sábado, 9 de julho de 2022

aion

 

Aconteceu lá no começo das eras :  talvez tenha sido uma criança que, brincando,  pegou uma  semente  que recolheu da floresta  e a plantou em um pedaço de  terra próximo de onde  morava. Depois, os adultos tiraram proveito, assim começando um poder, uma técnica.

Antes, a planta crescia livre , sem cercas . Agora ela era cultivada  pelos homens  que a desterritorializaram   de um espaço livre e a reterritorializaram em uma terra cercada . Foi assim que  nasceu a agricultura: com a domesticação do que antes crescia e vivia livre, selvagem.

“Domesticar”  significa : “colocar sob o poder de um domicílio”. Mas não era apenas a planta  que era assim domesticada,  pois junto com ela  também era domesticada outra realidade .

O homem  de então percebeu que a planta nasce, cresce , dá  frutos e  morre.   Houve a compreensão de que a planta existe dentro de um período com fases e ciclos. O homem deu um nome para essa realidade feita de ciclos: ele a chamou de “tempo”. 

Depois, o homem  abstraiu o tempo do cultivo empírico das plantas, ficando  apenas com a ideia de ciclo , estendendo-a  ao cosmos e  a si mesmo. E assim se viu  criança,  adulto e idoso. Ele percebeu que sua vida tinha ciclos, como a vida da planta. Compreendeu que ele era nascimento, vida e morte.

A domesticação do tempo ensejou  também a descoberta do domicílio onde mora o homem: enquanto os deuses moram na eternidade, o homem tem por morada o tempo. Assim como a planta domesticada passou a viver dentro de cercas, o relógio se tornou  a cerca que limita o tempo domesticado.

Mas a domesticação da planta não fez morrer as florestas nas quais as plantas vivem livres, do mesmo modo que a domesticação do tempo não eliminou o seu existir não domesticado  enquanto duração para além do  relógio.

Esse tempo não domesticado  e livre é o que alguns filósofos chamam  de “devir”. O devir  está para o relógio assim como a floresta está para a agricultura, ou  como a poesia está para a linguagem: como realidade não domada, livre,  que nenhuma cerca simbólica domestica.

Os relógios muitas vezes nos fazem prisioneiros dos interesses predadores do Capital em cuja cerca está escrito : “tempo é dinheiro”. Lucro e juros capitalistas  não  são apenas trabalho não pago, juros e lucro também são  nosso tempo roubado. 

 A duração-devir somente pode ser experimentada se cultivarmos em nós um olhar livre de cercas, tal como o têm a criança e o indígena. A duração-devir expressa um valor que não pode ser medido por moeda ou dinheiro.

Enquanto os mercadores do tempo  vivem olhando para o relógio, indígenas, crianças e poetas  vivem a olhar para as estrelas, e por elas se orientam.

Na mitologia, o tempo do relógio é chamado de  Cronos, a divindade que a todos devora, ao passo que a  duração poética atende por  Aion, que era simbolizado por uma criança  que brinca.







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