terça-feira, 16 de maio de 2023

bacchus...

 

                                                APOLO E DIONISO[1]

 

Em A visão dionisíaca do mundo, Nietzsche identifica Apolo e Dioniso a dois processos: o sonho, estado provocado por  Apolo, e a embriaguez, processo despertado por  Dioniso.

Todo sonho é um  desejo de plasmar a realidade. O sonho dá uma forma à realidade, mesmo que seja a realidade de uma utopia. Quem  sonha tem os olhos fechados para a realidade efetiva, pois o olhar que sonha se abre ao que somente  pode ser visto de forma sonhada. Goethe se refere a esse olhar que sonha como o “olhar solar”: pois é esse olhar que ilumina paisagens internas, mesmo em meio às trevas externas. Não por acaso, Apolo é identificado ao sol.

Toda obra de arte apolínia é um sonho que plasma tintas, pedras, metais, sons...mediante  uma forma que  figura e dá a ver o que antes o artista sonhou.

Já Dioniso é a embriaguez: algo que acontece enquanto estamos acordados, porém despertando outros olhos, até mesmo “olhos lunares” que ao mistério veem claro .

 Se Apolo é o referencial do artista, Dioniso por sua vez é a própria   vida compreendida como  obra de arte[2]. Em Apolo ainda há uma oposição entre real e sonho. Se essa distinção se embaralha, corre-se o risco de surgir o delírio mórbido negador da realidade.

Mas em Dioniso a própria vida se torna obra de arte a ser musicada, pintada, dançada, poetizada,  enfim, criada[3]. Como ensina Manoel de Barros, arte é “delírio ôntico”: criação de novos sentidos para o ser ( “on”). O delírio mórbido, delírio de poder, nega a pluralidade da vida e do pensar, já o delírio ôntico é potência poética do pensar enquanto expressão  da vida,  incluindo a vida plural das ideias.

Nietzsche nomeia Dioniso como a “potência da primavera”, a mesma potência de Perséfone. Apolo é forma que plasma e dá uma figura, já Dioniso-Perséfone  é potência que faz brotar , (re)nascer e fulgurar ( como as estrelas-flores que Van Gogh pintou).

A palavra embriaguez em grego se escreve “bacchus” ( é por esse motivo que os romanos chamam Dioniso de “Baco”).  A embriaguez dionisíaca não é provocada apenas pelo vinho. A embriaguez dionisíaca é todo processo no qual uma potência fende os limites de uma forma, produzindo assim uma linha de fuga em relação a cercas, limites, egos. Embriaguez é um processo que “desabre”, diria Manoel de Barros ( como a borboleta que desabre a lagarta). Van Gogh é embriagado  de tinta, Manoel de Barros é embriagado  de poesia, Fernado Pessoa é embriagado  de eus, Clarice é embriagada  de vida...Somente experimentando uma embriaguez assim é que se cria verdadeiramente arte.

A primavera embriaga a semente não para ela sonhar que é broto, e sim para ela se metamorfosear em broto, com a máxima potência que puder. A embriaguez poética embriaga  o poeta não para ele sonhar com o poema utópico, e sim para ele  se metamorfosear em mundo, pois “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”, ensina Manoel de Barros.

Ninguém melhor do que o poeta Baudelaire soube expressar essa embriaguez dionisíaca, ao dizer: “É preciso embriagar-se...Mas, com quê? Com vinho, poesia ou virtude , a escolher. Mas embriaguem-se!”

Resumindo : Apolo representa a Forma, ao passo que Dioniso expressa a Potência. A palavra potência tem a mesma raiz que o termo “possibilidade”. Assim, toda potência é realidade também, porém é uma realidade potencial ( ou virtual). Por exemplo, quando está em sua casa e fora do hospital ou consultório, o médico tem a potência para curar, mesmo que naquele momento ele não esteja exercendo tal potência; a cantora tem a potência para cantar, mesmo que se encontre  em silêncio e fora do palco.

Quando o médico está a curar, a potência passa ao ato : a potência é atualizada, isto é, torna-se atual. Mesmo sendo atualizada , nunca a potencialidade se esgota totalmente na forma como ela é atualizada : sempre permanece uma reserva de possibilidade que permite que tal potencialidade seja atualizada  de maneira diferente, sendo então renovada, reaprendida, reensinada. Não é apenas o que agora é atual que é real, pois a potência também é real, embora de uma realidade diferente. Toda realidade atual somente pode ser renovada ,  reinventada e repensada se não perder a ligação de seus fios com o  novelo da Potência, tal como os fios libertários de Ariadne. Por outro, toda potencialidade , para não ficar apenas no nível da idealização ou teoria, precisa se atualizar e se tornar ato efetivo no mundo.

Assim, o par forma-matéria deve ser complementado e ampliado pela relação potência-ato ou virtualidade-atualidade. Quando uma teoria é dogmática, ela tende a realçar a forma em detrimento da matéria-potência-virtualidade. Mas quanto mais rico, plural e diverso for um pensar, mais ele tende a colocar a potência-possibilidade-virtualidade em primeiro plano, compreendendo que as formas são necessárias, embora possam enrijecer se perderem de vista as potências-virtualidades que as fazem nascer.

O pensador-artista-criador de não importa qual área possui olhos e mãos para ver e tocar essa potência-virtualidade-possibilidade, para assim pôr em ato uma obra, um agir e um criar que atualizam essa potência-virtualidade-possibilidade em realidade concreta que dá sentido novo a nós mesmos, à sociedade e ao mundo.

 

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz.

[2] No filme “Meu amigo Nietzsche”, o menino vive uma embriaguez assim quando descobre a potência das ideias que metamorfosearam seu modo de vida: ele se tornou um artista cuja obra a criar era a si mesmo... Essa embriaguez faz brotar primaveras, auroras...

 

[3] Artes como o teatro  e a dança têm maior potência dionisíaca do que a pintura e a escultura: nestas, apenas a mão se envolve na produção da obra, ao passo que no teatro e  na dança ( na qual a música também está presente) é o corpo inteiro que participa da criação. 







 

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