Segundo o poeta
Manoel de Barros, há na poesia uma didática. Não uma didática para nos ensinar
cartilhas . A didática que a poesia ensina é uma “didática da invenção”.
Ensinar a
inventar e criar para não sucumbirmos à resignação e ao medo , essa é a lição
de tal didática, lição para aprendermos a nos refazermos.
Manoel diz que
aprendeu essa didática não em livros ou com mestres doutores, ele a aprendeu
com um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”. O poeta
inventou um menino para sê-lo: e é o próprio menino inventado que ensina a
Manoel como (re)inventar-se. Esse menino, diz o poeta, é “a criança que me
escreve”.
Essa criança
lúdico-poética não é uma idade , ela é a própria potência da vida em seu
“minadouro” e novidade. Para que não nos domine a “velhez” , o poeta nos
convida para os seus “exercícios de ser criança”.
“Velhez” ,
segundo o poeta, também não é uma idade, “velhez” é uma forma de mentalidade
refém do “mesmal”. O mesmal é a vida reativa, ressentida, resignada, não
importa a idade que se tenha. Às vezes, até mesmo partes da sociedade são tomadas pela velhez,
engendrando assim servidões e tir4nias. O mesmal e sua velhez são a antipoesia - no sentido existencial,
político e subversivo que a poesia tem.
Na vida, os
exercícios de ser criança consistem em soltar e dar linha na pipa , atirar com
estilingue nas latas, jogar bola na rua , muitas vezes tendo que driblar a
repressão dos guardas . Os exercícios são as “peraltagens” de que são capazes
as crianças.
É preciso
aprender a fazer essas peraltagens com as palavras, para elas serem para nossa
liberdade o que a linha é para a pipa : para horizontar a mente com linhas de
fuga.
Que nossas
palavras também aprendam a driblar as significações dominantes e seus guardas.
Enfim , inventar com as palavras uma lúdica arma, um simbólico estilingue, uma
arma para fazer viver e não para matar, apontada contra a velhez dos reaças.
Como ensina
também Kierkegaard: “O homem seria metafisicamente grande se a criança fosse
seu mestre”.
Certa vez, quando eu era aluno de filosofia, ouvi uma aula belíssima
do professor Cláudio Ulpiano dizendo que
só há uma condição de resistirmos ao poder, ou não sermos seduzidos por ele, seja ele qual for : permanecendo marginais. Ser marginal é estar na margem: nem
dentro , nem fora.
A margem é como uma membrana: um espaço de comunicação entre
o dentro e o fora. O poder, por sua vez, quer sempre o centro, e é por isso que
ele é centrípeto, monopolizador, e a tudo quer subordinar à sua lógica.
A lógica do poder é a
da “bolha” , do espaço fechado, e por isso teme aberturas, horizontes.
Mas quem se coloca “fora”, num espaço de pretensa “neutralidade”
, com certeza não se compromete, porém perde o poder de agir: constata, critica,
reclama, mas não age.
Tudo tem uma membrana. E é nesse espaço da membrana que é
preciso se colocar se quisermos construir linhas de fuga. Como diz Manoel de
Barros, é na membrana que podemos desabrir algo que está fechado.
Disse isso por conta desse espaço aqui, o facebook. De uns
tempos para cá, eles adotaram a prática de diminuir o alcance das postagens de
todos que não se tornam “produtor de conteúdo” para ele.
Eles fazem uma espécie de chantagem: “se você não quiser ter
suas postagens invisibilizadas e sua página escondida, submeta-se ao nosso
comércio”. Comércio do que exatamente? Comércio de nós mesmos, pois é disso que
se trata: nós somos o produto que eles vendem, comprando-nos antes.
Inclusive, como todo Mefistófeles, eles prometem que se
vendermos nossa alma para eles teremos uma recompensa:
nossas postagens serão “bombadas”, “impulsionadas” e “turbinadas” pelos robôs e
algoritmos deles, não importa o conteúdo ou a qualidade da postagem.
Eu disse NÃO a essa chantagem. Não sou funcionário deles,
não “sou produtor de conteúdo digital” . Os conteúdos que coloco aqui, vêm da
vida real. Não sou “produtor de conteúdo digital” desse Mefistófeles digital, minha
profissão é: professor.
Não tenho o menor interesse que minhas postagens sejam “turbinadas”
por robôs acéfalos. Todos nós que postamos aqui , sobretudo textos, desejamos sim ser lidos e,
se merecermos, recebermos partilhas e comentários, mesmo que discordantes. Escrevemos
para pessoas, são elas que nos interessam e justificam nossa presença aqui, não
robôs.
Nada contra , claro, quem deseja ser “produtor de conteúdo
digital”, mas o que não pode é o face chantagear todos a sê-lo.
É como professor que me
manterei aqui: na margem, na membrana, como marginal. É na margem disso aqui
que podemos, mesmo estando aqui, não cedermos a isso aqui, não sermos
instrumentos deles ( que são cúmplices do “MAGA”), e empregarmos esse espaço aqui contra eles e a
favor de nós, de nossas lutas sociais e políticas por emancipação e por uma
vida mais digna: lá, no mundo real.
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Como dizia Nietzsche, os homens do poder sempre tentam
passar a ideia de que os valores e a ordem que lhes colocam no lugar onde eles estão, um lugar de privilégios e domínio sobre
os outros seres humanos, esses valores e ordem seriam como
o gelo das geleiras nos picos das montanhas: uma realidade irremovível,
imutável, eterna.
Ante isso, ensinava Nietzsche, a filosofia somente tem serventia
se for como o “vento do degelo”.
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