quinta-feira, 30 de maio de 2024

Os dois Manoeis

 

O poeta Manoel de Barros  dizia ser  “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza   “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, continua vivo e faz viver quem o lê.

 Talvez   a saudade que sentimos do primeiro Manoel   possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive no coração de seus versos,  onde está cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”, escreve Manoel.

O “letral” não é a letra morta no papel. O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”, explica-se o poeta. 

O primeiro Manoel nos deixou com 97 anos. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Talvez não se possa medir essa existência em passagem de tempo. Pois o Manoel-letral é só nascimento e  “afloramento de falas”, incluindo as falas  múltiplas  e heterogêneas dos seres diferentes que   o poder do “mesmal”  tenta calar.

Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”, confessa o poeta.

 A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma.... Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral que vive em sua poesia.

De minha parte, o Manoel-letral  ora é  um passarinho, ora é um menino: "inventei um menino levado da breca para me ser”, diz Manoel. Esse menino, afirma o poeta, é  “a criança que me escreve”. 

O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.  É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros.

 “Não, não há criação triste”, dizia Deleuze reproduzindo uma lição que aprendeu de Espinosa. As paixões tristes , frutos dos “maus encontros” que nos tiranizam, diminuem nossa potência de existir; já as paixões alegres nascidas de bons encontros  aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir  alegria e tristeza, potência e impotência, liberdade e servidão.

O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto de tristezas-impotências, pois mesmo estas são transfiguradas pela criação poética e se tornam  poesia, isto é, canto da palavra que cura e liberta:  “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”, ensina Manoel.

 Artífice de bons encontros potencializadores,  Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de vida, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :

 

“O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro

botando ponto no final da frase.”

 


 


“Eu sou dois seres.

O primeiro fruto do amor de João e Alice.

O segundo é letral.

               (...)

O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.

O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.

E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.”

(Manoel de Barros, poema “Os dois”, livro Poemas rupestres, p. 45)



 

Obs: este texto aqui do blog é parte de um artigo que escrevi ( a convite do amigo, poeta e escritor Paulo Vasconcelos). Quem quiser saber onde se encontram em Manoel os versos que cito aqui, é só conferir no artigo:

http://saopauloreview.com.br/manoel-de-barros-em-um-ensaio-e-uma-homenagem/



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