quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

acalântis

 

Segundo a mitologia , Acalântis era uma jovem que desafiou as Musas , deusas das artes. O desafio não foi por mera vaidade  ou pretensão.  Acalântis não as desafiou xingando ou ameaçando, ela as desafiou cantando.

Toda criação artística potente  é um desafio que o artista lança à arte e a si mesmo, para assim reinventar  arte e vida, pois  nada de novo se cria sem desafios.

As obras de Van Gogh são um desafio lançado à pintura ; os solos de sax de John Coltrane são um desafio lançado à música; os versos de Manoel de Barros são um desafio lançado à poesia.

Com sua arte, o artista desafia a matéria e o espírito a  se amar para  serem um único ser na obra que nasce, como um ser vivo.

Essa união singular entre  corpo e espírito para formarem um único ser vivo, seja gente ou obra de arte ,   o poeta-filósofo Lucrécio chamava de “concílio”. 

Acalântis cantava estando feliz ou triste, amando ou desgostando, fosse primavera ou inverno. E quem a ouvia era acalantado: aumentando a  alegria , diminuindo a dor.

Embora deusas das artes, as Musas se surpreenderam com a arte de cantar de Acalântis.  Além da beleza, havia também calor no canto de Acalântis, como se dentro dela brilhasse  um sol.

Então , para que o canto de Acalântis ganhasse  asas e pudesse ir longe,  as Musas  transformaram Acalântis em um passarinho canoro: o pintassilgo, conhecido como “o passarinho cujo canto acalanta”.

“Acalantar” significa :  contagiar com calor, com vida. O pintassilgo acalanta não só aos ouvidos com seu  canto , ele  acalanta também o ser  inteiro  de quem sabe achar no canto um ninho.

A arte não é só  canto de alegria , ela  também pode ser  clínica e nos auxiliar a curar   a   dor , tanto as físicas quanto as psíquicas.

 O pintor acalanta com suas cores, a cantora acalanta com sua voz ,   o poeta acalanta com suas palavras-assobio : para que não morramos do frio desses dias sombrios.

Para quem as sabe ver , ouvir e sentir, cor , voz e palavra também são ninhos.

 

“Os raminhos com que arrumo as escoras do meu ninho

são mais firmes do que as paredes dos grandes prédios do mundo.” (Manoel de Barros)

 

 (  bem cedinho, todo dia sou acordado pelo canto de  um bem-te-vi . Ele  fez ninho numa árvore perto de minha janela. Mal nasce o dia, o bem-te-vi já está  cantando . Nem mesmo um carcará imenso que ronda por aqui mete medo no bem-te-vi. Ao ouvi-lo cantando, pensei: “Hoje chove, chove, chove...Mesmo assim ele persevera com sua arte.” Fui  à janela : assim que o vi , ele voou atravessando a fina chuva e pousou no galho mais alto.  Ele então cantou e  apareceu outro bem-te-vi , ambos dividindo o mesmo galho. Olharam para o horizonte, tomaram coragem  e para lá voaram... Foram eles que me lembraram hoje  “Acalântis” )



















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