domingo, 9 de junho de 2024

A multitudo de Espinosa

Segundo Espinosa, a diferença que existe entre a ideia adequada e a inadequada é sentida em nós por algo que não é totalmente teórico ou apenas ligado à inteligência livresca, acadêmica. Segundo ele, a ideia adequada “como que nos segura pela mão e conduz”. A ideia inadequada, ao contrário, põe-nos à parte e nos isola: nos isola dos outros, nos isola da compreensão, nos isola de nós mesmos. Ela nos isola sobretudo daquilo que podemos.

Com-preender: apreender junto. A ideia adequada nasce da compreensão, e compreender é mais do que o mero conhecer. Assim, a ideia adequada não nos diz,  ordenando: “Eu vou na frente, e você vai atrás, me seguindo. E não aceito desvios! Mantenha o foco!”. Ela também não nos diz aonde ir, apenas apontando o caminho e ficando parada, sem nos acompanhar. Diferentemente, a ideia adequada estende a mão, espera pela nossa, e vai junto, ao lado, encorajando que caminhemos com nossas próprias pernas, até que nossos passos compreendam o ritmo dos passos dela e, com esforço cada vez menor, mas sempre com algum esforço, sigamos em frente, perseverantemente.

Certa vez, antes de começar uma aula, eu estava hesitante, estanquei. Até que uma ideia adequada estendeu sua mão para mim. Então, eu a segurei, nasceu a confiança e , agenciado com a ideia, caminhei. A ideia adequada me auxiliava na compreensão. E toda ideia adequada fornece a compreensão não apenas dela, mas sobretudo de nós mesmos.

Era a minha mão esquerda, a mão do coração, que estava unida à mão  da ideia adequada. Virei para olhar para ela. A minha compreensão dela então aumentou, pois ela também estava de mão dada com outra ideia, e , através dela, compreendi essa outra ideia  também. E esta igualmente não estava solitária: ela também estava de mão dada com outra ideia dela diferente. Minha compreensão então aumentou, pois em primeiro lugar, e antes de tudo, aumentava minha compreensão de mim mesmo. Eu aumentava não em tamanho ou prepotência, eu aumentava por dentro e, aumentando eu mesmo, aumentava o caminho. E outra ideia estava unida à esta última, e esta  à outra...de tal modo que não havia última, apenas meio, processo...Eu fazia parte de uma conexão de ideias, de um agenciamento de ideias, agenciamento este do qual eu era um elo, e não um ponto-ego cartesiano.

A primeira ideia foi um intercessor para mim. Intercessor: “aquele que abre portas”. Reparei então que a conexão de ideias se estendia ao horizonte, tornando tudo horizonte, e assim elas me faziam ir para além do aqui e agora. Eu permanecia ligado ao aqui e agora, contudo o potencializava pelas ideias que se abriam e me conectavam com o horizonte de ideias. Pois as ideias não são muros ou cercas, elas são e formam  aberturas , horizontamentos, diria o poeta Manoel de Barros.

Até que reparei, ainda sem olhar, que minha mão direita, que eu supunha sozinha, na verdade não estava só. Havia também outra mão a segurando, de tal modo que eu também conduzia, eu que era, no entanto, conduzido pela conexão de ideias, e não mais apenas por aquela primeira ideia que me tirou do medo, da desconfiança  e da limitação. 

A primeira ideia me produziu um deslimite , como também me produz um deslimite a poesia de Manoel. Virei-me então para ver quem segurava minha mão e ia também comigo e, através de mim, alcançava o horizonte. Era uma pessoa que me ouvia. E, ao lado dela, segurando também  sua mão, havia outra pessoa. E depois outra, e outra...Até que também vi, fazendo parte daquela conexão que conduz e horizonta , também vi um menino de rua , que largou seu canivete e confiou dar a mão à educação. Vi também uma criança que, na sua inocência, imaginava que brincávamos de roda ( e , olhando bem, estávamos mesmo a brincar...);vi também um indígena, vi depois um homem da lei que, largando os códigos, deixou-se conduzir pela justiça; vi ainda  uma borboleta recém saída de sua metamorfose; vi Manoel de Barros também conectado  à nossa conexão : ele sorria com aquela nossa peraltagem... Tentei ver quem era então o último daquela conexão, mas parecia não haver, tampouco havia mais o primeiro.




 


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