terça-feira, 18 de agosto de 2015

corpo e alma





CORPO E ALMA


"E a alma aproveita prá ser
a matéria e viver..."
Marisa Monte

Tudo o que está em nossa imaginação e em nossa memória nasceu pela relação da alma com o corpo enquanto este existe no tempo e é afetado pela ação dos outros corpos.A maioria dos homens concebe o que é eterno a partir dessa ideia confusa das coisas que estão na  memória e na imaginação, por ignorarem que as ideias nascidas da memória e da imaginação não podem ser eternas, na medida em que nasceram de afecções ou modificações do nosso corpo ( enquanto ele sofre a ação dos outros corpos e, assim, padece).
Mas quando a nossa mente consegue formar uma ideia adequada do nosso corpo, o faz compreendendo que este é uma modificação do corpo de Deus, uma afecção de Deus, uma afecção ativa, e dessa ideia adequada do corpo nasce uma alegria que não se origina das afecções do corpo enquanto este é modificado pelos outros corpos finitos, mas do corpo enquanto ele é afecção do corpo de Deus, que é sempre ativo, amoroso, potente. Assim, quando a mente forma uma ideia adequada do corpo, ela forma uma ideia adequada de si mesma também, na medida em que o corpo nada mais é do que a mente apreendida sob a perspectiva da extensão. Assim, o conhecimento do terceiro gênero busca alcançar a singularidade de cada modo não enquanto este tem algo em comum com outro modo, mas enquanto cada modo é uma expressão singular de Deus.
O conhecimento do que cada modo tem em comum com outro é o conhecimento do segundo gênero, ao passo que o “conhecimento” do primeiro gênero é confuso na medida em que cada coisa se imagina como um todo à parte, sem nada em comum.
Assim, somente podemos compreender o que temos em comum se compreendermos, antes, o que temos de diferente e singular. E o que temos de diferente nunca pode existir à parte do todo, mas como parte singular dele, que é sempre processo, Potência.
Sempre que amamos algo, diz Proust, singularizamos este algo da massa, do rebanho. O Amor é prática de singularização, de potencialização da diferença.Então, nada há de mais  singular do que Deus, a Natura Naturante.É por intermédio desse amor, que é conhecimento do singular, que amamos a nós mesmos como objeto desse amor, e não como sujeito à parte. Não somos nós que somos o sujeito desse amor, nós somos o objeto dele.
Segundo Espinosa, existem duas espécies de seres: o que existe em si mesmo , Deus,e os que existem em outra coisa, os modos. O único ser que existe em si mesmo é Deus, nós existimos nele . Não como um carrapato agarrado em um mamífero, mas como uma onda que existe no mar, ou um grau de verde que existe no verde.Assim, não é o amor que existe em nós, somos nós que existimos nele.E sem ele, sem o amor, não podemos existir e nem sermos concebidos.Esse amor é conhecimento do singular enquanto modo da Potência Absoluta.Quem ama o necessário ama sem sofrer, sem esperar: ama por ser.Não é, portanto, uma amor romântico, fantasístico; diferentemente, não é um amor por uma coisa, é um amor que é ele próprio um ser do qual nós somos uma parte. Assim, amando esse ser amamos a nós mesmos como parte desse ser. Amando esse ser amamos todos os seres que são partes ou modo dele, incluindo o ser que nos encontramos e elegemos para ser , para nós, a expressão singular e insubstituível do todo.Não podemos entrar em contato com o todo a não ser por uma de suas partes, a começar pela parte que somos.
O amor psicanalítico concebe o amor segundo o passado, segundo a memória. Nosso primeiro objeto de amor está perdido na infância, e buscamos nos amores atuais uma substituição para essa falta. Assim, todo amor novo nada mais seria do que um segundo amor que busca realizar o impossível: presentificar  um primeiro amor que sempre será falta e que, portanto, nunca pode ser plenamente substituído, a não ser na imaginação. Desse modo, nossa memória se lembra de algo inalcançável, e nossa imaginação cria a ilusão de que o amor atual substitui o amor antigo.
Em Espinosa, diferentemente, o amor enquanto ação não é objeto de uma memória, tampouco da imaginação.Ele é objeto de um encontro. Amar algo é, primeiramente, não vinculá-lo a  nossas memórias. Amar algo é vê-lo em sua singular novidade eterna, e o que é eterno não pode ser objeto da memória. Quando amamos algo assim, mais do que a memória ou a fantasia, o que é despertado em nós é o desejo de produzir, de criar, de fazer, de existir.Mais do que ressuscitar coisas na memória ou inflar a fantasia, o amor espinosista potencializa a nossa percepção.Amar algo não é lembrar ou fantasiar, e sim conhecê-la como ela é, embora saibamos que nunca saberemos tudo o que ela pode, tudo o que ela é. Por isso, amar é prática de conhecimento de uma diferença com a qual aprendemos, podendo assim nos libertar da memória das decepções e maus encontros, e criando no mundo uma obra, mais do que meramente a fantasiando.









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