segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

a casa dos pardais



É a minha própria casa,
mas creio que vim fazer uma visita a alguém.
Maria Gabriela Llansol

Segundo Espinosa, a coisa na qual o homem livre menos pensa é na morte.Então, é da vida de que falo e falarei ,não exatamente a minha, mas aquela que flui, que continua, que brota de si mesma e se afirma, e da qual sou e somos uma parte. Penso na continuidade da minha vida através da Vida, e não no seu fim.
Para tal, é meu desejo: quando vier de fora um encontro , o derradeiro mau encontro, que desfará minha maneira de ser, queria então ser cremado.Não quero ficar sob a terra.Não quero lápide,mármore ou placa me identificando . Não queria, porém,  que minhas cinzas  ficassem em um baú: quero que elas sejam colocadas ao pé de uma amendoeira, que elas sejam aí lançadas. Quando eu estiver bem velhinho, desejo até mesmo escolher a amendoeira que devirei.
Ao invés de ser roído pelos vermes cinzas,quero ser sorvido pelas plantas,pelo verde −este mesmo verde que se alimenta do amarelo que atravessa o azul. As raízes serão apenas a porta de entrada para aonde desejaria ir: às flores e, a partir destas, aos frutos, e que eu possa ser  parte de um.Lágrimas, se houver,que sejam apenas as da chuva, lágrimas sem tristeza,que possam me regar.
 Não queria que fosse a amendoeira dentro de  alguma propriedade, destas que ficam no quintal ou calçada de alguém que pretenda ser seu dono,em torno da qual há sempre um limite,uma cerca. Teria que ser uma amendoeira sem dono,impessoal, anônima, “uma” amendoeira,  que fosse apenas a casa dos pardais,sob a qual possa haver o descanso para o viajante, a proteção para as crianças que brincam e o acolhimento para os casais que se amam.
Provavelmente , ela teria que existir em algum parque ou floresta,mas que não fosse inacessível ou isolada. Que eu possa continuar a ser nela, como parte dela , ela que é parte da terra, do cosmos, de deus: simples casa de pardais.




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