sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

o presente

 

Eu tinha cerca de 6 anos. Na noite do natal, meus pais me levaram ao meu quarto para me mostrarem o que  papai noel deixou sobre minha cama: uma bola... Mas eu mal dava atenção ao presente, eu queria mesmo  era ver o papai noel!

Meus pais então me diziam: “ele já saiu pela janela!” Depois me levavam correndo ao quintal e apontavam para o alto: “Olha o papai noel lá, subindo ao céu em seu trenó, está vendo?” Mas eu só via as estrelas...

 Com a alma acesa, eu não parava de fazer perguntas aos meus pais : “O papai noel mora numa estrela? Por que ele se esconde? Ele tem medo da gente? Ele sempre foi velho ou um dia foi criança?”

Porém  meus pais acabavam tendo que ir  cuidarem da ceia, deixando sem resposta meus interrogares  poéticos-metafísicos. Após um bom tempo olhando o infinito , eu  me lembrava do presente  e voltava correndo para brincar  até tarde,   indo dormir abraçado à bola...

No ano seguinte mudamos para  novo endereço. Na noite do nosso primeiro natal na casa nova, fiquei de soslaio espreitando a janela.  “Ainda não é meia-noite, papai noel  ainda não veio”, dizia meu pai.

Houve um momento em que vi meu pai e minha mãe trocarem olhares. Eles não repararam que eu notei aquela comunicação estranha, parecia que estavam combinando algo. Meu pai saiu de fininho, enquanto minha mãe tentava me distrair  e aos meus irmãos  com o panetone.

 Mas eu só fingia olhar para o panetone, eu queria era surpreender o papai noel entrando sorrateiro pela janela. Se meus queridos pais não tinham respostas para minhas indagações metafísicas, seria então ao próprio papai noel que eu interpelaria com minhas perguntas.

Eu nem fazia questão da bola nova, já ficaria contente em ter de presente as respostas às questões poéticos-filosóficas.

Então, de rabo de olho , vi meu pai entrando no nosso quarto na ponta dos pés, sem notar que eu o via. Ele nem acendeu a luz para entrar, achei estranho...Porém em suas mãos estava o motivo daquele seu esgueirar-se feito sombra: meu pai carregava pacotes de presentes ...

Foi instantânea a minha compreensão do que estava acontecendo. Não fiquei decepcionado com a situação, tampouco desiludido .Eu ainda não sabia ler direito as palavras escritas nos livros, porém começava a ler o mundo .

Quando meu pai retornou à sala dizendo que viu o papai noel saindo pela janela, fiquei pensativo e nada disse . Senti ali uma solidão diferente : um estar só sem ficar triste.

Enquanto meus irmãos corriam para o quarto, fui à janela para receber outro tipo de presente: olhei para o imenso céu e me horizontei, com uma intensa e viva alegria que só compreendi muitos anos depois ao ler Espinosa.

 Hoje sei que o interrogar não vinha de mim, vinha do próprio infinito oferecendo-se como presente , para nunca deixar morrer aquela criança questionadora dentro da gente.


( imagem: “Noite estrelada sobre o Ródano”/ Van Gogh)












Partilho  da querida amiga Sílvia Ulpiano:
 


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