sábado, 11 de maio de 2024

Manoel de Barros e Miró: as desaprendizagens

Certa vez, perguntaram ao poeta Manoel de Barros qual foi  sua grande influência. Todos imaginavam que ele mencionaria um poeta, porém ele disse  que aprendeu a fazer poesia com um pintor:  Miró.

Para aprender toda a potência pensante que há na  poesia,  é necessário desaprender as cartilhas e tabuadas  cujo poder  produz apenas mentes “acostumadas”. Foi essa “desaprendizagem” necessária que o poeta aprendeu com o pintor,  para assim nos mostrar que poesia não é somente  versos, rimas   e palavras , poesia também “pode ser que seja fazer outro mundo”, ensina-nos  Manoel.

Esta foi a lição que o poeta aprendeu :

Miró desenhava de maneira  precisa e técnica, porém essa técnica virou uma prisão que impedia o nascimento de um mundo novo  que Miró desejava  criar. Esse mundo novo não cabia na  forma “acostumada” que se tornou  Miró e seu  pintar . Já crescia virtualmente no pintor a alma nova, porém faltava um corpo para ela: ao invés de nascer, a alma nova corria o risco de abortar.

Tomado por uma profunda crise, Miró desistiu da arte, mas a arte não desistiu de Miró. Quando tudo parecia perdido, certa vez  Miró começou a rascunhar com lápis de cor usando   a mão esquerda, mão que ele nunca usava . Era um rascunhar “brincativo” que alcançava realidades ainda não formadas, ignoradas pela mão direita.

A mão esquerda nada sabia de cânones ou fórmulas de sucesso, como sabia a mão direita. Nunca a mão esquerda ficou vaidosa por receber elogios; tampouco segurou, ostentando, prêmios e títulos, como se habituou a segurar a mão direita  .

Se a mão direita adquirisse a capacidade de falar e alguém lhe perguntasse qual a opinião dela sobre a mão esquerda,  ouviria: “ A mão esquerda é perigosa:  quer tirar o poder que conservo, ela é  subversiva!”.

As duas mãos tinham a mesma idade biológica, mas era a mão esquerda o corpo novo que a alma nova exigia . Ao começar a desenhar com a mão esquerda, cada desenho de Miró  era o desenhar de novo nascendo , fazendo-se como novidade, experiência e descoberta.

O poder estabelecido escreve suas cartilhas com a mão direita ,  porém a arte de se reinventar só a pode desenhar um instrumento não domado: a mão esquerda .

A tal “mão invisível do mercado” é mão direita que apenas sabe contar dinheiro, ao passo que a mão que doa , partilha e se solidariza é sempre mão esquerda.

A mão direita gosta de segurar armas e revólveres para fazer ameaças , mas pincéis, giz, canetas  e lápis, sobretudo os de cor, quem os segura para nos libertar é sempre a mão esquerda educadora.

A mão direita se liga a uma metade do cérebro apenas , já a mão esquerda se liga à outra metade do cérebro e ainda ao coração inteiro que, assim como ela, também está do lado esquerdo.



                                      ("O jardim"/ Miró)





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