terça-feira, 6 de junho de 2017

fantasia, imaginação, criatividade, inventividade (2)





As ideias estão no chão:
a gente tropeça e acha a solução.
Titãs

Sonhar é acordar-se para dentro.
Mário Quintana


Eu simplesmente sinto
com a imaginação.
Não uso o coração.
Fernando Pessoa
                                                                                               
 Filósofo, artista plástico, arquiteto , pensador da linguagem visual ...Bruno Munari  é múltiplo, heterogêneo, por formação e questões. Ele consegue falar de coisas múltiplas porque ele é, de corpo e espírito, múltiplo, heterogêneo. Somente os múltiplos, plurais, conseguem ver o heterogêneo e, didaticamente, nos ensinar a também vê-lo e, quem sabe, nos vermos igualmente  como parte da heterogeneidade que é a vida, desde a vida social até a vida mental, passando pela vida cósmica, natural e ,também, pela vida multifacetada que é a comunicação.
Nesse caminho, algumas ideias se apresentam e se impõem. São ideias que a academia tem dificuldade de pensar, embora tais ideias estejam tão vivas nos artistas, poetas e conceituadores em geral, movendo fortemente aquele que cria, que experimenta, que pensa,  enfim, aquele que não apenas teoriza ou que tão somente  faz, mas que pensa o que faz, que faz o que pensa e que, sobretudo, sente o que faz e o que pensa, posto que também acredita, crê, na potência de criar e inventar, com todos os riscos que isso envolve, pois nada mais arriscado do que ousar  singularizar-se, construir um estilo.
Esse pensador múltiplo, heterogêneo, exerce a arte das distinções e sutilezas. Pois é isto que é encontrar a essência de algo: estar atento aos pequenos movimentos que alteram uma coisa e a fazem se transformar em outra, seja essa coisa que muda uma ideia, uma cor, um espaço ou uma pessoa. E não há como compreender a mudança sem compreender onde a mudança nasce, onde ela é produzida.
Falar em mudança é evocar quatro termos: fantasia, inventividade, criatividade e imaginação. Não raro, tanto na teoria acadêmica quanto no senso comum há confusão acerca do significado desses termos, que são realmente próximos, porém diferentes. Munari não deseja dar uma resposta definitiva sobre esses temas; ele fabrica e maquina  uma perspectiva, uma proposição.
Fantasia envolve o que não existe, e que nunca existirá ou será real, mas que pode ser pensado e “visto” pela imaginação. Nosso pensamento por vezes se torna o útero de seres que só existem nele, que encontram no próprio pensamento seu alimento, sua paisagem, seu mundo. Quanto mais fantasioso é um pensamento, mais o comportamento daquele que o tem tende a ser pouco compositivo, pouco agenciador. Quando a fantasia prepondera de maneira exagerada ou mórbida ,instala-se uma ruptura entre o pensamento que fantasia e  o mundo : o próprio pensamento se separa da sua expressão motora associada a uma situação cotidiana. Nesses casos,pode-se evidenciar um isolamento que, por vezes, poderá ser também manifestado de forma violenta ou agressiva, ou então catatônica, melancólica. Não por acaso, de "phantasia" nasce o termo "phantasma"...A produção fantasiosa mais típica é o sonho noturno, aquele que temos de olhos fechados,  à noite. Freud chega a dizer que todos nós, durante quase 1/3 do dia, exatamente quando dormimos e sonhamos, durante essas horas somos "loucos", pois a loucura que vemos no chamado “doente mental”  é um sonho de olhos abertos. Esta é a característica da fantasia: um sonhar de olhos abertos, mas sem saber que se sonha.Quando está sob o domínio de um forte ciúme , o ciumento fantasia e passa a crer no que fantasia, deixando-se levar pelo que somente existe em seu pensamento. A criança também fantasia haver um monstro debaixo da cama, e isso a fará tremer de medo real, embora não exista o monstro a não ser em sua mente (mas se a criancinha, brincando, finge que ela ou o pai são um  monstro, isso não é mais fantasia, isso é criatividade, que é a base da fabulação/criação literária...A criatividade não é um sonho de olhos abertos, mas um abrir os olhos da imaginação para ver diferente o que chamamos de realidade).O sonho é fantasia...Essa fantasia é inacessível ao outro:  somente podemos comunicá-la com palavras, depois que acordamos, embora nunca a narrativa verbal consiga alcançar o que foi de fato o sonho. A fantasia nasce dessa pátria inacessível, incognoscível , e que é para as imagens mentais o que o sol é para os dias.Vivemos sob o dia, nascemos para ele e nele vivemos, mas ninguém pode viver lá no sol, diretamente sobre ele.
Inventividade é o que não existe, mas que pode se tornar real do ponto de vista técnico. O automóvel, por exemplo, é uma invenção. Antes de existir como objeto ou coisa, o automóvel nasceu como uma ideia ainda confusa, não ainda individuada e separada de uma névoa espessa que o envolvia dentro do pensamento de seu inventor.Assim como a fantasia, a invenção nasce do pensamento. Porém enquanto a fantasia vive refém do mundo onde nasce ( podendo ela mesma tornar refém dela o pensamento de onde nasceu), a inventividade inventa coisas que logo farão parte do mundo, serão objetos que despertarão o desejo e os valores do mercado, de tal modo que o próprio mundo poderá esquecer ou ignorar que foi do pensamento inventivo que tais coisas nasceram.
Já a criatividade é o que não existe também, mas que pode se tornar real do ponto de vista artístico, simbólico, humano. Por exemplo, um poema, um quadro, uma música, etc., são frutos da criatividade. Onde viviam os girassóis de Van Gogh antes de este os pintar? Viviam nos campos? Se eles existiam em algum lugar, esse lugar não poderia estar separado do ser inteiro de Van Gogh, inclusive de seu corpo, de seu inconsciente. É por isso que os girassóis pintados são também Van Gogh - renascido, reinventado, tornado tinta e durando como sensação materializada em cores. Se Van Gogh não os passasse para as tintas, tais seres de sua fantasia morreriam quando morresse o ser pessoal de Van Gogh, e ninguém os teria conhecido, visto, experimentado...E , dessa maneira, não saberiam que neles também há o mesmo jardim, “Jardim das Delícias”, onde germinam girassóis e outras flores, mesmo que flores do mal, como as que cultivava Baudelaire.
Os frutos da inventividade e da criatividade nascem de uma árvore: o pensamento. Todavia, as raízes dessa árvore não estão fincadas no “Ser”, como pensava Descartes, o racionalista. As raízes dessa árvore estão suspensas, não se agarram a nada,  a não ser em si mesma.Aristóteles dizia que Deus é um Pensamento que se Pensa, um Pensamento que é sua própria realidade, uma Realidade Perfeita. Mas esse Pensamento Perfeito, exatamente por sê-lo, somente pode existir fora da matéria, da mudança, do devir e das imperfeições da existência no tempo. Não é esse o pensamento do qual nascem a inventividade e a criatividade. Não se trata do  pensamento racional, reflexivo, lógico. Esses aspectos do pensamento se voltam para fora, para a conquista do mundo externo. Mas há uma parte do pensamento que nunca se volta para fora: ele se volta apenas para si mesmo, numa espécie de narcisismo absoluto, como uma ostra na qual muitas vezes as próprias pérolas apodrecem sem ninguém as conhecer, e sem que elas mesmas conheçam a luz do sol (embora esse mesmo mundo interior por vezes tenha um sol tortuoso, fantasmático, como os que brilham em Turner , Munch ou Goya) . Nesse sentido, tal pensamento não é totalmente “do” homem, é um pensamento da vida em seu impulso  para afirmar-se. E esse impulso, mais inconsciente do que consciente, precede a prática consciente do conhecimento da chamada "realidade objetiva".
A fantasia permanece enredada nesse mundo, ao passo que a inventividade e a criatividade nascem dele, vindo então para fora, para o mundo, o enriquecendo, mudando, alterando. Inventividade e criatividade  também podem se combinar. Por exemplo, a tecnologia de hoje às vezes contribui  para  aumentar a riqueza criativa do cinema, ao mesmo tempo que muitas obras criativas inspiram inventores na produção de objetos tecnológicos.
Todavia,  os homens se esquecem que tudo o que hoje domina a vida, sobretudo os aparatos tecnológicos, nasceram de uma nebulosa inextirpável instalada no coração do homem, que é a fonte de toda invenção.É por isso que tudo aquilo que é fruto da invenção, como a tecnologia de um automóvel ou computador, por exemplo, pode virar um objeto fantasmático da fantasia, de tal modo que o homem procurará nessas coisas uma satisfação alucinatória para questões que são de outra ordem, de ordem afetiva.Assim, o capitalismo vive de usar a invenção e a criatividade para pô-las a serviço da fantasia de um homem cada vez mais pobre de inventividade e, sobretudo, de criatividade, pois estas se tornaram capturadas pelo próprio sistema capitalista, em um circuito que se retro-alimenta, narcisicamente. Aliás, o próprio capitalismo tem sua fantasia: ser o sistema definitivo da sociedade humana, e que nenhum outro sistema poderá suplantar. Enfim, o delírio do capitalismo é se achar a própria natureza.                                                              
E a imaginação?Fantasia, inventividade e criatividade são pensamentos indeterminados, não formados ainda. Já a imaginação é uma percepção, uma ação de ver imagens. Ver imagens, e não coisas prontas. Ou melhor, ver a imagem como uma coisa. Quando Da Vinci quis inventar o protótipo do helicóptero, passando a desenhá-lo no papel, tal ser não nasceu no desenho apenas, pois antes de desenhá-lo o inventor já imaginava tal helicóptero sob a forma de uma imagem que sua imaginação via. Antes de criar um poema, a imaginação do poeta vê cada verso através de sua imaginação criativa. O músico também vê a música no sentido de ter um percepto ( o “ver” aqui não é apenas visão restrita aos olhos).O inventor inventa realidades tecnológicas novas, o artista cria sentidos novos para as coisas. O inventor e o criador adquirem a capacidade de ver coisas que ainda não existem, a não ser no próprio pensamento que as concebe.
Mas nem todas essas coisas assim vistas se tornam realidade. A fantasia, por exemplo, nunca pode se tornar real: ela não pode ser inventada ou criada, e é por isso que o risco da fantasia é quando ela se torna mórbida, e aquele que fantasia crê que o imaginado é real, entrando assim no delírio. O delírio mórbido não é, como se imagina, uma exacerbação da imaginação, mas tão somente a sua cegueira, a sua incapacidade de ver a fantasia como fantasia, tomando-a como realidade.O surrealismo não é o delírio restrito a uma subjetividade , mas imaginação que , artisticamente, cria imagens surreais. A fantasia é individual e sempre permanecerá individual. A inventividade e a criatividade nascem de uma subjetividade individual que, através da imaginação, torna coletivas suas produções.Nise da Silveira conseguiu tirar os loucos que ela tratou da fantasia louca que os dominava e os fazia sofrer. Pintando, esculpindo, os loucos começaram a despertar os olhos da imaginação artística, de tal modo que eles se tornaram  capazes de diferenciar o que fantasiavam do que pintavam, criando a noção de que o que pintavam era arte, e que o que fantasiavam era uma incapacidade de criar, inventar, viver.Pode haver, e quase sempre há, tristeza e melancolia nas fantasias, dado a expectativa seguida de frustração que as acompanha; mas o que distingue a criatividade é sempre a alegria: alegria espinosista de aumentar o poder de agir, o sentimento de existir.
A imaginação vê o que a inventividade e a criatividade apenas pensam de forma  indeterminada, sem ter ainda existência. Assim, pela prática da imaginação inventamos ou criamos, e dessa forma aumentamos o que chamamos de realidade. “Inventar aumenta o mundo”, já dizia o Manoel de Barros.Não existe uma oposição entre realidade, criatividade e invenção, a não ser para aquele que tem a imaginação muito embotada. Mesmo a ciência precisa da inventividade e da criatividade; logo, da imaginação.
Uma exposição, por exemplo,  tem frutos da inventividade técnica ( luminotecnia, design, arquitetura, dispositivos tecnológicos, cenografia) e da criatividade poética. Ela é a combinação dessas duas atividades da imaginação orientadas pelo saber-fazer museológico-museográfico.
Assim, criar e inventar não é apenas fantasiar. Contudo, não há como se erradicar da alma humana a fantasia , e  nem se deve querer   isso.Todas as crianças nascem muito fantasiosas. Entretanto, para elas se tornarem inventivas e criativas são necessárias outras coisas. A fantasia se confunde com a própria liberdade subjetiva da alma.  Os inventores e criadores das mais diversas áreas são aqueles que não apenas fantasiam, como fazem os neuróticos que consomem artes meramente escapistas ou clicherosas, ou então os psicóticos fechados em seu mundo, pois suas atividades criativas e inventivas (re)inventam e (re)criam sentidos para o que chamamos de realidade, que nada mais é do que aquilo que fazemos dela. A fantasia às vezes pode se transformar em fuga da realidade, ao passo que a criatividade e a inventividade são práticas de mudar uma realidade, vislumbrar outras, enfim, tornar o impossível possível. Ou ao menos tentar, ousar, propor.
Talvez a maior fantasia, a mais perigosa, seja aquela que , ignorando-se, se toma como a própria realidade em si, como  “objetividade ou essência das coisas”,  passando a se impor como modelo àquilo que dele se difere, tentando submetê-lo ou destrui-lo. Tal é a fantasia do “Poder”, da “Verdade”, da “Pureza”. Quando isso acontece, tal fantasia poderá se armar com os frutos da inventividade, como as tecnologias. Não nos esqueçamos que “leis” e “livros” também são frutos da tecnologia, ou melhor, são tecnologias  jurídicas e intelectuais. Muitas leis e livros se colocam a serviço de fantasias fascistas ou assemelhadas.Contudo, a parte que sempre resiste é a da criatividade. Hitler, em sua fantasia, sonhou ser um grego. Ele empregou a inventividade da tecnologia bélica e arquitetural para construir para si uma Nova Atenas. Mas a criatividade grega não nasce do mármore, e sim do pensamento livre , democrático, poético. Há na criatividade  um elemento de resistência que nos livra das fantasias que põem em perigo a pluralidade da realidade.  A fantasia mórbida pode escapar de uma subjetividade louca , configurar-se como especulação política, moral ou mesmo religiosa, propagar-se por outras subjetividades com o auxílio de tecnologias e inventividade, também as tornando loucas, mas de uma loucura que se quer “normal”. Quando isso acontece, não será tolerada a criatividade; ou esta , se tolerada, será reduzida ao clichê de si mesma. Por que isso? A inventividade produz apenas coisas; e as coisas , por não possuírem desejo, podem ser empregadas a serviço de uma fantasia mórbida que obtém poder, ao passo que a criatividade inventa ideias, e estas são a saúde do pensamento.Em todo totalitarismo , não importando se político , comportamental ou acadêmico,são sempre os criativos os que sofrerão as maiores consequências.E são sempre eles, e neles, que nascem e perseveram as resistências.
A  mentira, por exemplo, lança suas raízes na fantasia, ocultando realidades; já a criatividade produz a ficção como perspectiva sobre uma realidade.Através dessa perspectiva criada,porém, aprendemos sobre a realidade, inclusive acerca da realidade da própria linguagem. E nesse aprendizado aprendemos coisas que a mera razão não sabe... 
A lição da criatividade é nos tornar criativos, e para isso não existem regras ou cartilhas. Supor que se aprende a ser criativo  lendo cartilhas é fantasia de uma pedagogia sem imaginação. É nos tornando criativos que  aprendemos, criando,  o sentido singular, às vezes estranho, da realidade intangível do próprio pensamento.

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Nota sobre a ideia de fantasia na filosofia


Pensai que tudo o que pode alcançar-se por vias químicas 
é acessível por outros caminhos...
...Oh psicodelia.
Deleuze

David Hume, o filósofo empirista, dizia que as ideias nascem das sensações. Não há  ideia que não tenha nascido da sensação. Depois, ele precisa seu pensamento e diz: não há oposição entre a ideia e a sensação, pois a ideia nada mais é do que uma sensação enfraquecida, desvitalizada. Mas quando a ideia “entra” em nossa mente ela não penetra em uma casa vazia. Nossa mente não é uma casa vazia. Assim como uma casa pré-determina o percurso que faremos dentro dela em razão dos compartimentos ou cômodos que ela tem, quando a ideia entra em nossa mente ela se submeterá a certas exigências da nossa mente.
Nossa mente não consegue, por sua natureza, lidar com duas  coisas: o imprevisível e o caos. E aqui está o problema: a origem das ideias, segundo Hume, é imprevisível, pois vem de algo que existe fora da mente. Então, para controlar essa natureza imprevisível e caótica da ideia, a mente tem uma arma: as regras. É com as regras que a mente luta contra o caos das sensações e com a imprevisibilidade de tudo o que existe fora dela e que ela não tem como dominar, dado que a mente se percebe existindo em um mundo que não depende dela para existir, embora ela precise desse mundo para ser uma mente, apesar de ela não saber o que esse mundo é em si. Para proteger-se do caos, para não ser ela própria um, a mente se arma com regras. Estas não legislam sobre as coisas tais como elas são, elas se aplicam apenas às ideias, que são a existência mesma, porém enfraquecida. Digamos que a ideia não é o corpo que a roupa veste, mas a roupa sem o corpo. Deste ela mantém apenas a forma, o vestígio, a semelhança. As regras da mente apenas valem para o caos que se enfraqueceu e se tornou ideia, mas nunca as regras poderão um dia transformar totalmente o caos em objeto transparente às regras de nossa mente. Todavia, como a existência humana se dá na superfície das coisas, e não na sua profundidade , as regras modelam nosso mundo, e cremos que nosso mundo é “o” mundo.
São três as principais regras que constituem nossa mente, e por meio das quais a mente conformará as ideias: causalidade, identidade, espaço/tempo.Fora da mente não existe causalidade, identidade, espaço e tempo. Porém, essas regras são “vazias”. Para elas ganharem vida, elas precisam ser preenchidas com um conteúdo,  esse conteúdo são as ideias. É aqui, e não antes,  que surge a  percepção. Ter percepção não é a mesma coisa que ter sensações. Estas antecedem aquela. As sensações são as ideias mesmas.  A ideia  é , ela mesma, uma sensação que se enfraquece e deixa de ser o que ela é para se transformar em outra coisa dentro da mente, quando então a sensação enfraquecida se conforma às exigências de haver regras, causas, identidades, sucessão temporal e contiguidade espacial. Nela mesma, a ideia é a sensação mesma, e esta não é uma coisa.Então, a ideia não é ideia de algo, mas enfraquecimento de algo que se torna então ideia, e como  ideia pode entrar em uma mente e ser regrada, tornando-se assim representação de uma coisa, de um  objeto.Quando a sensação enfraquecida é “domada” pelas exigências da mente, somente aí nasce o que chamamos de “percepção”:  percebemos então uma cadeira, um homem, uma coisa, enfim, percebemos o que julgamos ser “a inquestionável e sacrossanta realidade cotidiana”, que somente os filósofos, os loucos e as  crianças teimam em não aceitar como óbvia, natural. Além disso, a ideia que nasce da sensação é sempre ideia singular,simples, ao passo que, submetidas às regras, as ideias simples se unem a outras, formando ideias compostas. “Cadeira”, por exemplo, é uma ideia composta de outras ideias. Tudo o que percebemos , e que chamamos de realidade objetiva, são já ideias compostas, isto é, ideias que se unem a outras segundo a regra da identidade, sobretudo.
 Nossa percepção é construída, não é natural. As regras da mente são projetadas para fora como se pertencessem à  própria natureza das coisas. As regras da mente não são individuais, e nem apenas biológicas. Segundo Hume, o natural e o social se confundem. O que hoje julgamos natural não o era para os homens de sociedades passadas. E o que hoje julgamos natural  não o será para as sociedades que virão. O homem medieval julgava que a bruxa era a causa da peste. Hoje o homem julga que são os germes a causa. Há algo em comum entre o medieval e o homem de hoje: a crença na ideia de causa. Talvez, quem sabe, no futuro se julgue que as doenças têm outras causas, mas ainda assim haverá a crença de que há uma causa. Essas regras valem não apenas para o âmbito do conhecimento, elas valem também para o mundo das práticas.Por exemplo, em toda época, em qualquer sociedade, os homens sempre acharam que a felicidade tem uma causa. Para alguns, a felicidade estava na contemplação do Bem; para outros, na posse de muitas mulheres; há ainda os que dizem que a causa está no acúmulo de bens. A ideia de causa define o que os homens acreditam ser  “o normal”.O que caracteriza toda época é que cada época julga ser sua normalidade o normal de todas as épocas.E a época mais terrível é aquela que julga que todas as épocas  que a antecederam eram apenas esboços para se chegar a ela, e que ela é a época definitiva, além da qual não haverá nenhuma outra, pois ela é  o próprio "fim da história".
O artista, porém, parece escapar do mero domínio das regras da mente, e é por isso que ele é um extemporâneo, alguém que escapa aos determinismos comportamentais de sua época histórica.Mais do que histórico, o artista é um devir. Nunca o artista se contenta com a felicidade dos “normais” de sua época histórica, sobretudo com a felicidade e sucesso daqueles que são considerados os "artistas normais " de sua época, os quais a mídia explora e vende.Ele quer ir além das regras da mente, para assim viver/experimentar o perigoso lugar onde as ideias nascem. Ou melhor, ele quer fazer o caminho contrário ao das ideias. Estas nascem das sensações, elas são as sensações mesmas, porém enfraquecidas, e que se tornam ideias dentro da mente, ou “representações” das coisas que imaginamos perceber fora de nós como "mundo objetivo". O artista desce o caminho , ele o refaz. Primeiramente, ele precisa abandonar a certeza lógica e social das regras. Ele precisa vencer a causa, duvidar das identidades...E não raro esse “vencer” toma ares de perda, de fracasso, de insucesso ( para aqueles que vencem graças às identidades, às causas e aos valores dominantes de dada sociedade). Tampouco o  artista  é um refém da fantasia que torna a mente paralela ( “esquizo”) à realidade, pois ele vai além da mente socialmente conformada, ele busca o ponto que antecede o enfraquecimento da ideia, pois ele quer a potência, ele quer a vida mais viva, mesmo que para isso lhe faltem ideias.
Ele sai da representação, e segue a ideia em direção ao seu nascimento, ele quer ver onde ela nasce: saindo da casca oca do universal,  ele vai ao singular...Retirando a roupa, ele quer ver o corpo nu das coisas.À medida em que ele se aproxima do singular, a sensação vai ganhando força, existência, intensidade....E quando  chega nesse ponto,  ele faz a mais estranha das descobertas, uma descoberta alucinante, fantástica, que desarma  nossa mente lógica e suas regras, tanto as regras lógicas quanto as sociais. O artista descobre que seu caminho de ir para fora da mente é, ao mesmo tempo, uma vereda para se aprofundar ainda mais dentro da mente....E que a origem da ideia é a origem da própria mente.Ou seja, não há origem como ponto inicial , há apenas meio , processo. Somente quando a mente está sob regras, socialmente determinada, é que ela tem a ilusão, ilusão científica e do senso comum, de que existe uma oposição entre a mente e uma realidade pronta que existe fora dela. Contudo, quando o artista explora e se explora, ele descobre que o extremo do mundo externo  e o extremo do mundo interno se tocam e embaralham suas fronteiras, formando assim uma terra incógnita.E o que vemos aí? Não vemos mais regras.
Qual o valor das regras? Estabelecer critérios para a combinação ou síntese das ideias. Por exemplo, pela regra da causalidade estabeleço uma conexão entre duas ideias: vejo a ideia de calor, depois percebo a ideia do evaporar, e sintetizo uma ideia com a outra, emitindo um juízo: “o calor é causa da evaporação(efeito)”. Quando vamos a esse ponto obscuro onde mente e matéria  são indistintos, as  ideias não deixam de se combinar, porém elas se combinam aleatoriamente, sem regras. Tudo se torna possível....Torna-se possível uma pedra falar, uma serpente voar, uma nuvem ter olhos...Segundo Hume, esse é o mundo da fantasia. A fantasia é uma combinatória sem regras. Logo, a mente não tem o poder de controlar e regrar a fantasia.E é isto o caos: não a desordem, mas uma combinatória de elementos sem a menor causalidade, sem a menor identidade, sem antes, durante ou depois, ou sem estar em algum lugar.
Phantasiaphantasma. Na mitologia havia um personagem chamado Phantaso, que era o ser responsável pela produção  das imagens do sonho.Da mesma raiz vem o termo “fenômeno”: aquilo que aparece. No sentido filosófico, a diferença entre fantasia e fenômeno está no fato de que o fenômeno aparece para a consciência desperta, ao passo que a fantasia aparece para a consciência adormecida, sonhante. Logo, é a consciência, ou mente, que difere fantasia e fenômenos. Neles mesmos, se retirarmos a relação que eles estabelecem com a consciência, não existe diferença entre fantasia e fenômenos. Para a fenomenologia, por exemplo, fenômeno é tudo aquilo que aparece para a nossa mente como sendo a realidade que percebemos ( é o mundo que o senso comum chama de realidade , enfim, a própria  “Matrix”).
O artista vai ao caos e volta, e retorna de olhos vermelhos, pois foi ao sol que ele foi, para assim ver/sentir onde nasce o dia. Ele nos faz pensar/sentir  o que não o consegue a mente socialmente regrada: pensar o singular, o acaso, as  formas de duração não redutíveis ao tempo, as diferenças que não cabem na forma geral da identidade...


                          
                             ( Hieronymus Bosch, Jardim das Delícias)


                                                             
                                                     (Arthur Bispo do Rosário)


































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