domingo, 14 de janeiro de 2024

Espinosa : afeto, ideia e pensamento

 

Para Espinosa, não apenas as ideias são modos ou maneiras do pensamento, o amor e o desejo também o são[1]. Ideia, amor e desejo têm algo em comum: são modos do pensamento. Amor e desejo também são maneiras de pensar. Mas há uma diferença entre a ideia e os outros dois modos do pensamento citados aqui, uma vez que amor e desejo são afetos. Assim, ideia e afetos são modos do pensamento, são maneiras de pensar.

Segundo Espinosa, os afetos nunca se dão sozinhos no pensamento, eles sempre ocorrem com a presença de uma ideia. Por exemplo, para amar algo é preciso haver na mente  a ideia daquilo que se ama; para se desejar uma coisa , é necessário ter a ideia do que se deseja.

Os afetos são referidos por Espinosa ao “ânimo”. O ânimo é a mente compreendida mais do que no sentido meramente intelectivo, uma vez que o ânimo é a mente unida ao corpo , à vida[2].

Apenas a ideia, enquanto modo do pensamento, pode ser concebida pelo pensar sem a necessidade de um afeto do qual dependa. Essa autonomia  da ideia será fundamental para compreendermos a “clínica” de Espinosa como meio para se vencer as paixões tristes geradoras de servidão e impotência. Mas para essa relação entre ideia e afeto ser melhor  compreendida, é preciso tocar em mais um ponto.

Os afetos não são ideias, embora sejam modos do pensamento  (entendido como ânimo) . Os afetos são modos não representativos do pensamento: os afetos não representam coisas, eles expressam, e é preciso sublinhar bem essa palavra,  processos do pensamento. Enfim, os afetos expressam nosso ânimo. Já as ideias são modos representativos do pensamento: elas têm seu “ideado” ( aquilo do qual são ideia) fora do pensamento.

Vejamos isso em um exemplo simples colhido na vida : João ama Maria. João sente o afeto-amor acompanhado da ideia de Maria. Mas a ideia de Maria que João forma em sua mente não é a Maria que existe no mundo, pois há uma diferença entre a ideia, enquanto modo do pensamento, e seu “ideado” ( o ser ou objeto que corresponde à ideia). De igual maneira,  o amor não é Maria, o amor é um modo do pensar que expressa um estado da mente de João, o seu ânimo.

Pode ser que esse amor tenha nascido  sem João conhecer bem Maria, um amor causado por meras aparências ( e não apenas a aparência física). Quando o amor nasce assim , ele se torna tão inconstante quanto as aparências que projetamos sobre os seres externos, podendo assim levar ao sofrimento ou frustrações, caso Maria não sinta o mesmo por João. E o pior: João pode ficar ressentido com Maria por ela não ser como a ideia que ele tinha dela, uma ideia criada mais pela imaginação do que pelo entendimento do real ser de Maria.

Por outro lado,  mais potente será o afeto-amor quanto mais adequada for a ideia que formamos do ser amado; e , ao contrário, mais inconstante e impotente será o amor nascido de aparências ou ideias confusas acerca do objeto amado.  

Enfim, a confusão entre ideia e ideado tem por fundo uma confusão que a antecede : a não distinção entre ideia e afeto, representação  e expressão.   O afeto é um processo que expressa mais a mente do que representa  coisas externas. Se essa natureza expressiva do afeto não for compreendida[3] , o afeto assim sentido será fonte de dor e sofrimento:  amores formados dessa maneira   facilmente passam ao seu contrário, o ódio.  

Um processo clínico de conhecimento dos outros   e autoconhecimento de nós mesmos pressupõe que compreendamos  a diferença entre ideia e afeto, a começar pela ideia que devemos formar de nós mesmos, para  que os afetos sejam fonte de bons encontros com os outros.

Mas esse amor-afeto reportado à ideia das coisas externas será mais confiante e potente se ele for precedido por outra forma de amor, um amor que é acompanhado da ideia de algo que nunca se ausenta, que nunca falta , que nunca muda conforme as aparências: a ideia de Deus ou do Absolutamente Infinito, ou seja, aquilo que Espinosa chama de Natureza.

O afeto-amor  que nasce da compreensão do Absolutamente infinito nunca passa ao seu contrário , nunca se converte em ódio, uma vez que quem compreende Deus compreende igualmente a necessidade de sua existência, e a da nossa própria existência como parte dela, com todos os acontecimentos que ela implica.

Por isso , a compreensão da ideia de Natureza  nunca vem com a ideia sozinha, uma vez que ela faz nascer na mente afetos afirmativos que não dependem da reciprocidade das coisas externas, também nos levando a nos relacionar de forma diferente com as coisas externas, inclusive no afeto reportado a elas.

Assim, quando pensamos nas coisas finitas que nos cercam, as ideias que formamos delas podem existir sem a presença do afeto, embora a ideia adequada das coisas sempre gera em nós, como efeito, o afeto da alegria.  Mas quando formamos a ideia de Deus, dessa ideia nasce necessariamente o afeto-amor. Não o amor meramente subjetivo ou romântico, e sim amor enquanto compreensão da Natureza de Deus.

Segundo Espinosa, há duas espécies de seres: o que existe em si e o que existe em outro. Deus[4] existe em si.  Os seres finitos , incluindo nós mesmos, existimos em outro, isto é, em Deus, e dele dependemos para existirmos  e sermos compreendidos.

Somente Deus  é causa de sua própria existência, uma vez que a essência de Deus é existir. A existência de Deus é idêntica à sua Potência que está sempre em ato. Ou seja, Deus não deixa de produzir algo hoje para fazê-lo amanhã, nem o que ele produz poderá deixar de  ser um dia. Tudo o que Deus produz como modificação ou maneira de ser dele é necessário e eterno.

Cada coisa singular tem por causa imanente Deus, porém compreendido de determinada maneira. E não há como compreender essa determinada maneira que cada coisa é sem compreender Deus, que age de infinitas e diferentes maneiras.

Não só as alegrias e amores que nos nascem em nossas relações com as coisas finitas externas, mas também os ódios e  as tristezas não podem ser compreendidos adequadamente sem compreendermos como é e age a Natureza. Sobretudo no caso dos ódios e tristezas (as paixões tristes), a compreensão adequada das causas que as geram nos auxiliam a não sermos efeitos delas, uma vez que a causa delas não são somente as coisas externas, mas a impotência que pode se instalar no nosso pensar quando não distinguimos adequadamente a ideia e seu ideado, a ideia e os afetos.

Deus é a causa imanente[5] da existência de todas as coisas, mas ele não é a causa de determinada coisa nos provocar ódio ou tristeza. O ódio e a tristeza nascem exatamente de não compreendermos  adequadamente as causas que fazem cada coisa ser como é.

 

 



[1] Ética, Parte 2, axioma 3.

[2] A “coragem” é definida por Espinosa como “presença do ânimo”, ao passo que a covardia é sua ausência. Quando o ânimo se faz presente, agenciando corpo e mente, ele age e afasta o “des-ânimo”.

[3] Essa natureza expressiva do afeto ganha toda a sua potência na arte. Mesmo uma música sem palavras é carregada de afetos : o compositor pôs no som os afetos, fazendo do som uma realidade também expressiva . Quando o poeta fala da lua em seu poema, a lua em questão não é aquela que é o ideado da ideia de lua que o astrônomo forma em sua mente ; a lua do poema é um afeto que o poeta fez sobreviver e transmutou  às  suas afecções pessoais , dando a ela uma matéria igualmente expressiva. Quando lemos o poema, nosso ânimo também é afetado, daí o efeito clínico que pode advir dessa experiência com a arte. Como ensina Deleuze, a filosofia e a poesia nascem de uma “astronomia apaixonada” ( no sentido das paixões alegres que potencializam nosso ânimo).  Os filósofos e poetas que mais nos tocam são aqueles que não escrevem e falam  apenas com a mente, eles falam e escrevem também com o ânimo, para que os leiamos ou ouçamos não apenas com os olhos , com os ouvidos ou com a mente ( teoricamente) , mas com todo nosso ser .

[4] O Deus de Espinosa não é o da religião. O Deus de Espinosa é a própria existência compreendida de forma absolutamente infinita. O cosmos e o universo material são modos de Deus, são maneiras de ele ser. As ideias e o pensamento são igualmente modos de Deus.

[5] Deus não causa/produz  a existência  de cada coisa uma a uma, ele causa/produz a existência de todas as coisas de forma concatenada e eterna. Para existirem no tempo e no espaço, porém, cada coisa singular depende de outra coisa singular com a qual entra em relação ( como "causa próxima", e não como causa imanente). Se essa relação nos favorece e compõe com nossa maneira , temos um bom encontro que gera aumento de potência, isto é , de capacidade de agir e pensar; se a relação for um mau encontro, ela nos decompõe e despotencializa, gerando tristeza e ódio, enfim, servidão. Mas cada coisa que existe não é o "Mal" ou o "Bem" em si, elas podem ser boas ou más conforme combinarem ou não com  nossa maneira de ser. Deus  é a causa imanente tanto de nossa existência quanto à do mosquito. Porém  Deus  não é a causa da dengue, esta nasce de uma relação nossa com o mosquito, uma relação que nos despotencializa. Quando, através do conhecimento, descobrimos uma vacina para a dengue, Deus-Natureza não é a causa da vacina, Deus-Natureza é  causa  de nosso pensamento que é capaz de pensar adequadamente a existência do mosquito, descobrindo como é sua maneira de ser. Conhecer a maneira de ser de cada coisa , sua realidade efetiva, é desdemonizá-la ( a demonização , seja ela qual for, revela  mais a imaginação reativa de quem  demoniza do que  revela a natureza real do ser demonizado).






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