sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

o gosto filosófico



(trecho de artigo publicado na Revista Trágica)

- O gosto como faculdade problemática
Segundo Deleuze e Guattari, os conceitos são criados, os personagens conceituais são inventados e o plano de imanência é traçado. Criar, inventar e traçar são atos: atos da potência. Potência de criação, de fabulação e de diagramaticalização.  Deleuze e Guattari nos lembram que tais atos são irredutíveis entre si [1]. Por isso, eles são precedidos por uma faculdade que os co-adapta. Esta faculdade de co-adaptação é a faculdade do gosto: “um problema, em ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma questão, mas em adaptar, co-adaptar, com um ‘gosto’ superior, como faculdade problemática, os elementos correspondentes em curso de determinação”[2].
A razão traça o plano, a imaginação inventa os personagens, o entendimento cria os conceitos. Mas antes do criar, do inventar e do traçar há um gostar indiscernível do viver a filosofia como questão não apenas teórica, o que implica também um modo de vida, um desejo. Nesse gostar como experimentação dos problemas, o conceito ainda está indeterminado, os personagens ainda restam no limbo, ao passo que o plano ainda permanece transparente. O “ainda” como modo intrínseco de uma duração enquanto devir-problema. É dessa faculdade indeterminada, anônima, que nasce o rigor dos conceitos, bem como os nomes dos personagens: “todo limite é ilusório, e toda determinação é negação, se não está numa relação imediata com o indeterminado”[3]. É esse gostar, inclusive, que nos protege do desgosto que a própria filosofia pode engendrar naqueles que gostam dela e a vivem, mais do que vivem dela. O gosto como expressão de uma salut.
Ciência, arte e filosofia enfrentam o caos. A primeira o enfrenta com um plano de referência, a segunda com um plano de composição, já a filosofia evoca um plano de imanência. Referência, composição e consistência: eis as armas, armas da afirmação, pois “só podemos destruir sendo criadores”, lembra-nos Nietzsche.  O caos não é ausência de determinação, mas velocidade com que as coisas, não importa quais, mal se esboçam e já morrem, mal saem do útero e já vão sumir no túmulo, desconhecendo o que é ficar de pé: “O que caracteriza o caos não é exatamente a ausência de determinação do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e desaparecem”[4]. O caos mental, como flutuatio animi, é a passagem do útero ao túmulo dentro da mente e, não raro, a indistinção dos dois. Nem referência, nem consistência, tampouco composição, o caos é a inconsequência [5], e esta pode ser muito bem determinada.
Antes do criar, do inventar e do traçar há um gostar do qual aqueles atos são a consequência.  Espinosa, por exemplo, não define a filosofia como “philia”, mas como “emendatio do intelecto” e “salut”: emendatio (ou correção) do instrumento, o seu perseverante “polimento” ou salut, daí o aspecto “crítico e clínico” como gosto-potência que nos livra dos desgostos da potesta. Se é Nietzsche quem “fundou a geofilosofia” [6], é   Espinosa quem “erigiu o melhor plano de imanência” [7]. O erigiu a partir de uma potência anônima, incógnita, um gosto, uma salut como razão contingente.
Deleuze e Guattari advertem: “qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir o que eles disseram, ou fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que mudam necessariamente?”[8]. Antes de tudo, é o gosto pelos problemas que mudam que dão sentido ao devir filosófico:

O que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incognita  nunca reconhecida , nem reconhecível.[9]





[1] DELEUZE, G; GUATTARI, F., op cit, p.101.
[2]  Ibidem, p. 172.

[3] Ibidem,p.156.

[4] Ibidem, p.59.

[5] Ibidem, p.153.

[6] Ibidem, p.133.

[7] Ibidem, p. 79.

[8] Ibidem, p.17.

[9] DELEUZE, G. Diferença e repetição, tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,1988, p. 224. Terra Incognita : atribui-se  a Tácito  ( séc. I d.C.) a criação desse termo, embora ele esteja esboçado também em Lucrécio.A Terra Incognita expressava no pensamento romano a necessidade de existir uma terra inexplorada. Eles que foram grandes exploradores e conquistadores de terras, acreditavam, porém, que existia uma Terra Incognita, inexplorada, desconhecida. E isso não era para eles uma dúvida, mas uma certeza. As terras conhecidas podiam ser cercadas, povoadas, juridicizadas, medidas, reconhecidas...Mas a Terra Incognita somente podia ser imaginada, sentida, pensada, desejada...e nesse desejo/pensamento que as vislumbrava não podia haver cercas, limitações, receios, recognições, contratos, potesta, enfim, a Terra Incognita não podia ser medida ou conhecida com as lentes e réguas das terras conhecidas. A Terra Incognita, porém, não era um Eldorado, tal como cobiçaram os colonizadores, tampouco uma Terra Utópica, como sonharam os renascentistas. A Terra Incognita era uma heterotopia: um lugar (topos) diferente de todas as terras conhecidas. Não se a cobiçava por nela haver ouro. Mesmo porque o ouro , como todo objeto de recognição, pertence a terras exploradas.

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