quinta-feira, 12 de junho de 2025

A singularidade

 

                                A SINGULARIDADE EM KIERKEGAARD[1]

 

O homem seria infinitamente grande,

  se a criança fosse seu mestre.

     Kierkegaard

                                                   

Certas poesias suscitam cores. Quando as lemos, vemos cores, cores que tingem a alma que as lê e se afeta. Há poesia também na prosa. Há coisas que apenas se pode dizer através da poesia, mesmo que sob a veste da prosa. Os textos do filósofo Kierkegaard suscitam uma experiência poética na qual nossos olhos, nossos olhos do espírito, são inundados por uma intensidade expressa por uma cor: o vermelho. Este vermelho, no entanto, não nos cega, ele nos faz ver. Ele nos faz ver claramente o que somente se pode ver quando ultrapassamos a luz clara da razão. Ele nos faz ver a paixão. Não a paixão meramente passional que nos torna passivos, mas a paixão libertária de um pensamento apaixonado. Somente apaixonado, e apaixonando-se, que o pensamento vence o abstrato dos conceitos mortos, “puros”, estéreis. Somente sob a paixão que lhe é própria que o pensamento também pode nos fazer apaixonar por ele. E o que é um pensamento apaixonado e apaixonante? O pensamento somente pode conquistar essa condição quando descobre e vive a sua singularidade. O que é o singular? O singular é o único.

O singular, o único, tem a cor vermelha, mais o vermelho da brasa do que o vermelho do sangue; ou melhor, a brasa é seu sangue. Segundo Kierkegaard, tornar-se singular implica descobrir a força constitutiva do “estar perante”. O singular não é o que existe só , como “um todo à parte”; o singular é o que existe perante. Existir perante é afirmar a relação, o encontro. É somente existindo perante que o singular encontra e afirma o seu ser próprio.

A singularidade é o inverso do ego. Este nega todo existir perante, dado que imagina existir apenas em si mesmo. O ego nega o outro. No entanto, ele alucina um outro, um outro que ele imagina ser. O ego está sempre querendo ser um outro. O outro que se reflete em um espelho, sobretudo o espelho das coisas. Para fugir de si mesmo, o ego se aliena   nas coisas que ele consome, veste, dirige, compra, vende. O ego está sempre querendo ser um outro, outro este que lhe falta, outro este que lhe trará a coisa que ele deseja, e pela qual ele anseia ter, consumir, mostrar, ostentar, invejar. Paradoxalmente, o ego quer ser a imagem que lhe mostra um espelho qualquer. Ele quer ser um reflexo, um reflexo do mundo que o cerca, e sobre o qual ele se extroverte. A televisão, a novela, a propaganda...fornecem ao ego o outro que ele deve desejar ser, para assim fugir de si mesmo, para assim aceitar e se conformar com a vida que a televisão, a novela e a propaganda lhe oferecem. Ele quer ter outros dentes, mais brancos; ele quer ter outros cabelos, mais lisos; ele quer ter mais amigos, que ele crê ter sendo outro, mesmo que apenas finja ser nas páginas virtuais cheias de sorridentes amigos.

Mas esse querer ser outro encobre o vazio de ser ele mesmo. O ego deseja o automóvel, deseja a casa, deseja a bugiganga tecnológica, deseja a fama, deseja o reconhecimento, deseja o poder, deseja o título....ele deseja essas coisas como um outro que lhe fará ser ele mesmo. É se cercando de coisas que ele imagina se pôr diante dele mesmo, de tal modo que ele reduz o próprio outro ser humano  à coisa. Essa inautenticidade conduz o ego ao desespero. Em Kierkegaard,  o desespero caracteriza um tipo de vida cercada de coisas, coisas estas que cercam um vazio. Esse vazio enseja a dissimulação, o fingimento, o cálculo, o cinismo, a ironia, a inveja, enfim, a angústia como sintoma de uma vida inautêntica.

Afirmar a autenticidade passa pelo “pôr-se diante de”. O “pôr-se diante de” implica em vencer em nós o esconder-se , o dissimular-se. A autenticidade passa pelo colocar-se diante da diferença, como diferença. É o “pôr-se diante de” que singulariza, uma vez que nos faz compor com o outro.

Pôr-se diante dos pais nos singulariza no âmbito da família. Pôr-se diante dos amigos nos singulariza no afeto particular da amizade. Pôr-se diante da sociedade nos torna cidadãos. Mas só nos tornamos filhos autênticos, amigos autênticos e cidadãos autênticos quando nos colocamos diante de, e não “no lugar de”. Colocar-se diante de é afirmar o não-eu como elemento constituinte da nossa própria diferença, e que nos livra de querer ser um eu que vive à parte, à parte da comunidade, à parte de si mesmo. A amizade possui uma “medida” maior do que a família, já que a família é limitada pelo sangue e a amizade não o é. Não posso criar laços sanguíneos com um estranho, mas posso criar laços de amizade. Há uma indeterminação na amizade que não existe na família. Por isso a amizade me amplia mais, ela me aproxima mais da minha singularidade, pois aproximar-se de nossa singularidade não é estreitar-se, mas ampliar-se, sempre através de um agenciamento, de uma relação. Mais ampla do que as relações de amizade são as relações sociais. Nestas, outras virtudes preponderam além da amizade, como a virtude da justiça, a virtude do conhecimento, etc. Assim, não é um mesmo “pôr-se diante de” o colocar-se diante da família, dos amigos e da sociedade. Mas não há como pôr-se diante da sociedade e colocar-se atrás da família, como se esta fosse uma cerca em descontinuidade com o social, como se fosse um mundo à parte. Por outro lado, colocar-se diante dos amigos não implica em colocar-se contra as virtudes que me colocam diante da sociedade. Ampliar-se não significa negar um circuito de menor amplitude. Desse modo, o colocar-se diante da sociedade nos amplia mais do que o colocar-se diante dos amigos, embora estes nos ampliem também. O colocar-se diante da amizade nos amplia mais do que o colocar-se diante da família. Ampliar-se significa: conquistar a autenticidade da nossa singularidade. Uma família que alimenta o edipianismo apenas produz édipos egóicos, que terão dificuldades em se relacionar e produzir a autonomia que compõe a vida social. Uma amizade não autêntica engendra descontinuidades em relação às relações políticas e sociais, de tal modo que se confundirá o amigo com aquele de quem se espera um tratamento de burla às regras, como se houvesse uma antinomia entre a esfera da amizade e a amplitude política do social. Assim, colocar-se diante do social é perceber como política as relações que chamamos de familiares e de amizade. Ampliar-se como singularidade é aumentar a capacidade de compreensão; logo, de ação. Quanto mais egóico é um ser, mais ele reduzirá as relações políticas àquelas de menor amplitude, as relações familiares, desvirtuando, no entanto, a natureza destas ( “déspota” significa, em grego, “pai”).

Quanto maior a amplitude, maior a liberdade que ela implica. As relações sociais têm como base a liberdade. Mas a liberdade não é fazer o que o ego quer , tampouco é a liberdade um mero subordinar-se  à lei; liberdade é um pôr-se diante, inclusive um pôr-se diante das leis.

Quanto maior for a amplitude daquilo em relação ao qual nos colocamos diante, maior é a nossa singularidade, porém menor será a determinação, o limite. Nada é mais sem medida do que o infinito. É colocando-se diante do infinito que podemos conquistar um maior grau de autenticidade, de singularidade. O infinito é o mais indeterminado, e este mais indeterminado é o que, no entanto, mais pode nos singularizar e nos libertar do desespero de uma vida refém do limite das coisas, inclusive o limite, estreito limite, das opiniões que hoje governam o mundo.

Pôr-se diante do absoluto amplia todos os nossos outros pôr-se diante de, uma vez que nos faz sentir mais viva a nossa singularidade. Não há como nos pormos diante de nós mesmos a não ser nos pondo diante de um outro, de uma diferença. O absoluto é um outro do qual somos uma parte singular, viva. Ampliar-se é fazer parte do que é sem medida. E este sem medida não está fora das medidas e as negas. Diferentemente, ele é imanente a tudo aquilo que é autêntico e que se afirma afirmando a relação, o encontro, o agenciamento.

O infinito não tem medida. Porém, é ele que mais nos singulariza quando , com ousadia e paixão, colocamo-nos perante ele.


Uma imagem contendo edifício, mesa, relógio, janela

Descrição gerada automaticamente

  (tirei esta foto de uma exposição sobre os “Heterônimos de Fernando Pessoa”,  no Paço Imperial )



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

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