Em seu comentário ao livro “A besta
humana”, de Zola, o filósofo Gilles Deleuze fala de alguns comportamentos hediondos , de ontem e de hoje,
identificáveis à “besta”.
A besta não é um animal determinado
da zoologia. A besta é uma espécie de “fundo indeterminado” propagador de (auto)destruição
e morte, uma espécie de “buraco negro” que suga e extingue toda forma de luz.
Os instintos protegem os animais desse “fundo indeterminado”. Nenhum animal é
capaz de cometer ato hediondo ou barbárie inexplicável, pois todos os seus
comportamentos são explicáveis pelos instintos.
A ferocidade do leão, por exemplo, não é
maldade ou crueldade, mas um comportamento explicável por sua natureza de leão.
Conhecendo essa natureza, podemos agir para evitarmos que essa ferocidade nos
atinja.
No homem, o instinto não tem força
suficiente para protegê-lo desse fundo
indeterminado . Tampouco pode a inteligência, sozinha, vencer esse “buraco
negro”, o ninho onde dorme a besta.
Pois a inteligência , com suas
teorias e invenções tecnológicas, é voltada para o domínio do mundo externo, de
tal modo que a besta sempre se esconde às suas costas, como uma sombra.
Pode acontecer de a besta se servir
dos frutos da inteligência e usá-los como doentias armas suas : “mísseis inteligentes”, por exemplo, são a inteligência a serviço da besta e sua
necropolítica de extermínio que não poupa nem crianças...
O mundo digital, apesar de fruto da tecnologia
avançada, também pode servir à mentalidade obscurantista e atrasada da besta.
Quando a besta toma a mente e a boca
do homem, nasce então a “besteira” como antifilosofia, antieducação e
anticonhecimento. A besteira é a besta
empregando a palavra para destruir o próprio universo simbólico.
Para quem sabe ouvir, crianças nunca
dizem besteiras; somente os adultos que são uma besta podem dizer besteiras que torturam os ouvidos
do espírito .
A besta pode até mesmo se servir da religião,
tal como no fanatismo teológico-político
armado de intolerância. A besta pode dominar o Estado, nascendo assim o
Leviatã Fascista raivosamente militarizado e genocida.
Quando a besta toma o homem, este se
torna um ser irreconhecível , virando um bicho imprevisível que nem a natureza
explica mais...
Na mitologia, a “Besta” era
representada pelo Minotauro: metade touro, metade homem. A besta morava num lúgubre labirinto que
prendia a todos e parecia não ter saída.
Mas a bestialidade do Minotauro, sua
“sede de sangue”, não vinha do touro,
que é herbívoro. A bestialidade vinha da
parte humana acéfala e doentia , que usava a seu serviço a força bruta do
touro .
Além da inteligência, a vida criou o pensamento. Os instrumentos do
pensamento são as ideias e os afetos. O pensar redireciona e amplia a
inteligência , tornando-a também (cons)ciência planetária.
O pensamento é luz vital que ilumina
por dentro e por fora, brotando da mesma
energia que os instintos da vida, porém se potencializando pelo cultivo social da empatia que agencia , da cooperação que
congrega e da indignação que une os que
lutam pela justiça.
Há mais de uma década, um compositor uruguaio, Jorge Drexler, fez essa canção que continua atual. É difícil traduzir um sentimento que partilhamos, sem acrescentar um matiz pessoal, então (como se diz: quem conta um conto, aumenta um ponto) espero não "alterar o samba tanto assim".
ResponderExcluirCanção do Palestino Judeu
"Para cada muro um lamento
Na dourada Jerusalém
De mil vidas despedaçadas
Por cada mau mandamento.
Eu sou pó do teu vento
Embora eu sangre pela tua ferida
Ainda que cada pedra moída
Salve meu amor mais profundo.
Não há uma pedra no mundo
Que valha tanto quanto uma vida.
Eu sou um palestino judeu
Que mora entre cristãos.
Eu não sei qual deus é o meu
Nem qual é o dos meus irmãos.
Eu não sei qual deus é meu
Nem qual é entre meus irmãos.
Não há morte que não me machuque
Não há um lado vencedor
Não há nada além de dor
Em cada vida perdida.
A guerra é uma escola pervertida.
Não importa qual disfarce ela vista.
Sob nenhuma bandeira!
Não convence. Não insista.
Qualquer quimera vale mais
Que um triste pedaço de pano.
Eu sou um judeu palestino
Que vive entre cristãos.
Eu não sei qual deus é o meu
Mas sei quem são meus irmãos
E não dei permissão a ninguém
Para matar em meu nome.
A ninguém dei permissão
Para, em meu nome, matar um irmão.
Um homem que não é nada além
Ou menos que um homem.
E se existe um deus,
É assim que ele quer;
O mesmo chão que eu piso
Chão, vai continuar.
Eu irei embora...
Também caminhando para o esquecimento.
Não há doutrina que não vá;
E não há cidade que não tenha.
Acreditei num povo escolhido,
Eu sou um palestino judeu
Que vive entre cristãos,
Que habita entre irmãos.
Não sei qual deus é o meu
Mas sei quem são meus irmãos
Eu não sei qual deus é meu
Nem quem o é de meus irmãos.
Eu sou um judeu palestino
Que vive entre irmãos."
(robertomarques: tradução livre da canção de Jorge Drexler, Milonga Del Moro Judío)