sexta-feira, 18 de abril de 2025

Manoel de Barros : o monturo

 

Dia desses uma turma me perguntou qual poema de Manoel de Barros eu mais gosto. Respondi que eram muitos os poemas... Mas para não deixar a turma sem resposta, mencionei o poema no qual Manoel fala de um “monturo”.

Notei um ponto de interrogação no rosto de muitos alunos, e um deles me perguntou: “Professor, o  que é um monturo?” Antes que eu respondesse , outro aluno abriu rapidamente o celular e digitou alguma coisa. Voltando-se para mim, falou: “Professor, a Inteligência Artificial do google está dizendo que  ‘monturo é um monte de lixo’ ”.

Com humor, retruquei : “um monturo não é exatamente um monte de lixo,  talvez a IA não tenha sensibilidade para entender essa diferença”, e a turma, concordando , riu.

Prossegui dizendo que o poeta não fala de um monturo literal, mas de realidades que podem se tornar um monturo. Para continuar explicando  o que era um monturo, precisei narrar o poema, que diz mais ou menos o seguinte:  

Passando certa vez por um lugar ermo, Manoel viu um monturo. Num  monturo estão coisas que já deram sentido a uma vida, coisas que eram   partes de um todo,mas que agora são apenas fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.

No monturo podiam ser  vistos:  os cacos do que sobrou de uma taça que outrora já esteve repleta de vinho  ; os restos de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado   ;  a metade de uma concha que talvez já tenha guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram  no céu aberto como partes de uma asa; a casca seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha  de folhas amarelas que vicejaram  verdes  na primavera; os  ponteiros parados de um relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e  roído pelos anos em  seu solado gasto ; um álbum de retrato cujas fotos  o esquecimento apagou.

Junto a esses restos  também estavam: cacos de certezas que pareciam inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...

Mas debaixo do monturo aconteceu uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.

      Da semente brotou  um caule em  rascunho  . O caule   se enroscou e subiu por um pequeno raio de sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a perseverante  semente fez dele um útero do qual nasceu uma flor: um reluzente  lírio.

 

 

"Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético.”

(Manoel de Barros)

 “A noite fria me ensinou a amar mais o meu dia,

 e pela dor eu descobri o poder da alegria.”

(Belchior)

 

(imagem: “O semeador”/ Van Gogh)



 






Nenhum comentário:

Postar um comentário