uma disciplina
da filosofia chamada Metafísica. Pensar, conhecer, agir e sentir: são esses os
atos que fazem com que a filosofia não seja apenas teoria. A filosofia não existe
por causa da academia, a filosofia existe por causa desses atos, atos esses
implicados com a própria vida . De todos esses atos, o mais identificado à
filosofia é o pensar. O pensar não é um
ato isolado, pois ele participa de todos os outros, como se fosse o coração de
cada um deles. Por exemplo, muitos agem sem pensar, apenas obedecendo ou imitando; mas somente é
libertário , ou criativo, o agir que nasce do pensar. Sentir é algo de que todos
são capazes quando vivem os sentimentos, muitas vezes de forma irrefletida.
Porém o artista lapida o sentimento até dele extrair o Afeto, fazendo do Afeto
a matéria para um pensar que também se
sente: o artista pensa com o som ( música) , com as cores ( pintura) ou com o próprio corpo ( teatro e dança). Conhecer
é prática que caracteriza a ciência. Porém a ciência se torna mero instrumento
do poder ou do mercado quando se afasta do pensar. A ciência que pensa se torna
cons-ciência , isto é, consciência humanista e planetária, no sentido de Bergson e Sartre.
Se a filosofia fosse uma flor, a metafísica
seria o seu aroma que se desprende na abertura do desabrochar, tal como
desabrochou nos Pré-Socráticos. Se fosse uma criança a filosofia , a metafísica
seria o seu brincar, pois mesmo no brincar há um aprender, como viu Kierkegaard.
Se a filosofia fosse um pássaro, a metafísica seria o seu voo. Alguns filósofos
voam como corujas, sempre à noite e solitários, como gostava de voar Hegel;
outros voam em bando, feito pardais em jardins multicoloridos, à maneira de
Epicuro e sua Escola; e há ainda os que fazem como o albatroz: voam sobre o
oceano infinito, sem pousar, numa desterritorialização absoluta, ao modo de Espinosa. Se a filosofia fosse um telescópio,
a metafísica seria a lente a alcançar mundos antes nunca vistos, mundos ainda
não reais e dados, mundos que requerem coragem , ousadia e criatividade para
serem alcançados e povoados . Esses mundos não estão no além, eles estão aqui,
eles são o nosso mundo mesmo, cuja potência é ignorada e corre riscos, ameaçada que é por aqueles a quem
a estreiteza arma e cega.
“O pensamento é o telescópio de uma
astronomia apaixonada.” ( Deleuze)
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
Mangueira , de Cartola
“Favela, pega a visão:
não tem futuro sem partilha,
nem Messias de arma na mão.
Favela, pega a visão:
eu faço fé na minha gente,
que é semente do seu chão.”
( trecho do samba-enredo deste ano da Mangueira,
Escola de Samba
fundada pelo poeta Cartola)
- imagem: “Cristo sem-teto” , escultura do artista canadense Timothy
Schamlz .
domingo, 23 de fevereiro de 2020
as praças e as ruas
Os gregos inventaram a “ágora” , a
praça pública, como espaço-símbolo da
democracia. “Ágora” vem de “agon” : “conflito” ou “disputa”. Na ágora aconteciam disputas travadas com palavras. Os romanos, por sua vez, inventaram as ruas. Não como espaço
político, mas como meio de
travessia para além dos muros das cidades: as ruas atravessavam espaços livres e não povoados. Impérios e cidades desaparecem destruídos por guerras
ou catástrofes: com eles, desaparecem também as praças. Mas as ruas que
atravessam campos e espaços abertos nunca desaparecem totalmente : se ninguém
mais passa por elas, as ruas se integram à natureza , tornando-se trilhas em
esboço que somente os andarilhos nômades sabem achar.
A Revolução Francesa se inspirou no
ideário da praça como espaço de poder a se contrapor aos templos da intolerância
religiosa e aos castelos dos senhores
feudais. Surgem então os “parlamentos”: lugar onde se “parla”. Radicalizando ainda mais a ideia de
democracia, Espinosa dizia que mais importante do que a praça é a rua como espaço comum onde a multitudo se move e
age. “Multitudo” é mais do que a mera
“multidão” ou “massa” : multitudo é o agir
instituinte de uma multiplicidade ativa. A multitudo nunca cabe
totalmente no espaço centrípeto das praças, pois somente no espaço centrífugo
das ruas cabe o existir em movimento da multiplicidade política, cuja potência
excede o poder de governos e Estados: enquanto a força destes é a da mera polícia, a potência da multitudo é o desejo comum por
justiça, igualdade , liberdade ,
democracia, vida. Da praça nasceu o parlamento para se opor aos templos e
castelos. Mas quando o próprio parlamento se torna sucursal do templo
teológico-político e de mentalidades
medievais encasteladas, somente as ruas podem nos restituir a liberdade que nos
roubaram as urnas algemadas. As praças
simbolizam o centro das cidades, porém as ruas
são rizomas que alcançam também as margens, conectando aqueles a quem o
poder centralizador exclui e marginaliza.
"A rua põe sentido em mim"(Manoel de Barros)
"A rua põe sentido em mim"(Manoel de Barros)
sábado, 22 de fevereiro de 2020
- a carruagem de dioniso
O racionalista Platão dizia que a
alma humana se assemelha a uma carruagem com um cocheiro e dois cavalos. A
razão é o cocheiro : ela tem as rédeas e
guia a carruagem para um rumo determinado, ao passo que aos cavalos cabe a
obediência à ordem imposta pela razão-cocheiro. Um dos cavalos, de cor branca,
é dócil e obediente aos comandos da
razão: trata-se da Vontade. Mas o outro cavalo, de cor preta, é indomável
e rebelde. Quanto mais a razão quer
comandá-lo, mais rígida ela precisa ser, pois o cavalo insubmisso não obedece
andar em linha reta. O cavalo preto é o Desejo.
Segundo Platão, na carruagem de nossa
alma a razão e o desejo, o cocheiro e o cavalo preto, estão sempre em conflito.
A beligerância nasce pela impossibilidade que a razão encontra de domesticar o
desejo e subordiná-lo às suas ordens.
A moral conservadora é a rédea da razão,
às vezes também seu chicote, mas o desejo não se dobra, resiste, sempre
construindo linhas de fuga que não estão
no mapa que a razão autoritária segue e impõe.
Em
carruagem diferente se locomovia Dioniso
, o Deus das Artes. Dioniso era o próprio cocheiro. Mas, ao invés de
cavalos, sua carruagem era puxada por panteras. Eram temíveis feras
transportando Dioniso e atestando seu poder
para guiar a natureza. As panteras da carruagem não eram domesticadas, elas eram feras. Sem
lhes roubar a liberdade , Dioniso as conduzia
sem usar chicotes ou rédeas. Dioniso , porém, não lhes ia sobre o dorso.
A arte de conduzir o pulsional requer
também a arte das distâncias : nem muito longe, como na transcendência
neurótica, nem muito perto, como na psicose.
A arte não nega ou reprime a natureza
( como faz a moral repressiva), mas a
põe a seu serviço conforme uma força criativa que se conjuga com a potência das panteras. Na natureza, as
panteras são solitárias e jamais se unem. Porém, sob as mãos da arte, as
panteras se tornam forças que se conjugam, que se agenciam, e conduzem a alma
por caminhos por onde a razão não ousa
ir.Dioniso transforma a agressividade
das pulsões-panteras em potência criativa afirmadora da vida. Dioniso é
o próprio desejo que se tornou cocheiro
e guia. A carruagem não segue estradas já mapeadas e sinalizadas, pois o
caminho que a carruagem segue é Dioniso que
o inventa à medida que a carruagem avança.
( imagem: “O triunfo de Dioniso”)
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020
abaixo toda forma de ditadura
Se em uma prova de ciências alguém
afirma que “a terra é plana” e leva zero , ele não pode contestar a nota
alegando que o professor está cerceando o seu direito à “liberdade de ter uma
opinião”. Afirmar que “a terra é plana” não é uma opinião, e sim uma ignorância
em relação ao conhecimento adequado acerca da terra. Se alguém fala ou escreve
algo que discrimina uma pessoa ou uma minoria e é processado por isso, esse
alguém não pode dizer que o processo está limitando o seu direito à “liberdade
de ter uma opinião”, pois emitir um preconceito ou injúria não é ter uma
opinião, e sim mostrar-se um criminoso. O direito a ter e proferir livre
opinião é a base ética, política e jurídica da democracia. Mas há um aspecto
desse direito que nem sempre é esclarecido. E esclarecer é prática pedagógica
que desfaz obscurantismos ( “es-clarecer” vem de “es-claro”: “tornar mais
claro”, ensina Espinosa ). O direito à liberdade de opinião é universal quanto
à forma e não quanto ao conteúdo, pois há conteúdos que alguém diz ou escreve
que não podem ser universalizáveis, já que se revelam erros, preconceitos,
intolerâncias ou mesmo crime.
O fascismo é uma ignorância que surge
no início como opinião, travestindo-se como direito à liberdade de opinião. O
perigo é quando os assim ignorantes tomam o poder do Estado, sobretudo se for
pelo voto. Pois o voto que os elegeu apenas na forma é voto, já que seu
conteúdo é o ódio à democracia e, mais profundamente, ódio ao pensar , ódio às
ideias, ódio à diferença. O fascismo se vale dos mecanismos formais da
democracia , como a eleição e o voto, para logo em seguida mostrar o que ele é
em termos de conteúdo: ódio às instituições
democráticas. O fascismo teme as ideias porque é delas que vem a força que lhe
resiste e denuncia . E a maneira que o fascismo tem de se defender não é
argumentando pautado em ideias, mas empregando a única força que ele conhece: a
força da ameaça, do amordaçamento, enfim, a força da polícia ( incluindo as
polícias do pensamento).
( o país ainda não vive uma ditadura
do ponto de vista da forma, porém o conteúdo autoritário já está instalado e só esperando o momento de
vestir também a forma, se não resistirmos coletivamente a isso)
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
o poeta & o pote
No poema "Aventura", o
personagem é um pote que Manoel de Barros encontra jogado fora de "barriga
vazia para cima" em um lugar ermo. Nesse estado de abandono o pote
continha apenas o vazio. Esse pote já
foi o centro das atenções, todos o queriam perto, quando ele ainda estava cheio
de sorvete. Mal ele chegava à mesa, logo o cercavam olhares cheios de
interesses, todos queriam ficar perto dele. E
assim o pote se iludia imaginando que o queriam por aquilo que ele era
e não por aquilo que ele temporariamente tinha. Tamanha deve ser a dor que ele sente agora, abandonado . Rejeitado
pelos homens, apenas a natureza quis o pote. A natureza nunca despreza: ela
recebe e regenera, preenche vazios -
disso também já sabia Espinosa.
“Inútil”, o pote já não servia para
nada, a não ser para metamorfoses, pois é isto que a natureza produz em tudo
aquilo que, ao receber os cuidados dela ,
sofre um contágio, uma comunhão: "depois desse desmanche em
natureza, as latas podem até namorar com as borboletas", pressagiou o
poeta.
Tempos depois, o poeta teve que
passar pelo mesmo lugar ermo. Lembrou do pote e se preparou para rever aquela
imagem triste do sofrimento. Porém, nesse intervalo de tempo , sem que o poeta
soubesse, um passarinho passou voando “atoamente” sobre o pote e cuspiu uma
semente em seu ventre vazio. Ali já havia areia e cisco que a natureza depositou: “as chuvas e os ventos deram à gravidez do
pote forças de parir". E onde antes crescia o vazio, um poema vivo
milagrou: do ventre do pote um pé de rosas desabrochou... ”Se a gente
não der o amor ele apodrece dentro de nós”, agradeceu o poeta ao pote por essa
lição que dele recebeu sob a forma de
rosas. Pois repleto estava o pote agora
com a beleza que se oferta sem nada pedir em troca .
sábado, 15 de fevereiro de 2020
dioniso e as origens do carnaval
O carnaval nasceu como festa
dedicada a Dioniso, o deus das artes.
Naquela época, Dioniso era o símbolo do “triunfo da vida”. Não o triunfo de uma
vida sobre outra vida, como na competição desumana dessa selva capitalista, mas
triunfo da vida resistindo àqueles que a querem morta, nos vários sentidos que a palavra
“morte” tem. Segundo o mito, foi Dioniso que ensinou esse triunfo aos homens, para neles potencializar a
vida. Pois quando era ainda criança,
Dioniso foi despedaçado pelos seus irmãos maiores, movidos por ciúme e inveja.
Sabia-se que Dioniso tinha uma metade humana e outra metade divina, uma metade
mortal e outra que nunca morria. Mas qual era a parte divina dele? Ninguém
sabia...Exceto Zeus. Então, quando Zeus viu Dioniso-criança despedaçado, buscou
entre as partes a que era divina, pois somente essa parte pode resistir aos carrascos da vida. Era o
coração, sede da coragem e do afeto, a
parte onde é mais potente a vida. Zeus
pegou o coração de Dioniso-criança e dele fez nascer novamente Dioniso. Isso
explica seu nome: “Di-oniso”, “duas vezes nascido”. Quando nasceu a primeira
vez, Dioniso veio ao mundo chorando, como
todo recém-nascido ; ao renascer , porém, Dioniso saiu
do coração sorrindo , em festa, na alegria do triunfo da
vida. Esse triunfo não foi fruto
de promessas , ele foi obra da primeira
das artes : a arte de tornar a vida de novo nascente, nesta vida e
não noutra. Tal triunfo vinha acompanhado de uma potente alegria semelhante a
uma embriaguez . Não a embriaguez por
excesso alcoólico, mas
a embriaguez pelo excesso de vida
. Manoel de Barros, ébrio de poesia ,
chama de “deslimite” a tal excesso que
não deixa morrer a vida: “Na ponta do
meu lápis há apenas nascimento”, diz o poeta de vida embriagado. Em grego,
“embriaguez” se escreve assim:
“bacchus”. Quando os romanos deram o nome “Baco” a Dioniso,
enfatizaram apenas um dos aspectos de Dioniso, não a sua simbologia como um
todo: reduziram a embriaguez ( “bacchus”) ao estado provocado pelo vinho ,
ignorando que a embriaguez dionisíaca tinha originalmente muitos outros sentidos. Pois mesmo antes de descobrir o vinho, ainda
criança, Dioniso já se embriagava com a pura
água que ele bebia das fontes .
“É preciso embriagar-se...Mas, com
quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”
(Baudelaire)
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020
MARIAS DO BRASIL
( a fala preconceituosa do ministro
em relação às empregadas domésticas me fez lembrar de um episódio que
vivi, postado aqui no ano passado )
Naquele dia, o hall da Uerj estava repleto de estudantes
sentados no chão formando uma roda, uma
“ágora”. A gente estava ali para assistir ao
Teatro do Oprimido. Augusto Boal , seu criador, foi ao centro da roda e
explicou o tema da peça : uma
preconceituosa elitista tinha um filho dependente de drogas, porém ela desconhecia o
fato. Isso gerará uma situação onde haverá um opressor e um oprimido. Boal se
retira , a peça começa.
A primeira cena mostra o filho entrando escondido no quarto da mãe para surrupiar um relógio caro
para trocá-lo por drogas. Ao se dar
conta do furto, a mulher grita: “Maria!” . Mal a trabalhadora doméstica entra, já a fere um grito: “Cadê meu relógio!?”Por
ter feito faculdade, a patroa não se equivocava nas regras da gramática.
Inclusive, essa destreza com as palavras
fazia delas armas a serviço do preconceito e do ódio . No auge da
violência simbólica, entra o Boal e diz:
“parem a cena!”, e pergunta à plateia :
“alguém quer tomar o lugar do oprimido para
tentar vencer o opressor?” Uma estudante de psicologia levantou a mão,
foi até ao Boal e pegou a vassoura da personagem (a vassoura era o elemento cênico a simbolizar o
oprimido). Como não havia roteiro, a estudante poderia interromper o fluxo
verbal da opressora quando quisesse. Porém, a atriz-patroa, extremamente hábil
e agressiva, pôs abaixo com facilidade as táticas psicológicas da
estudante. A aluna pediu para sair. Outro estudante levantou o braço , um estudante de direito. Boal passou-lhe a vassoura , recomeçou a
peça. O garoto argumentava bem , era confiante. Mas ele tinha um ponto fraco:
comportava-se mais como um advogado, não
como a vítima de fato. Ele não sabia o que era ser mulher, pobre, negra, explorada...Também
não resistiu. Ninguém mais levantava a mão, fez-se um silêncio. Pensei comigo:
“Será que a teoria nada pode contra a ignorância armada com palavras? Mas ou a
filosofia é uma arma para a gente lutar contra isso ou então não é nada...”
Mas enquanto tomava coragem para ir ao palco
olhei para trás e vi, na entrada
do banheiro feminino, a faxineira de verdade da Uerj espreitando tudo. Ela estava “invisível” a todos. Quando
o Boal perguntou se deixaríamos a opressão vencer, a faxineira
tomou coragem e gritou: “eu vou enfrentar ela!”, e foi atravessando de vassoura na mão por entre
os alunos . O Boal a recebeu com um sorriso, perguntando o nome dela. “Maria da Anunciação ”, respondeu nervosa. Boal deu-lhe a vassoura da personagem e
Maria passou ao Boal a vassoura que era seu ganha pão. E as vassouras, a
da arte e a da vida, eram exatamente iguais! Quando a peça recomeçou, a patroa
retomou seus protofascismos. Contudo ,Maria não se curvou, tampouco entrou em
disputas dialéticas. Ela segurou firme a vassoura , seu “ganha pão”, e fez dela também seu instrumento de indignação:
Maria saiu dando vassouradas na opressora preconceituosa... E batia de
verdade! Foi preciso toda a equipe para segurá-la, Maria era forte, muito forte.... Explicaram
para ela que era tudo de mentira. Maria respondeu: “Mentira!? É que isso não
acontece com vocês!”. Aos poucos ela foi se acalmando, pediu água com açúcar,
já sorria. Todo mundo sorria. E de vassoura na mão voltou Maria para seu trabalho passando
sorrindo diante da gente como uma professora que acaba de dar uma excelente aula.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020
antonietas...
Espinosa dizia que um homem pode ter
poder e mandar em exércitos, ter dinheiro e mandar nos empregados de sua
empresa, porém a coisa na qual o homem menos manda é em sua própria boca. Quanto
mais ignorante e preconceituoso é um homem, mais ele será servo do que sai de
sua boca. Pois é fácil esconder-se atrás de números e fórmulas econômicas , mas
o mesmo não é possível fazer com as palavras, pois as palavras se enraízam em
partes da mente do homem que ele mesmo não controla, onde estão pensamentos que
ele gostaria de esconder do público. Os estoicos diziam que é mais fácil
controlar o que entra pela boca do que o que sai. Pois o que sai da boca do
homem é o que ele pensa. Os estoicos também diziam que sabedoria pode ser
escondida, mas não pode ser ocultada a ignorância. Dia desses o ministro Guedes
disse que “é o pobre que destrói a floresta amazônica”, depois falou que
“funcionários públicos são parasitas”, ontem afirmou que é bom o dólar estar
alto pois com dólar baixo “até empregadas domésticas viajam para o exterior”.
Tais verbalizações são da mesma família do que disse Antonieta: “Não têm pão?
Que comam brioches!”. Quem dera que a cabeça do elitista daqui tivesse o mesmo
destino da cabeça preconceituosa da monarquista francesa... Diante dessas
afirmações absurdas, a mídia comercial e vendida tenta minorar o caso,
afirmando ser um “problema de comunicação” do ministro. E que ele deveria falar
menos, pois falando o que fala “atrapalha a economia”, disseram hoje os jornais
golpistas. Ou seja, os jornais parecem aconselhar que o ministro use a mesma
estratégia que os sofistas recomendavam aos “dissimulados predadores da coisa
pública” : usar as palavras para melhor esconder o que se pensa e se faz. A
verdade é que essas falas que saem da boca dos membros desse governo não são
apenas um problema de comunicação, elas são testemunhos do que vai na mente
deles: seu ódio ao pobre. Como disse um elitista capitalista estadunidense, a
luta de classes é de fato o motor da história, reconheceu ele dando razão a
Marx. Porém, disse ele, quem fomenta hoje a luta e ataca sem dó, perdão ou
humanidade não são os pobres, hoje são os ricos que atacam numa guerra sem
quartel, uma guerra suja. E os ricos riem daqueles que ainda pensam em foice e
martelo como arma, pois a arma dos ricos gananciosos e cínicos é o dinheiro, o
exército, a polícia, a mídia comercial , certas igrejas... e a mais importante
das armas na dominação deles sobre os pobres: as leis.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020
la celestina
"Lhasa" é o nome da cidade
sagrada dos budistas do Tibet. Essa cidade fica bem no alto das montanhas mais
altas do nosso planeta, e é considerada
a cidade mais perto do céu . Não é uma
"Cidade Celeste", como a de Santo Agostinho; mas é, entre as cidades
terrestres, a mais próxima do celeste. Talvez por isso, ouvir Lhasa se parece
com uma experiência de
"celestamento", porém sem perder as intensidades terrestres do desejo e do corpo. Foi Manoel de Barros que
inventou essa palavra-experiência, esse "empoemamento", ao dizer: "Poesia é celestar as coisas do
chão". Lhasa também é conhecida como "La Celestina"...
terça-feira, 11 de fevereiro de 2020
- procustos: ontem e hoje...
Na mitologia, Procusto era um personagem de índole questionável que oferecia uma “cama” fabricada por ele às pessoas que passavam cansadas por uma estrada. Quando as pessoas se deitavam na tal cama, porém, acontecia algo estranho: ninguém cabia direito nela. Quando a pessoa era maior do que a cama , Procusto pegava um machado e decepava a cabeça e os pés excedidos. Quando, ao contrário, a pessoa era menor , Procusto amarrava as pernas e os braços dela com correntes , esticando brutalmente até desmembrá-los... Ninguém sobrevivia àquela cama transformada em túmulo: querendo que cada um se amoldasse à força, Procusto acabava matando todo mundo. Quando as pessoas reclamavam, Procusto pegava uma régua e media com rigidez militar a cama, e dizia: “A cama é perfeita, normal, exata: cada lado é idêntico ao outro . A régua não mente! O defeito está em vocês : diferentes e heterogêneos. Amoldem-se , mesmo que se violentando, e caberão na minha Verdade!” A cama de Procusto pode receber vários outros nomes: “Minha Opinião”, “Meu Dogma”, “Meu Credo” ...O que não couber em tais “fôrmas”, Procusto vingativamente corta, nega, mata – física ou simbolicamente . Procusto odeia tudo que “não se pode passar régua”, diria Manoel de Barros. O mais triste nestes nossos dias é que muitos, não se sabe se por medo, resignação ou mero espírito de rebanho mesmo , voluntariamente se deitam nessa cama que os violenta e apequena . E assim perdem a cabeça, tornam-se acéfalos: nada mais veem ou pensam; ou então perdem as pernas , já não podendo ficar de pé, apenas prostrados , de joelhos.
“Quando a forma predomina, desaparece o sentimento.” (Balzac)
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020
poéticas
“Primeiro é preciso transformar a vida,
para cantá-la - em seguida.
Os tempos estão duros para o artista (...).
Para o júbilo o planeta está imaturo.
É preciso arrancar alegria ao futuro.
Nesta vida morrer não é difícil.
O difícil é a vida e seu ofício.”
(Maiakóvski)
"Poesia pode ser que seja fazer outro mundo."
(Manoel de Barros)
- trecho do livro, palavras do próprio Maiakóvski: "Uma vez mais repito categoricamente: não forneço qualquer regra capaz de transformar um homem em poeta e de o levar a escrever versos. Essas regras não existem. Poeta é justamente o homem que cria as regras poéticas."
- Manoel & Maiakóvski ( na voz e interpretação de Abujamra):
- Manoel & Maiakóvski ( na voz e interpretação de Abujamra):
artigo: a porta de Marielle
No Museu da Maré há um espaço dedicado a Marielle Franco. Na exposição que leva seu nome, foi escolhido um objeto singular para nos fazer lembrar a vereadora: nada mais nada menos do que a porta do seu gabinete .Enquanto era parte de seu gabinete, a referida porta era muito diferente de uma porta habitual, pois Marielle costumava colar mensagens nela, além de sempre mantê-la aberta àqueles que vinham procurar por sua ajuda.
Pela ação de Marielle , aquela porta continha uma potencialidade de sentidos. E “potencialidade de sentidos” é o outro nome pelo qual atende a poesia enquanto prática de ressignificar as coisas e o mundo. Pois poesia não é só versos: poesia também é produção de sentidos que podem transformar uma simples porta em um agente coletivo de enunciação . Quando um objeto é parte da produção de sentidos, ele deixa de ser coisa inerte e se torna expressão de um mundo, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, tangível e intangível. Transportada então para o interior do Museu da Maré, aquela porta se tornou um símbolo-mensagem do próprio ser de Marielle: porta aberta, receptiva, como seu sorriso.
Não por acaso, na mitologia era sob uma porta aberta, espaço de travessias, que se manifestava Hermes, a divindade associada à comunicação das mensagens que requerem a prática da interpretação. Em grego, “interpretação” se escreve “hermenêutica”: “atividade relativa a Hermes”. Mensagem não é a mesma coisa que informação. “A capital do Brasil é Brasília”, “dois mais dois é igual a quatro”, tais coisas não são mensagens. Mensagem é tudo aquilo cujo sentido requer a atividade de interpretação: “A palavra abriu o roupão para mim: ela quer que eu a seja”, este verso de Manoel de Barros não é informação, é mensagem. “O homem é um animal político”, outra mensagem. Mensagem não é para se decorar ou reproduzir, mensagem é para despertar nosso pensar e nosso sentir para aprendermos a ler mais do que frases ou palavras, e assim lermos também o mundo. Nem sempre mensagens se vestem com palavras, às vezes as mensagens vêm inscritas nas coisas ou são as próprias coisas portando sentidos a serem interpretados. Enquanto objeto exposto , a porta de Marielle é mensagem que simboliza o sentido da travessia e da abertura ao outro, sobretudo ao outro que é marginalizado, injustiçado, explorado, perseguido.
Os Museus Casa são espaços que já foram residência, quase sempre palácios e mansões, em geral de gente oriunda da elite. O museu Casa de Rui Barbosa, por exemplo, foi a casa de verdade de Rui Barbosa. Mas pessoas do povo como Cartola, Nelson Sargento, Lima Barreto, Maria Carolina de Jesus, e tantos outros, não tiveram casa para ser patrimônio musealizado. A casa deles é a favela, a cultura popular, a resistência, a criatividade e a inventividade do povo que luta. A porta de Marielle é parte de uma casa assim: uma casa plural, aberta, heterogênea.
Os assassinos de Marielle obstruíram covardemente seus passos. Mas a porta que ela simboliza , enquanto abertura à justiça, à educação e à cultura, esta porta nós não podemos deixar fechar.
sábado, 8 de fevereiro de 2020
os bruxos...
“A palavra abriu o roupão para mim : ela quer que eu a seja.” Amo esse verso de Manoel de Barros. Palavra que não traz gente dentro é só letra no papel. Escrever é um ato amoroso, um erotismo absoluto. Por isso, o poeta também disse: “Na ponta do meu lápis tem apenas nascimento.” Mas a palavra só abre o roupão para aquele que ela percebe que o ama. Unidos, apaixonados um pelo outro, a palavra e o poeta se tornam os genitores do novo olhar que nascerá em nós, se com desejo e paixão também os lermos. Então, “outra pessoa desabre em nós”, diz Manoel de Barros.
Mas há aqueles que odeiam as palavras porque odeiam , antes , as ideias. Eles vivem as violentando e estuprando com suas ignorâncias e preconceitos. Somente estuprada e violentada a palavra serve aos que nada têm a dizer. Os mais fanáticos deles consideram literatura e poesia coisa de bruxaria: eles não se contentam apenas em censurar , também querem lançar as ideias ao fogo, se possível junto com o autor que as gerou e pôs no mundo.
Sem que o saibam, porém, acertaram no nome: poetas e filósofos são feiticeiros e bruxos. E a maior feitiçaria deles é, com as palavras grávidas de ideias, promover saúdes , curas e benzimentos, nisto se parecendo com os feiticeiros da tribo tupinambá que benziam os guerreiros para que não os derrotassem os colonizadores.
“A grande poesia há de passar virgem por todos os seus estupradores.” (Manoel de Barros)
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
filho da Terra
Todos nós , sem exceção, surgimos como um pequeno ponto, um quase nada, no interior de um ventre. Não fosse a proteção e o cuidado com o qual a vida nos cercou, daquele ponto não cresceria a gente. Mas o homem que cresce apenas em corpo , cuja mentalidade permaneceu atrofiada, mesmo que tal homem ganhe poder e dinheiro e se cerque de muitas coisas como propriedade sua , ainda assim tal homem , crescido apenas exteriormente , permanecerá como um ponto minúsculo no ventre da Mãe-Terra. E tal pequenez porá em risco ao próprio ventre que o mantém vivo. Somente o homem que cresce em compreensão e afeto se torna um verdadeiro adulto mental , afetiva e politicamente, e assim se dignará como filho da Terra.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
eros & psiquê
Em grego, há vários nomes para a “alma”. O mais original é “Psiquê”. Não por acaso, na mitologia Psiquê era o nome próprio de uma jovem. Diferentemente do termo “Razão”, princípio masculino , Psiquê não é conceito teórico, Psiquê é nome próprio. Psiquê não é o nome de apenas uma parte da alma, mas da alma inteira. Psiquê não era somente raciocínio. Ela era isso também e mais sensibilidade, intensidade, beleza , generosidade , coragem, coração e poesia. Enquanto a Razão tem a pretensão de existir e pensar sozinha ( exemplos disso são o racionalista Descartes, com o seu ensimesmado “Penso, logo existo”, e o rígido Kant com sua “Razão Pura”) , Psiquê só se viu inteira quando encontrou sua companhia. A companhia de Psiquê é Eros, o Amor. Esta palavra é a reunião da partícula “a” com função privativa ( como em “a-fasia”, “não fala”) mais a abreviação da palavra morte ( “mor”). Assim, no seu sentido original, “amor” é “não morte” ( nos vários sentidos que a morte pode ter). É na companhia de Eros , agenciada com ele, que Psiquê resiste à morte; e é na companhia de Psiquê que Eros aprende que ele mesmo não sabe tudo o que pode.
A “alma” possui ainda outro nome: “pneuma”. Esta palavra costuma ser traduzida por “sopro”. Em latim, “spiritus”. Porém pneuma, ou spiritus, não é o sopro que a gente expira ( quando colocamos o ar para fora). Pois pneuma designa o ar que a gente inspira, puxando o ar para dentro de nós . Quando a gente expira, é a gente que sopra; mas quando a gente inspira é a própria vida que sopra dentro de nós. Quando o bebê sai do ventre e nasce, o ato que inaugura seu respirar é o inspirar que o enche de vida. Esse inspirar inaugural não é feito apenas pelo seu pequenino pulmão, mas por todo seu corpo. Este é o sentido original de “inspiração”: “encher-se de vida para intensificar a vida que vive em nós”, para assim não sufocarmos. Na verdade, a tradução mais correta de “pneuma” não é “sopro”, e sim “brisa úmida”, também ideia feminina, como aquela brisa que , vinda do oceano, ao deserto estéril vivifica.
"Por toda parte , estremecendo, sentimos o mesmo Sopro gigantesco que, escravizado, luta por libertar-se" ( Nikos Kazantzákis)
Este livro interpreta o mito a partir da narrativa de Apuleio, o poeta romano.A única coisa que não concordo na capa é a imagem de Eros com asas de pássaro. Na verdade , o Eros grego tinha asas de borboleta, e não de pássaro .Essa ideia de Eros com asa de pássaro é mais renascentista do que grega. Isso porque, para o grego, as asas de Eros somente nasciam após uma metamorfose, como as asas de uma borboleta, ao passo que os pássaros já nascem com asas. É essa ideia de eros-metamorfose que inspira Espinosa quando ele, em sua Ética, emprega o termo latino "Cupiditas" para nomear o desejo-amor( "cupiditas" é: "relativo a Cupido", pois "Cupido" é o nome latino de Eros). A idealização-romantização de Eros veio apenas no século XIX, com os poetas românticos.
- um dos melhores livros sobre mitologia:
- outro livro muito bom:
- um dos melhores livros sobre mitologia:
- outro livro muito bom:
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020
obra aberta
Uma letra diz mais sozinha ou agenciada à outra, formando uma sílaba? Uma letra diz mais sozinha ou numa sílaba que faz parte de uma palavra? E em qual tipo de palavra as letras agenciadas teriam mais a dizer: na palavra que dissimula ou na palavra autêntica? Na palavra que xinga ou na palavra que canta? Na palavra que sai da boca de um general que grita ordens ou na palavra que nasce da boca de um educador que desperta autonomias?
Se uma letra fosse como o ego de um egoísta, talvez ela imaginasse que é o indivíduo isolado que tem primazia, tal como prega um neoliberal individualista. Porém louca seria a letra que julgasse dizer mais sozinha do que fazendo parte de uma sílaba, na vida de uma palavra, no coração de uma frase , dando existência a um livro. Pois é na imanência de um livro, como parte de seu plural sentido, que uma letra de fato pode ampliar-se e expressar a si mesma naquilo que expressa o livro, desde que o livro não seja apenas letras mortas no papel , mas expressão de um dizer vivo cujo sentido seja aberto às interpretações criativas que lhe acrescentem novas e plurais perspectivas, para assim serem os livros, as aulas, as mentes, os corações e as sociedades democráticas: Obra Aberta.
“Minhas palavras não se ajuntam por sintaxe, mas por afeto.”(Manoel de Barros)
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020
as três ecologias
No livro “As três ecologias”, Félix Guattari ensina que não existe
apenas uma ecologia, existem três: a ecologia
verde, que cuida da poluição do meio
ambiente; a ecologia social, que se debruça sobre as poluições que ameaçam a
vida em sociedade ( como a poluição da água e do ar, os lixões urbanos, o
problema do saneamento básico, etc); e a ecologia mental, também chamada por
ele de ecosofia, que visa fazer a crítica dos vários poluentes que poluem a
mente. Esses poluentes da mente ( ou da subjetividade) vêm pela mídia, pelos fanatismos diversos,
pelas redes digitais e pelos produtos
semióticos da comunicação de massa. Ou
seja, cada ecologia se preocupa em nos tornar
cientes, pela ação e pelo pensamento crítico, dos diversos
poluentes que existem, dentro e fora de
nós. Há os poluentes visíveis, que assim
se mostram pelo seu cheiro nocivo ; mas também há os poluentes invisíveis, como
as ideias poluidoras que vêm de
Brasília, cujo cheiro é tão nocivo
quanto. Não por acaso, Nietzsche dizia: “Se você tiver que ouvir ou ler os
tolos, não se esqueça de tapar o nariz do espírito...”.
Essas três formas de poluição nunca
andam sozinhas: uma se alimenta da outra, tornando a vida coletiva insuportável
e triste, um risco para a saúde do corpo e para a saúde do espírito. O Rio de Janeiro é um trágico exemplo disso: esgoto boiando nas
águas de seus rios , símbolo do
esgoto-verbal que sai da boca do governador Witzel, que disputa com Bolsonaro o posto de
maior agente poluidor da atual política brasileira.
a produção do comum
“Os comparamentos matam a comunhão”,
afirma o poeta Manoel de Barros. A palavra “comunhão” significa : “participar
do que é comum”, porém sem perder a singularidade ou diferença. Os comparamentos matam o conhecimento do que
é uma singularidade, a nossa e a do outro. Por exemplo, numa paraolimpíada
faremos uma ideia equivocada da singularidade e potência de cada atleta paraolímpico se o compararmos com um
atleta olímpico tomando este último como modelo, dado que a
ausência de um braço ou perna no primeiro somente é uma “falta” quando o
comparamos com o atleta olímpico que os tenha. Porém, nenhuma comparação nos
ensina a conhecer a singularidade de algo. Visto nele mesmo, em sua
singularidade, o atleta paraolímpico não se explica por algo que lhe falta, mas
por aquilo que ele é capaz de fazer. E neste fazer não há falta, há potência
como expressão da vida. Cada atleta paraolímpico é incomparável. Ser
incomparável nada tem a ver com ser o primeiro de uma escala que vai do
primeiro lugar ao último. Ser incomparável é ser único, fazer-se único. Para
compreender a singularidade do atleta paraolímpico, no entanto, é preciso ter
em vista a realidade comum da qual ele e o atleta olímpico fazem parte. Ter
algo em comum não é ser igual ou idêntico, ensina Espinosa. Por exemplo, cada
onda do oceano é diferente da outra, pois cada uma é singular. Mas elas têm
algo em comum: a água do oceano da qual cada uma é uma expressão singular.
Assim, para conhecer a singularidade de
cada onda, é preciso compreender primeiro
a potência infinita do oceano. Cada
grau de azul é diferente de outro grau de azul. Mas eles têm algo em comum: são
expressões diferentes da cor azul. Sem o
oceano não há ondas diferentes e singulares, sem o azul não há graus de azul,
assim como sem a humanidade não existe
indivíduo humano. Esta é a perniciosa ideia política e econômica do liberalismo
individualista que alimenta o culto da “prosperidade” egoica a todo custo: a de
que o que vem primeiro é o indivíduo e seu ego, o indivíduo e seu interesse de
empreender e ser chefe, dono, proprietário. Essa ideologia que cultua o
individualismo, que hoje une a FIESP e a grande mídia ao fascismo, adoece a vida em sociedade na medida em que
ignora e destrói o comum, como se fosse uma onda delirando ser o oceano , ou um grau
de azul querendo ser o próprio azul ( e com isso tomando como inimigos,
paranoicamente, os outros graus diferentes...)
Enfim, o atleta paraolímpico e o
olímpico têm algo em comum: são atletas. Cada um expressa esse comum de acordo
com o que pode. E não é apenas com braços e pernas que eles vencem obstáculos ,
eles também o vencem, sobretudo, com a força
da mente.
“As pessoas só alcançam o grau de
liberdade que conquistam ao medo com a audácia.” (Stendhal) , epígrafe do livro
“Bem-estar comum”, de Negri & Hardt.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020
linha de fuga...
EURÍDICE
Uma pessoa tem um corpo,
Um só, sozinho.
A alma já está farta
De ficar confinada dentro
De uma caixa, com orelhas e olhos
Do tamanho de moedas,
Feita de pele — só cicatrizes —
Cobrindo um esqueleto.
Pela córnea ela voa
Para a cúpula do céu,
Sobre um raio gélido,
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
Até uma rodopiante revoada de pássaros,
E ouve pelas grades
Da sua prisão viva
O crepitar de florestas e milharais,
O troar de sete mares.
Uma alma sem corpo é pecaminosa
Como um corpo sem camisa —
Nenhuma intenção, nem um verso.
Uma charada sem solução:
Quem vai voltar
Ao salão depois do baile,
Quando não há ninguém para dançar?
E eu sonho com uma alma diferente
Vestida com outras roupas:
Que se inflama enquanto corre
Da timidez à esperança;
Pura e sem sombra,
Como fogo, ela percorre a Terra,
Deixa lilases sobre a mesa
Para que se lembrem dela.
Então continua a correr, criança, não te aflige
Por causa da pobre Eurídice;
Continua a rodar teu aro de cobre,
Corre com ele mundo afora,
Enquanto, em notas firmes
Enquanto, em notas firmes
De tom alegre e frio,
Em resposta a cada passo que deres,
Em resposta a cada passo que deres,
A Terra soar em teus ouvidos.
(Tarkovski )
- Na mitologia grega, "Eurídice" é um dos nomes da alma, assim como "Psiquê" e "Pneuma" também o são. Eurídice é o par de Orfeu, símbolo-arquetípico da condição de poeta.
- Na mitologia grega, "Eurídice" é um dos nomes da alma, assim como "Psiquê" e "Pneuma" também o são. Eurídice é o par de Orfeu, símbolo-arquetípico da condição de poeta.