quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

auroras e alvoradas...

 

 

Há um poema de Manoel de Barros no qual ele diz: "Vi que tudo o que o homem fabrica vira sucata: bicicleta, avião, automóvel ... Até nave espacial vira sucata." E completa: “O que é verdadeiramente novo nunca vira sucata.”

Não só automóveis e celulares viram sucata : doze meses atrás , 2021 foi chamado de ano novo , e 2020 virou sucata. Hoje, é 2022 que recebe a etiqueta de ano novo, enquanto 2021 está virando sucata.

Se olharmos para o tempo com os olhos do poeta, veremos que não se encontrava  então em 2021 o tempo novo tão desejado, assim como não está em 2022 o tempo que não vira sucata.

Mas onde encontrar esse tempo-embrião, esse tempo de minadouros?

Segundo o poeta, não é no produto criado que se encontra o novo, e sim no ato de criação. O rio só  mantém seu fluxo vivo e avança se estiver umbilicado à nascente da qual continua a fontanejar, sendo criado.

O novo nunca pode ser representado por abstrações , pois ele vive nas singularidades concretas.

“2022” é uma abstração , uma convenção do calendário hoje vigente. Ao longo da história, porém, povos diferentes tiveram outras formas de contar o tempo segundo outros calendários.

Os povos originários , por exemplo,  vivem muito mais próximos do tempo que não vira sucata, pois os indígenas  não vivem  o tempo sob números abstratos, e sim a partir dos  acontecimentos singulares da própria natureza, segundo os ritmos do sol e da lua.

Os números são abstrações porque conseguem representar somente as quantidades, nunca as qualidades , os ritmos e as intensidades. Somente um tempo concreto, singular, qualitativo e intenso tem força para resistir a virar   sucata, pois  um tempo assim tem a potência da vida e de seus ritmos.

 Mas onde encontrar esse tempo singular? Onde fica sua nascente, seu nascedouro, sua natência?

O poeta assim responde: os dias, os anos, os séculos, os milênios...tudo isso vira sucata. Mas o que nuca vira sucata é a aurora. A aurora é a nascente  da qual brota o autêntico  tempo novo.

E nós mesmos nunca viraremos sucata, não importa a idade que tenhamos, enquanto nos horizontarmos afetados por uma aurora . Para que,  juntando forças,  possamos    “fazer amanheceres”, como ensina o poeta, apesar  dessa noite longa...

Não somente  em 2022, mas  sobretudo no hoje , no aqui e agora, desejo  a todas e todos necessárias auroras!

Uma  aurora sempre vem para nos lembrar que todo dia é dia novo, e não apenas o 1º de janeiro!

 

 

“Erguer-se...

Como se ergue a aurora do seio da noite.” (Homero)

 

“Durante as viagens sem rumo dos andarilhos,

eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.” (Manoel de Barros)




Com sua simplicidade plena  de nobre elegância, deixo aqui a aurora-alvorada cantada pelo poeta Cartola ( na flauta, Carlos Poyares) :




Um comentário:

  1. Por Onde Anda O Tempo?
    robertomarques 29.10.21

    Por onde os passos me levam.
    Quando meus pés cansam vou eu a carregá-los.
    E quando meus olhos cegam,
    Resta alguma ilusão a enganá-los.
    Mas quando ao caminhar eu me entrego,
    Sem pressa, vejo-me a dar
    Outro passo, mesmo trôpego,
    Na direção do meu olhar.
    Eis que na mente, imagem, desejo,
    Há busca incessante, insatisfeita.
    E nessa ilusão, afinal eu vejo,
    Que sendo alcançada fica desfeita.
    Melhor saber nalgum momento:
    Por quê eu ando?
    Pois mais importa o movimento
    A quem à Vida o está tomando.

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