Dia desses uma turma me
perguntou qual poema de Manoel de Barros eu mais gosto. Respondi que eram
muitos os poemas... Mas para não deixar a turma sem resposta, mencionei o poema
no qual Manoel fala de um “monturo”.
Notei um ponto de
interrogação no rosto de muitos alunos, e um deles me perguntou: “Professor, o que é um monturo?” Antes que eu respondesse ,
outro aluno abriu rapidamente o celular e digitou alguma coisa. Voltando-se para
mim, falou: “Professor, a Inteligência Artificial do google está dizendo que ‘monturo é um monte de lixo’ ”.
Com humor, retruquei : “um
monturo não é exatamente um monte de lixo, talvez a IA não tenha sensibilidade para
entender essa diferença”, e a turma, concordando , riu.
Prossegui dizendo que o
poeta não fala de um monturo literal, mas de realidades que podem se tornar um
monturo. Para continuar explicando o que
era um monturo, precisei narrar o poema, que diz mais ou menos o seguinte:
Passando certa vez por um
lugar ermo, Manoel viu um monturo. Num monturo estão coisas que já deram sentido a
uma vida, coisas que eram partes de um todo,mas que agora são apenas
fragmentos que a natureza recolheu sem julgamento ou desprezo.
No monturo podiam
ser vistos: os cacos do que sobrou de uma taça que outrora
já esteve repleta de vinho ; os restos
de um diário cujos dias anotados há muito viraram passado ; a metade de uma concha que talvez já tenha
guardado uma pérola dentro; as penas que já voaram no céu aberto como partes de uma asa; a casca
seca de uma cigarra que já encheu de cantos a floresta; a mortalha de folhas amarelas que vicejaram verdes na
primavera; os ponteiros parados de um
relógio que já marcaram horas apressadas ; um pé de chinelo solitário e roído pelos anos em seu solado gasto ; um álbum de retrato cujas
fotos o esquecimento apagou.
Junto a esses restos também estavam: cacos de certezas que pareciam
inquebrantáveis ; farrapos de verdades que pareciam eternas...
Mas debaixo do monturo aconteceu
uma surpresa, um “milagre poético”: sob os cacos e pedaços, uma semente ainda
estava inteira . E depois de a chuva regar o monturo e o sol o aquecer, o tempo
sarou o monturo e deu à semente forças para germinar.
Da semente brotou um caule em
rascunho . O caule se enroscou e subiu por um pequeno raio de
sol que furou a noite do monturo. E do túmulo que o monturo era, a perseverante
semente fez dele um útero do qual nasceu
uma flor: um reluzente lírio.
"Não é por fazimentos cerebrais
que se chega ao milagre estético.”
(Manoel de Barros)
“A noite fria me ensinou a amar
mais o meu dia,
e pela dor eu descobri o poder
da alegria.”
(Belchior)
(imagem: “O semeador”/ Van Gogh)
Nenhum comentário:
Postar um comentário