quinta-feira, 22 de setembro de 2016

os aparelhos de captura

Segundo Deleuze e Guattari, o Contrato é um “aparelho de captura” que funda as sociedades modernas. O poder não apenas reprime, ele também captura. Ele captura desejos, pensamentos, vidas. Não é o modo de produção que define um tipo de poder, é um tipo de poder que transforma a produção em modo. E o que se produz primeiro é o que é capturado: ao capturar, o poder produz o que captura. O Contrato é o principal aparelho da captura do estado moderno.
Todavia, apesar do que comumente se pensa, antes de haver o contrato entre duas pessoas, há um Contrato entre o Eu e o eu no interior de uma mesma pessoa. Tal é a natureza do Contrato: um poder de subjetivação que cria um Sujeito. Mas este Sujeito nasce cindido, ele é dois: Transcendental e empírico. O primeiro, o Eu Transcendental, é o fiador moral , racional, da existência social, psicológica, jurídica, econômica, enfim, da existência histórica e sensível do homem empírico. É o Eu Transcendental que confere inteligibilidade ao que faz, sente e fala o homem empírico. Ninguém nunca viu esse Contrato, embora sejam visíveis os efeitos do seu rompimento. A mentira, a dissimulação, o engodo, a trapaça, a maledicência, a imoralidade, a corrupção e tudo o que brota dela, são os efeitos, entre outros, da quebra daquele Contrato. Quem o pode transgredir é sempre o eu empírico, quando este torna cego o seu desejo. Mas sem o Contrato que o torna uma Pessoa Moral, Política e  Econômica , o eu empírico torna-se o perverso, o subversivo, o marginal. Se o Contrato já não pode capturá-lo pela subjetivação, o poder o tornará o objeto de práticas objetivas de sujeição:  as prisões, os hospitais psiquiátricos, as excomunhões de toda ordem.
Em Espinosa, e aqui está um dos aspectos do seu anticontratualismo, o Eu e o eu são idéias da imaginação, eles nascem das afecções corpóreas, ao passo que a parte eterna da alma tem com o Absolutamente Infinito, a Natureza, uma relação que não é de contrato, de subjetivação, mas de produção , de objetivação de si através de uma prática de acordo com o pensamento que a acompanha. Mais do que nos tornar sujeitos, a prática em Espinosa tem por causa eficiente um pensar que nos faz agentes. A palavra “agenciamento” nasce de “agente”. O agente é aquele que age. O agente  é o sujeito de um movimento, sobretudo quando este movimento é o pensar. O pensar é um movimento que nos torna agentes, para assim vencer tudo aquilo que nos separa de nossa potência de agir. Enquanto agentes, devimos sujeitos. Mas só nos tornamos sujeitos agenciados. Pode parecer paradoxal, mas não se faz um sujeito sem ao menos dois. Não dois sujeitos, mas dois  processos .Só nos tornamos sujeitos na imanência de um agenciamento. Para falar como Espinosa, o agenciamento é um encontro, um bom encontro.
É sempre como parte de um agente coletivo que nos tornamos agentes. Um sujeito coletivo é um agenciamento cujas partes são agentes. O Eu e o eu não são agentes, eles  são pacientes  de afecções que os produzem como sujeitos isolados , à parte de todo coletivo, de toda multiplicidade.Espinosa afirma que existe uma comunidade de essências. Nela, cada essência está conectada com todas de forma necessária. Estar conectada não significa estar composta: a composição nasce de um encontro, ao passo que a conexão é o que faz nascer cada coisa. A existência do homem se acha afastada de sua essência. É por isso que a existência do homem possui outras formas de comunidade distintas daquela que constitui as essências. Mas não há como o homem aproximar sua existência de sua essência sem que ele viva sua existência de acordo com a idéia de comunidade. O estado de natureza, por exemplo, é ausência de comunidade exatamente porque a existência se encontra separada da essência. Comunidade não significa homogeneidade. Ao contrário, toda comunidade é complexa. É no plano da existência que ocorre a composição: esta liga não apenas uma existência à outra, ela liga também cada existência à sua essência mediante a essência comum que conhece ter com a outra.A composição tem um termo contrário: a decomposição, a tristeza; mas não há contrário à conexão, uma vez que isso corresponderia a um viver à parte da realidade, como um todo à parte. Quando buscamos composições, bons encontro, produzimos o necessário de acordo com a conexão necessária, a multiplicidade,  que nos produziu.
 É preciso escapar de duas idéias inadequadas: a primeira delas tem origem em Descartes, e crê que só nos tornamos sujeitos quando nos identificamos com um   cogito  apartado paranoicamente  do mundo; a outra ideia , imagem invertida da primeira,  ora com tons de  cinismo , ora de ceticismo, municia os diversos oportunismos que,  pregando o  ocaso  do pensamento, anunciam   o fim da história e o  triunfo do Mercado Absoluto. Segundo tal oportunismo cínico, somente o Mercado seria verdadeiramente o Sujeito.






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