domingo, 30 de abril de 2023

virtude, vício, hábito

 

                                            VIRTUDE, VÍCIO E HÁBITO[1]

 

A palavra virtude costuma ser traduzida por “hábito”. Em sua ética, Aristóteles  ensina que a palavra “hábito” também é uma das traduções para “éthos”. Assim, a questão dos hábitos está profundamente enraizada nos comportamentos humanos, tenhamos ou não consciência disso.

É conhecida a distinção feita por Aristóteles entre virtudes e vícios. Aqui, a palavra “vício” não deve ser entendida no sentido do senso comum, como o vício de beber, o vício de fumar, o vício de comer...ou ainda o vício de consumir, o vício de ver televisão, o vício de teclar. Na verdade , todos esses comportamentos identificados pelo senso comum como vícios, todos esses vícios têm sua origem no campo ético ou de formação do caráter, já que, segundo Aristóteles, são as virtudes que formam o caráter. Ou seja, o caráter não é genético, não nascemos com o caráter já formado: o caráter é formado individual e socialmente, uma vez que é na relação com o outro que desenvolvemos , desde a infância, o  nosso caráter .

Sabe-se que Aristóteles recomendava que as crianças tivessem aula de música desde a infância, pois o filósofo  considerava a música fundamental na formação do caráter do futuro cidadão ( “politikos”). A música desperta e potencializa o ouvir: retira-o da passividade e o torna ativo. E melhor fala e argumenta aquele que sabe , primeiro, ouvir ( mesmo que seja para discordar e refutar  aquilo que ouve).

Há dois tipos de vícios: os gerados pelos excessos e, ao contrário, os motivados  pela carência ou falta. Já a virtude é o “justo meio” entre o excesso e falta. Mas o que é esse “justo meio”? Como alcançá-lo?

Enquanto virtude, a coragem é o justo meio entre sua carência e seu excesso. A carência de coragem pode ser vista nos comportamentos covardes, já o excesso de coragem se mostra nos comportamentos temerários. Se alguém deseja correr uma longa maratona porém não se prepara o suficiente e ignora seus limites, querer corrê-la até o fim e a todo custo não é coragem, é temeridade que põe a própria saúde em risco.

O conhecimento também é uma virtude ( uma virtude “teorética”[2]). O vício do excesso de conhecimento é, segundo Aristóteles, a sofística ;  já a carência de conhecimento pode ser vista no vício da “ignorância cheia de si”.  A “ignorância cheia de si” nada tem a ver com a ignorância socrática ou com a “Douta Ignorância” de Nicolau de Cusa. A “ignorância cheia de si” ignora a si mesma e pratica o que hoje se chama de “negacionismo” da ciência. Enfim, a “ignorância cheia de si” é o Mundo da Caverna  e sua reativa/ressentida doxa ( opinião).

Mas o “justo meio” entre o excesso e a carência não é como o ponto no meio de uma linha. O justo meio é como o pico de uma montanha: é difícil alcançar...Os vícios, por sua vez, são como os lados da montanha: pela força da gravidade e do peso, os vícios puxam para baixo. É por isso que para alcançar o cume é preciso exercício sobre si, para assim tentar vencer o peso que puxa para baixo, no sentido literal e simbólico.

Porém, não apenas as virtudes são hábitos,  os vícios também o são. Ou seja, toda virtude é um hábito, porém nem todo hábito é uma virtude. A coragem é um hábito, mas a covardia também o é. Ora, tudo o que é hábito é adquirido. E aquilo que se adquire somente é mantido mediante um esforço. É preciso esforço para ser corajoso, e esforço também é requerido para ser covarde. Enquanto o corajoso emprega sua força para alcançar um bem, o covarde aliena sua força e atrai, para si e para os outros, o mal. Esta é uma das razões da dificuldade para se vencer o vício:  aquele que tem o vício mantém o vício vivo pelo modo como se comporta na vida, diante de si e dos outros. Pois o vício que se mostra num comportamento danoso visível está alojado também na mente. Para mudar um comportamento vicioso, é preciso mudar a maneira de pensar. E pensar não é apenas teorizar, o querer também é maneira de pensar, isto é, o querer é uma maneira ou modo de a mente se comportar.

Mas há duas espécie de esforço : o ativo e o reativo. O esforço ativo é sempre criativo, ao passo que o esforço reativo é destrutivo. As virtudes são (auto)esforços que  criam  o caráter, já os vícios são esforços para destruí-lo ou não deixá-lo se formar, e isso com a complacência, ou “servidão voluntária”, daqueles mesmos aos quais  os vícios apequenam e despotencializam, sendo de si mesmos o carrasco e a vítima.

Assim, a primeira atitude para se vencer os vícios é compreender que aquele que os tem de alguma forma os cultiva, fazendo deles um hábito, isto é, um condicionamento que não é apenas individual, mas igualmente relativo aos grupos aos quais se pertence . Não apenas um indivíduo pode ser covarde, um grupo também pode o ser. E um alimenta o outro , de tal maneira que o hábito se torna costume, “normalidade reativa”, em suma, palavra de ordem.

Um grupo covarde está sempre a se ajoelhar diante de seus próprios carrascos, fazendo culto cego à obediência. É dos grupos covardes que os tiranos extraem sua força, pois a “força” do tirano é a fraqueza. A mente tomada por hábitos reativos julga que seu modo de ser é o “normal”, de tal modo que ela cria sua própria realidade paralela, alienada. Já as virtudes ativas também ensejam coletividades corajosas, pois as virtudes unem. Covardia não une, ela arrebanha.

Em sua ética, Espinosa retoma e renova esse tema das virtudes. Na quinta parte de sua Ética, por exemplo, ele ensina que nada se conquista se não vencermos certos hábitos mentais que nos fazem repetir , no cotidiano, comportamentos que nos despotencializam e impedem que conquistemos graus de potência.

Mas há uma diferença fundamental de Espinosa em relação a Aristóteles, e aqui  abordaremos  esse tema de maneira bem simples, uma vez que não há como aprofundá-lo no curto espaço deste texto-aula.

Espinosa não parte da dicotomia excesso-falta. Para ele, potencializar uma virtude nada tem a ver com excesso. Potencializar uma virtude é fazer dela um meio, como uma ferramenta ou causa eficiente. Quanto mais potente uma virtude, mais ela se torna meio de produção de ideias , de afetos  e de ações não em excesso, mas em amplidão e pluralidade. Além disso, ensina Espinosa, uma autêntica virtude nunca é carente de si mesma ou falta a si mesma. Para Espinosa, enfim, o único vício é o da impotência.  

 



[1] Texto-aula elaborado pelo prof. Elton Luiz .

[2] Aristóteles distingue “virtudes teoréticas” e “virtudes éticas”. Contudo , essas virtudes são complementares, mostrando assim que não existe conhecimento verdadeiro que não seja, também, uma ética do conhecimento.







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