domingo, 23 de janeiro de 2022

pequena homenagem à grande Elza

 

Uma das melhores aulas de minha vida recebi nas ruas de Ouro Preto. Ao sair para conhecer a famosa cidade histórica, fui abordado  por um guri de uns 12 ou 13 anos.  Ele vestia um sapato que já calçara muitos outros pés antes dos pés dele; e sua calça , também muito usada, estava amarrada com barbante na cintura. Mas quando olhei no rosto dele, vi a riqueza de um sorriso que expressava uma alegria que vinha do lugar onde a vida resiste, tal como a alegria de que fala Espinosa  .

Havia nele uma dignidade na postura e maneira de falar, bem como uma confiança em si mesmo nascida de uma força que vinha de seu sangue, da luta de seus ancestrais. Pensei que ele me pediria algo, mas na verdade ele queria me oferecer.

O guri  se oferecia para ser meu "intercessor" no conhecimento da cidade  de Ouro Preto. Enfim, ele se oferecia para ser meu professor no conhecimento daquele patrimônio histórico. “Intercessor” significa: “aquele que cria intercessões, abrindo os conjuntos fechados”. O intercessor nos desabre e horizonta , diria o poeta Manoel de Barros.

Ao olhá-lo , me veio à mente Chico Buarque e sua música "Meu Guri" , interpretada por Elza Soares. A letra de Chico fala mais do que de um guri, fala de uma situação social excludente que rouba dos guris o direito ao futuro. A voz de Elza é canto de Gaia, voz da Terra-Mãe que chora a dor da injustiça que violenta seus filhos . Ouvindo-a, revejo o guri de Ouro Preto caminhando ao meu lado, um pouquinho à frente, feliz por me ensinar. Quem ama o que faz sente alegria, a potência-alegria de que nos fala Espinosa. Com certeza, esse guri faria a Elza-Gaia sorrir , assim como me fez.

Eu, “Professor Doutor”, aceitei ser aluno do guri. Por meio da fala e explicações dele , a cidade deixava de ser histórica: ela vivia , entrava em devir. Houve um momento em que olhei para o menino e vi o libertário Zumbi dos Palmares; noutro momento, ele parecia o poeta Cartola. Ali, o bisavô do menino foi escravo. Mas em seu bisneto o bisavô se libertava no conhecimento que produz outra história : um devir-memória dos acontecimentos que a História Oficial não conta.

O guri entrou numa mina abandonada e me mostrou onde ficava o ouro que agora adornava o trono onde estava sentado o Papa; ele adentrou numa igreja , subiu ao altar e abriu os braços em cruz, e o Cristo nele eu vi, com a cor e a face do menino-Zumbi.

Por fim, ele me levou à torre bem alta de uma igreja. De lá, ele me apontou sua simples casa: o morro onde o guri morava parecia o Morro de Mangueira... Sobre a majestosa colina, seu casebre estava mais alto e perto do céu do que todas as torres das igrejas.



















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