domingo, 15 de setembro de 2024

O paciente da janela

 

No último dia  de um curso de  Introdução à Filosofia que eu ministrava, uma aluna que nunca faltava  me entregou um papel e disse : “Professor, acho que tudo que  você falou no curso tem a ver com esta história”.

O texto não estava assinado, parecendo  ser uma daquelas história cuja autoria é da própria Vida.   A história dizia mais ou menos o seguinte:
Cinco pacientes   estavam numa enfermaria. A única comunicação da enfermaria com o mundo exterior era uma pequena janela, uma abertura para   luz  e  ar entrarem como  antídotos benfazejos ao sofrimento daquele lugar.

Mas  perto dessa janela cabia apenas uma maca, na qual ficava um dos pacientes. Esse paciente  passava o dia a narrar o mundo que via através da janela, ele não mantinha a janela como privilégio egóico apenas para si.

“Vejo daqui um mar azul de amplo horizontes,  vocês conseguem sentir  sua brisa?”  Apenas um dos pacientes dizia não conseguir sentir. Os outros três que a sentiam  “horizontavam-se” recriando um mar dentro da alma.

No outro dia, o paciente-narrador prosseguia: “Vejo  crianças brincando numa pracinha, vocês conseguem ouvir o riso delas?” Os três que sentiram  a brisa também conseguiam ouvir as crianças,  de tal modo que algo dentro deles brincava também e se regenerava.  O quarto paciente nada ouvia, parecendo ter a sensibilidade fechada.

E assim se seguiam os dias: com as palavras do paciente-narrador sendo mais do que palavras, sendo remédio.

Mas houve um dia em que ele estava mudo e de olhos fechados. Chamaram a enfermeira.  Ela constatou, sem surpresa, que ele não mais vivia. Ela disse que o paciente da janela era o mais doente dentre eles  ( embora ele , como um estoico, nunca  se queixasse...).

Havia agora um espaço vazio sob a janela. Combinou-se que o paciente com a sensibilidade embotada poderia ocupar tal lugar, desde que ele  continuasse as narrativas.  Então, perto da janela  esse paciente foi instalado.
Porém, ele olhava pela janela e nada dizia.  Indagado pelos outros porque nada narrava, ele respondeu : “Aqui diante da janela não há mar, crianças ou pracinha; há apenas um espesso muro  cinza”. Ele se limitava a repetir: “Há apenas um espesso muro cinza...”. Era verdade: sempre houve aquele muro.

Sua palavra se tornou a mais pobre que há: aquela que , resignadamente, apenas descreve o que está dado.

O muro cinza simboliza tudo aquilo que nos rouba a visão de horizontes, horizontes externos e internos , mesmo que ainda em esboço ( como o pássaro que Magritte libertou do ovo...).

O primeiro paciente usou as palavras para criar  uma linha de fuga  e transver o muro com sua “visão fontana”, como ensina Manoel de Barros. Palavras assim são mais potentes do que marretas...

 

“Nenhum de nós é ‘O’ médico, somos companheiros de enfermaria.” 

(Sêneca)

 

"O que é a ficção? O que é essa verdade que tem a face da mentira?"

(Dante)





                                                   (  “ A clarividência”, de Magritte)

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