O
VINHO, O AZEITE E O PÃO[1]
Originalmente, a ideia de
cultura nasceu da prática de cultivo de três plantas cujo valor é também
simbólico: a vinha, a oliveira e o trigo. Na Odisseia , considerada a obra que inaugura
a literatura ocidental, Homero dará especial importância ao trigo, e chega a
dizer que é a semente do trigo aquela que melhor representa a condição humana.
A vinha é a árvore da
qual vem o vinho. Essa bebida está
associada à festa, à alegria. Pois festa e alegria também dão sentido à vida
dos seres humanos. Na mitologia, o vinho é associado a Dioniso, divindade
ligada às artes, sobretudo a arte de criar novos modos de vida. Isso explica a
origem do seu nome: “Dioniso”, “aquele que nasceu duas vezes”, sendo o segundo
nascimento um renascimento, criação de vida nova.
Da oliveira vem o azeite
de oliva. O azeite é tempero, ele permite temperar o alimento. De tempero vem
“temperança”, uma das virtudes
fundamentais da ética. O azeite também é parte dos ritos sagrados de
diferentes sociedades , pois ele é um
elemento que unge e protege .
E do trigo vem o pão. O pão é o que mata a fome. Mas há também
o aspecto simbólico do “pão”. Em latim, por exemplo, “pão” é “panis” , raiz do
termo “companis”, do qual nasce “companheiro”: “aquele com quem dividimos o
pão.” Há o pão que mata a fome do corpo, e há também o pão que alimenta a ação
( o pão da liberdade) , o conhecimento (o pão das ideias) e a sensibilidade( o
pão das artes).
A vinha e a oliveira podem
crescer selvagemente, isto é, sem
precisarem ser cultivadas. Porém o trigo
é tão frágil, requer tantos cuidados, que ele somente cresce sendo cultivado
pelas mãos humanas . “Cuidado” vem de “caute”[2]:
prática de proteger o que é frágil. Não porque seja fraco, e sim em razão de ser
uma potencialidade que, para aflorar, requer que cuidemos.
Uma criança, por exemplo,
não é fraca, ela é frágil. Ela pode parecer fraca quando a comparamos com a
força de um adulto já pronto e formado. Mas essa comparação é errada e não deve
ser feita, pois potencialidade nada tem a ver com força física. Potencialidade
é uma possibilidade que precisa do tempo e de cuidados para aflorar e virar
plena realidade.
A semente também é uma
potencialidade assim: se plantarmos uma simples semente e cuidarmos dela, da
semente nascerá uma árvore com incontáveis frutos, e dentro de cada fruto
haverá uma nova semente. Se plantarmos essas novas e plurais sementes nascidas
da semente simples primeira, nascerão novas árvores com novos frutos e
sementes...Isso significa que no interior de uma semente única existe, em
potência, uma floresta inteira...
O que vale para a semente
vale ainda mais para uma criança: há na criança uma diversidade de
possibilidades a aflorar. Para isso acontecer, é preciso que a educação seja a
mais necessária das práticas de cuidado, uma vez que a criança é frágil por ser
plena de potencialidades.
Fraco, ao contrário, é tudo aquilo que quer se
impor empregando a força . As ideias são frágeis, porém fraca é a mente
ignorante. As palavras são frágeis, mas fraca é a voz que apenas berra e grita,
pois nada tem a dizer.
Assim, tudo o que é frágil é uma abertura ao
futuro, ao que precisa ser criado. Já fraco é aquilo que , em nome de um
passado que se quer conservar à força, demoniza a diferença, a criatividade e
tudo aquilo que é fonte de novos modos de vida. Frágil, portanto, é tudo aquilo
que, para florescer, precisa da prática do cuidado. Pois tudo o que é frágil
depende do amanhã. Mas o cuidado enquanto tal não pode esperar pelo amanhã: ele
precisa ser exercido sempre agora, já.
Voltando à Odisseia.
É por isso que o trigo é a semente que também simboliza a condição humana
enquanto potencialidade. Ao contrário, quando se faz culto da selvageria ( nos
vários sentidos que essa palavra tem) , da
semente nascem apenas inumanidades que põem em perigo a condição humana e o
terreno aberto e plural da cultura.
Do trigo não vem apenas o
pão, dele também vêm o bolo, o macarrão, a farinha, as diversas massas...Enfim,
múltiplas realidades que podem nascer da potencialidade que vive nele. Semelhante ao trigo também é o
ser humano: somente a cultura pode nele fazer aflorar o poeta, o cientista, o
médico, o jardineiro, o professor, o cidadão, enfim, ele mesmo. Pois é a
cultura o meio físico e simbólico para o
ser humano criar e dar um sentido a ele
mesmo.
Quem quiser ler mais acerca
dos diversos símbolos que dão sentido à
condição humana, ontem e hoje, sugiro este livro ( que muito influenciou Nise
da Silveira na criação do Museu de Imagens do Inconsciente):
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