segunda-feira, 24 de março de 2025

A origem da ideia de cultura

 

                                            O VINHO, O AZEITE E O PÃO[1]

 

Originalmente, a ideia de cultura nasceu da prática de cultivo de três plantas cujo valor é também simbólico: a vinha, a oliveira e o trigo.  Na Odisseia , considerada a obra que inaugura a literatura ocidental, Homero dará especial importância ao trigo, e chega a dizer que é a semente do trigo aquela que melhor representa a condição humana.

A vinha é a árvore da qual  vem o vinho. Essa bebida está associada à festa, à alegria. Pois festa e alegria também dão sentido à vida dos seres humanos. Na mitologia, o vinho é associado a Dioniso, divindade ligada às artes, sobretudo a arte de criar novos modos de vida. Isso explica a origem do seu nome: “Dioniso”, “aquele que nasceu duas vezes”, sendo o segundo nascimento um renascimento, criação de vida nova.

Da oliveira vem o azeite de oliva. O azeite é tempero, ele permite temperar o alimento. De tempero vem “temperança”, uma das virtudes  fundamentais da ética. O azeite também é parte dos ritos sagrados de diferentes sociedades , pois ele é um   elemento que unge e protege .

E do trigo vem o  pão. O pão é o que mata a fome. Mas há também o aspecto simbólico do “pão”. Em latim, por exemplo, “pão” é “panis” , raiz do termo “companis”, do qual nasce “companheiro”: “aquele com quem dividimos o pão.” Há o pão que mata a fome do corpo, e há também o pão que alimenta a ação ( o pão da liberdade) , o conhecimento (o pão das ideias) e a sensibilidade( o pão das artes). 

A vinha e a oliveira podem  crescer selvagemente, isto é, sem precisarem ser cultivadas. Porém  o trigo é tão frágil, requer tantos cuidados, que ele somente cresce sendo cultivado pelas mãos humanas . “Cuidado” vem de “caute”[2]: prática de proteger o que é frágil. Não porque seja fraco, e sim em razão de ser uma potencialidade que, para aflorar, requer que cuidemos.

Uma criança, por exemplo, não é fraca, ela é frágil. Ela pode parecer fraca quando a comparamos com a força de um adulto já pronto e formado. Mas essa comparação é errada e não deve ser feita, pois potencialidade nada tem a ver com força física. Potencialidade é uma possibilidade que precisa do tempo e de cuidados para aflorar e virar plena realidade.

A semente também é uma potencialidade assim: se plantarmos uma simples semente e cuidarmos dela, da semente nascerá uma árvore com incontáveis frutos, e dentro de cada fruto haverá uma nova semente. Se plantarmos essas novas e plurais sementes nascidas da semente simples primeira, nascerão novas árvores com novos frutos e sementes...Isso significa que no interior de uma semente única existe, em potência, uma floresta inteira...

O que vale para a semente vale ainda mais para uma criança: há na criança uma diversidade de possibilidades a aflorar. Para isso acontecer, é preciso que a educação seja a mais necessária das práticas de cuidado, uma vez que a criança é frágil por ser plena de potencialidades.

 Fraco, ao contrário, é tudo aquilo que quer se impor empregando a força . As ideias são frágeis, porém fraca é a mente ignorante. As palavras são frágeis, mas fraca é a voz que apenas berra e grita, pois nada tem a dizer.

 Assim, tudo o que é frágil é uma abertura ao futuro, ao que precisa ser criado. Já fraco é aquilo que , em nome de um passado que se quer conservar à força, demoniza a diferença, a criatividade e tudo aquilo que é fonte de novos modos de vida. Frágil, portanto, é tudo aquilo que, para florescer, precisa da prática do cuidado. Pois tudo o que é frágil depende do amanhã. Mas o cuidado enquanto tal não pode esperar pelo amanhã: ele precisa ser exercido sempre agora, já.

Voltando à Odisseia. É por isso que o trigo é a semente que também simboliza a condição humana enquanto potencialidade. Ao contrário, quando se faz culto da selvageria ( nos vários sentidos que essa palavra tem) , da  semente nascem apenas inumanidades  que põem em perigo a condição humana e o terreno aberto e plural da cultura.

Do trigo não vem apenas o pão, dele também vêm o bolo, o macarrão, a farinha, as diversas massas...Enfim, múltiplas realidades  que  podem nascer  da potencialidade  que vive nele. Semelhante ao trigo também é o ser humano: somente a cultura pode nele fazer aflorar o poeta, o cientista, o médico, o jardineiro, o professor, o cidadão, enfim, ele mesmo. Pois é a cultura o meio físico e simbólico para  o ser humano  criar e dar um sentido a ele mesmo.

 

Quem quiser ler mais acerca dos  diversos símbolos que dão sentido à condição humana, ontem e hoje, sugiro este livro ( que muito influenciou Nise da Silveira na criação do Museu de Imagens do Inconsciente):






[1] Texto-aula elaborado pelo prof. elton

[2] “Curador” também vem dessa palavra latina. “Curador”: “aquele que cuida”.

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