(trecho de artigo publicado na Revista Trágica)
- O
gosto como faculdade problemática
Segundo
Deleuze e Guattari, os conceitos são criados,
os personagens conceituais são inventados
e o plano de imanência é traçado.
Criar, inventar e traçar são atos: atos da potência. Potência de criação, de
fabulação e de diagramaticalização.
Deleuze e Guattari nos lembram que tais atos são irredutíveis entre si [1].
Por isso, eles são precedidos por uma faculdade que os co-adapta. Esta
faculdade de co-adaptação é a faculdade
do gosto: “um problema, em
ciência ou em filosofia, não consiste em responder a uma questão, mas em
adaptar, co-adaptar, com um ‘gosto’ superior, como faculdade problemática, os elementos
correspondentes em curso de determinação”[2].
A razão traça o plano, a imaginação inventa os
personagens, o entendimento cria os conceitos. Mas antes do criar, do inventar
e do traçar há um gostar
indiscernível do viver a filosofia como questão não apenas teórica, o que
implica também um modo de vida, um
desejo. Nesse gostar como experimentação dos problemas, o conceito ainda está indeterminado, os personagens
ainda restam no limbo, ao passo que o
plano ainda permanece transparente. O
“ainda” como modo intrínseco de uma duração enquanto devir-problema. É dessa faculdade indeterminada, anônima, que nasce
o rigor dos conceitos, bem como os nomes dos personagens: “todo limite é
ilusório, e toda determinação é negação, se não está numa relação imediata com
o indeterminado”[3]. É
esse gostar, inclusive, que nos protege do desgosto que a própria filosofia
pode engendrar naqueles que gostam dela e a vivem, mais do que vivem dela. O
gosto como expressão de uma salut.
Ciência, arte e filosofia enfrentam o caos. A
primeira o enfrenta com um plano de referência, a segunda com um plano de composição,
já a filosofia evoca um plano de imanência. Referência, composição e
consistência: eis as armas, armas da afirmação, pois “só podemos destruir sendo
criadores”, lembra-nos Nietzsche. O caos
não é ausência de determinação, mas velocidade com que as coisas, não importa
quais, mal se esboçam e já morrem, mal saem do útero e já vão sumir no túmulo,
desconhecendo o que é ficar de pé: “O que caracteriza o caos não é exatamente a
ausência de determinação do que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam
e desaparecem”[4]. O
caos mental, como flutuatio animi, é
a passagem do útero ao túmulo dentro da mente e, não raro, a indistinção dos
dois. Nem referência, nem consistência, tampouco composição, o caos é a inconsequência [5],
e esta pode ser muito bem determinada.
Antes do criar, do inventar e do traçar há um gostar do qual aqueles atos são a consequência. Espinosa, por exemplo, não define a filosofia
como “philia”, mas como “emendatio do
intelecto” e “salut”: emendatio (ou correção) do instrumento,
o seu perseverante “polimento” ou salut,
daí o aspecto “crítico e clínico” como gosto-potência
que nos livra dos desgostos da potesta.
Se é Nietzsche quem “fundou a geofilosofia” [6],
é Espinosa quem “erigiu o melhor plano
de imanência” [7]. O
erigiu a partir de uma potência anônima, incógnita, um gosto, uma salut como razão contingente.
Deleuze e Guattari advertem:
“qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos: repetir o que eles disseram,
ou fazer o que eles fizeram, isto é, criar conceitos para problemas que mudam
necessariamente?”[8].
Antes de tudo, é o gosto pelos problemas que mudam que dão sentido ao devir filosófico:
O que se estabelece no novo não é precisamente o
novo, pois o próprio do novo , isto é, a diferença, é provocar no pensamento
forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um
modelo totalmente distinto, numa terra incognita nunca reconhecida , nem reconhecível.[9]
[2]
Ibidem, p. 172.
[3] Ibidem,p.156.
[4] Ibidem, p.59.
[5] Ibidem, p.153.
[6] Ibidem, p.133.
[7] Ibidem, p. 79.
[8] Ibidem, p.17.
[9] DELEUZE, G. Diferença e repetição, tradução de Luiz Orlandi e Roberto
Machado, Rio de Janeiro, Graal,1988, p. 224. Terra Incognita : atribui-se a Tácito
( séc. I d.C.) a criação desse termo, embora ele esteja esboçado também
em Lucrécio.A Terra Incognita
expressava no pensamento romano a necessidade de existir uma terra inexplorada.
Eles que foram grandes exploradores e conquistadores de terras, acreditavam,
porém, que existia uma Terra Incognita,
inexplorada, desconhecida. E isso não era para eles uma dúvida, mas uma
certeza. As terras conhecidas podiam ser cercadas, povoadas, juridicizadas,
medidas, reconhecidas...Mas a Terra
Incognita somente podia ser imaginada, sentida, pensada, desejada...e nesse
desejo/pensamento que as vislumbrava não podia haver cercas, limitações,
receios, recognições, contratos, potesta,
enfim, a Terra Incognita não podia
ser medida ou conhecida com as lentes e réguas das terras conhecidas. A Terra Incognita, porém, não era um
Eldorado, tal como cobiçaram os colonizadores, tampouco uma Terra Utópica, como
sonharam os renascentistas. A Terra Incognita
era uma heterotopia: um lugar (topos)
diferente de todas as terras conhecidas. Não se a cobiçava por nela haver ouro.
Mesmo porque o ouro , como todo objeto de recognição, pertence a terras exploradas.
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